EU NÃO QUERO SER ESSE HOMEM!

19/06/2019

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Entre todas as portas de celas pelas quais já passei nas prisões deste país, e foram muitas, talvez as mais cruéis a separar o mundo dos livres do mundo dos presos sejam as de ferro. Há as celas em que as portas são de grades, logo recebendo lençóis e panos para evitar luminosidade, umidade ou frio; há aquelas que sequer portas têm, destruídas que foram pelo tempo e também pelas intempéries humanas e existem até mesmo “não portas”, mas tábuas reaproveitadas e adaptadas a fechar vãos que dão acesso a tocas escuras. Mas as de ferro para mim, não sei se para os detentos, sempre doeram mais.

Não muito tempo atrás planejei uma inspeção no sistema prisional sob minha jurisdição, para mais uma vez avaliar o colapso da superlotação e todas as violações à dignidade humana dela decorrentes. Porém, dessa vez comuniquei a imprensa, olhos e ouvidos da nação como já dizia Ruy Barbosa, avisando que se desejassem poderiam comigo entrar, conversar e entrevistar detentos e ver a situação in loco do cárcere. Assim, no dia marcado, logo depois do almoço fui encontrar com os repórteres na unidade. Ao me aproximar do complexo prisional, de longe eu os avistei na frente do portão. Pedi ao assessor que dirigia o carro que parasse perto deles para eu descer, orientando-o a seguir e procurar um lugar para estacionar no interior do prédio. Cumprimentei a todos e os convidei para subirmos juntos a rampa de acesso até a administração. Assim que o gestor responsável e a quem eu havia avisado da visita minutos antes nos encontrou, eu expliquei qual seria nosso percurso, fazendo uma breve preleção aos repórteres. Avaliadas as questões de segurança, seguimos caminho, acompanhados de agentes penitenciários e de representantes de sua associação, a quem eu igualmente havia minutos antes avisado e esclarecido que seria um bom momento para relatarem as graves condições de trabalho a que estavam submetidos.

Enfim adentramos no cárcere. Não possuo condições de relatar a sensação que os profissionais da imprensa tiveram, tampouco a expectativa criada nos detentos. Não sei dizer o que eles pensaram ao ver aquela massa de pessoas em suas camisetas e bermudas vermelhas, com chinelos de dedo, amontoando-se para conversar comigo. Não sei dizer nem mesmo qual foi sensação dos detentos ao saberem que o juiz lá estava não para colher seus pedidos, seus muitos pedidos, mas sim para denunciar ao mundo a condição em que eles estavam vivendo, mostrar suas celas com as paredes rachadas, rebocos vertendo água, os varais improvisados, fios de energia repuxados, “bois”(buracos usados como vaso sanitário) precários; especialmente mostrar a desesperadora falta de espaço, com 12, 16, 20 seres humanos ocupando cubículos feitos para 4, 5, 6, no máximo 8. O que sei dizer é somente sobre o meu sentir, nada mais. Para isso descreverei um episódio entre os ocorridos nas quase duas horas que ficamos, juiz, assessor, agentes penitenciários, detentos e repórteres, todos juntos dentro da cadeia.

Pois bem, na última galeria em que adentramos, a mais superlotada, as celas eram fechadas com as portas de ferro no início deste texto mencionadas. Em geral, quando faço inspeções ordinárias, peço que os detentos saiam dessas celas e se dirijam ao corredor central, de onde eu os avisto e com eles converso, entregando-lhes formulários e canetas para que possam preencher e me devolver antes de meu retorno ao Fórum. Naquele dia isso não seria possível, diante de toda a dinâmica que ocorria. Assim, eu falaria da portinhola, pequena abertura no meio da porta de ferro de cerca de 30 cm de largura por 15 cm de altura, trancada por fora com uma espécie de basculante também de ferro.

Quando chegamos na galeria eu iniciei a passagem pelo corredor, seguido por todo o grupo. Olhando para aqueles umbrais de metal, eu sabia o que havia por detrás, eu sentia a presença humana, os corpos de carne e osso com corações pulsantes de esperança e mentes ávidas por razões que justificassem continuar acreditando na possibilidade de vida após a prisão. Então eu bati na portinhola da primeira cela, comunicando a minha presença, e um dos agentes penitenciários a abriu. Os detentos, alguns deitados nos catres, outros no chão, reconhecendo-me logo se levantaram, colocaram suas camisetas e se aproximaram. Muito embora eu tenha explicado sobre o motivo da minha visita, sobre a presença dos repórteres, eles insistiram em me fazer pedidos, a respeito da situação processual, atendimentos à saúde, transferências para a penitenciária, pedidos de toda sorte. Algumas solicitações eu consegui que o assessor anotasse e um par de cartas e pedaços de papel com nomes de detentos eu recebi. Mas então, depois que a imprensa se deu por satisfeita e eu tentei me afastar, mais e mais detentos se revezaram por detrás da portinhola, chamando-me. Com o respeito que qualquer ser humano merece, eu repeti mais uma vez que não poderia atender naquele momento. Por fim, desconcertado e impotente, falei que teria que levantar a basculante e fechar a portinhola. De certa maneira eu estava lhes pedindo permissão para isso. Eles entenderam, balançaram a cabeça e agradeceram. E eu levantei a basculante.

Não foi nem em uma nem em duas celas em que isso aconteceu, foram em todas pela qual eu passei naquela galeria. Em todas eu precisei explicar repetidamente o motivo de minha presença e em todas eu pedi permissão para cerrar nosso contato. Mas não foi só, houve algo mais. Muito embora autorizado pela maioria dos detentos, na última cela eu não consegui fechar a portinhola. Fiquei ali parado, olhando para aqueles jovens pálidos dentro daquela cova escura. Minha mão direita segurava firme a maldita portinhola abaixada. Eu não a mexia. Assim fiquei por uns segundos, até que um agente penitenciário se aproximou e educadamente falou: “deixe que eu fecho doutor”. Mecanicamente dei um passo atrás e soltei a portinhola, que foi fechada.

Koltès, dramaturgo francês que viveu no século 20, uma vez disse que “A crueldade não é quando um homem machuca o outro, ou o mutila ou o tortura ou lhe arranca os membros e a cabeça, ou mesmo o faça chorar; a verdadeira e terrível crueldade é aquela do homem que torna o homem inacabado, que o interrompe como reticências no meio de uma frase, que vira as costas para ele após tê-lo olhado, que faz do homem um erro do olhar, um erro de julgamento, um erro como uma carta a ser escrita e que ofende logo depois de escrever a data”. Eu não quero ser esse homem!

 

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