Por Luana Renostro Heinen e Marina Barcelos de Oliveira - 26/08/2016
Maria[1], empregada doméstica, tem 76 anos. Ela trabalha há mais de 30 (trinta) anos para a mesma família. Seu local de trabalho, a residência da família, fica em um prédio de luxo localizado na capital de algum estado do Brasil. Maria chega para seu trabalho em uma manhã de segunda-feira. Uma falha no sistema elétrico de um dos elevadores impede que ele funcione. Isso não seria um problema, afinal, há outro elevador. Mas Maria é impedida de usar o outro elevador, pois o elevador que lhe cabe é somente o elevador de serviço. Não pode ela, uma serviçal, uma empregada doméstica, utilizar o elevador social. Seu lugar é outro, seu lugar é o espaço doméstico, o serviço, a cozinha, não o espaço público, não o elevador social.
Esse relato foi produzido a partir de informações reais, colhidas em uma campanha que foi feita nas redes sociais: “Eu, empregada doméstica”[2]. As inúmeras colaborações e relatos de empregadas sobre as situações humilhantes às quais são submetidas no ambiente de trabalho podem ser lidos na página da campanha.
Joyce Fernandes[3], negra e ex-empregada doméstica, iniciou essa campanha depois que resolveu relatar uma situação de humilhação que ela mesma vivenciou no trabalho como empregada doméstica, quando sua empregadora afirmou “Joyce, você foi contratada para cozinhar para a minha família, e não para você. Por favor, traga marmita e um par de talheres e, se possível, coma antes de nós na mesa da cozinha; não é por nada; só para a gente manter a ordem da casa.” A mesma empregadora não permitiu a Joyce sair mais cedo para iniciar um cursinho pré-vestibular. Para ela, Joyce não precisava estudar, seu lugar já estava definido: deveria ser sempre empregada doméstica.
Dizer que é preciso manter a “ordem da casa” ou, ainda, que cada um tem seu lugar na sociedade remete à ideia sustentada pelo filósofo francês Jacques Rancière (1996) de que há uma ordem policial que estabelece o lugar de cada um na sociedade. Na Grécia antiga, o lugar dos escravos era o espaço doméstico. Não tinham possibilidade de fala. No espaço público suas vozes simplesmente não eram ouvidas e soavam como um mero ruído. Aristóteles afirmava que cidadão seria aquele que toma parte no governo e é governado. Entretanto, há uma partilha que precede essa possibilidade de tomar parte: a partilha que determina quem pode tomar parte. Aos escravos era negado tomar parte, assim como se nega, ainda hoje, a muitos grupos sociais tomar parte na sociedade.
Não é muito diferente com essas mulheres que desempenham o trabalho de empregadas domésticas. A elas é reservado o espaço privado, a casa. Não lhes cabe tomar parte no que é público, não lhes cabe ter direitos, no extremo, não são tratadas conforme o respeito à dignidade humana exigiria. Além disso, no próprio espaço doméstico, há divisões de lugares que se pode ou não ocupar. Às empregadas é reservada a cozinha e a área de serviço. Para muitas não cabe tomar parte na mesa que serve as refeições, afinal, elas não são parte da família.
Não cabendo a elas os mesmos “direitos” que cabem aos membros da família - como tomar parte à mesa para realizar as refeições - seria de se esperar que coubesse a elas direitos decorrentes da relação distinta - que não é pura relação de afeto ou parentesco - que estabelecem com os membros dessa família: uma relação de emprego. No entanto, a muitas delas, paradoxalmente, negam-se direitos trabalhistas sob o argumento de que elas são “quase parte da família”. Quando houve a regulamentação do FGTS, por exemplo, passando-se a exigir sua obrigatoriedade, um dos argumentos levantados foi o de que muitas dessas trabalhadoras eram parte da família, por isso, não teria cabimento pagar-lhes mais direitos…
O que a campanha “Eu, empregado doméstica” representa contra essa partilha dos lugares na sociedade é um ato pela igualdade. O que Joyce e todas essas mulheres estão fazendo é instaurar um conflito, uma disputa sobre o que se quer dizer e sobre a própria situação dos que falam: situação em que a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto. Ao se manifestarem, elas rompem essa partilha do sensível, não aceitam permanecerem na posição social que lhes foi relegada pela ordem policial e, ao exporem esse litígio, instauram um momento político (cf. RANCIÈRE, 2010), reivindicam que o tratamento que lhes é conferido mude. Querem respeito, dignidade, igualdade.
A exclusão dessas trabalhadoras[4] do acesso aos direitos trabalhistas marca também a trajetória da regulamentação do trabalho doméstico no Brasil. Trata-se do que Norberto Bobbio (2011) chama de primeira etapa da discriminação: o não respeito à igualdade formal, ou seja, a negação de direitos a essas trabalhadoras. Elas só foram consideradas trabalhadoras em 1972, vinte e nove anos após a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho que assegurou direitos às demais categorias profissionais. Além disso, esses direitos foram sendo conquistados muito lentamente, a cada período de tempo um novo direito era garantido pela lei. Manteve-se, assim, durante muito tempo, a desvalorização do trabalho doméstico, colocando essas trabalhadoras em posição inferior com relação aos demais trabalhadores.
Em uma cronologia sintética, podemos compreender a ascensão da categoria da seguinte forma: I) em 1930, o Ministério do Trabalho reconhece a existência da categoria; II) em 1943, promulga-se a Consolidação das Leis Trabalhistas – todavia, o trabalho doméstico não é reconhecido como parte deste mercado de trabalho; III) apenas em 1972, com a força da Lei n.º 5.859, o trabalho doméstico é reconhecido e regulamentado pela primeira vez (assegurou-se a filiação do empregado à Previdência Social e a anotação obrigatória na CTPS); IV) em 1988, com o advento da Constituição Federal, os direitos das empregadas domésticas foram ampliados, mas não foram igualados aos(às) demais trabalhadores(as) urbanos(as); V) em 2013 a Emenda Constitucional nº 72, que alterou o art. 7º da Carta Magna, pela primeira vez, igualou os direitos das empregadas domésticas aos(às) demais trabalhadores(as) urbanos; VI) recentemente, em 2015, com a aprovação da Lei Complementar nº 150, houve a regulamentação da mencionada E.C. nº 72 e também o acréscimo do acesso à instituição do Simples Doméstico.
O momento antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 foi marcado por um período de unificação da categoria ao longo do território nacional e de intensificação das pautas e das lutas pelos direitos das empregadas domésticas. Em 1985, ocorreu o 5º Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas em Recife, Pernambuco. Foi um marco importante para a categoria, um evento histórico que acabou resultando na criação do Conselho Nacional de Trabalhadoras Domésticas do Brasil, existente e atuante até hoje.
A Constituição Federal de 1988 prometia pautar a valorização do trabalho humano, mas não trouxe a esperada igualdade das empregadas domésticas aos empregados urbanos. Ainda assim, trouxe alguns novos direitos à classe, uma vez que concedeu a aplicação de 9 (nove) incisos do art. 7º (salário-mínimo, irredutibilidade de salários, décimo terceiro salário, férias anuais acrescidas de 1/3, licença gestante, licença paternidade, aviso prévio, repouso semanal remunerado e aposentadoria) à categoria.
Foi apenas em 2013, com a Emenda Constitucional nº 72 – também conhecida como PEC da Isonomia – que se alcançou a almejada igualdade entre as trabalhadoras domésticas e os trabalhadores urbanos. A E.C. nº 72 acresceu mais 19 (dezenove) incisos ao art. 7º da CF/88. Dentre estes incisos, 7 (sete) necessitavam de regulamentação por lei complementar – o que veio a culminar na Lei Complementar nº 150, promulgada recentemente, em 2015[5].
Superada a fase de exclusão jurídica, no entanto, essas trabalhadoras ainda sofrem com os efeitos da partilha dos lugares na sociedade, sofrem com essa partilha que é profundamente desigual. Nesse sentido, o que a campanha “Eu, empregada doméstica” faz é política. Um exercício de igualdade que busca romper a ordem da desiguladade.
Para que esse ato político fosse possível foi fundamental a existência de uma ferramenta que lhe possibilitasse. Se, antes, a instauração desses conflitos se dava na subversão da rua (ao tornar o espaço de circulação, um espaço de política), agora se faz nas redes sociais em que muitos estamos presentes, participamos e opinamos, mas também e principalmente, lemos manifestações que, sem as redes sociais, provavelmente nem saberíamos que existem.
Nesse sentido, o ato de Joyce e dessas mulheres é profundamente político. Isso, porque, como ensina Rancière (1996), a política não existe porque os homens, graças ao privilégio da palavra, colocam seus interesses em comum, mas porque: “(…) aqueles que não têm direito de serem contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo ‘entre’ eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada” (RANCIÈRE, 1996, p. 40). A política só existe, portanto, mediante a efetuação da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa na liberdade vazia de uma parte da comunidade que desregula toda e qualquer contagem das partes.
Essas mulheres reivindicam o alargamento da esfera pública: que elas sejam reconhecidas como iguais e não relegadas a “esfera privada dos interesses inferiores”. Elas não são as primeiras a reivindicarem o reconhecimento do caráter público de certas espaços, relações e instituições que tinham sido deixados à discrição do poder da privado. Também foram lutas como essa aquelas para incluir como eleitores e elegíveis todos aqueles que, pela lógica policial, estavam relegados ao espaço privado, como os trabalhadores assalariados que eram assimilados a servos cujas vontades pertenciam a seu amo e, ainda, as mulheres que estavam submetidas ao querer de seus maridos ou pais. A condição dessas trabalhadoras talvez configure um dos últimos espaços em que ainda falta um inserção forte da ideia de igualdade[6].
Notas e Referências:
BARBARA, Vanessa. Eu, empregada doméstica. Estadão, Cultura, 25 jul. 2016. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,eu-empregada-domestica,10000064717>. Acesso em 19 jul. 2016.
BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Unesp, 2011.
DORA, Denise Dourado; VASCONCELOS, Beatriz da Rosa. A Trilha dos Direitos. Revista Themis Gênero e Justiça. Junho de 2015. Porto Alegre. Disponível em: <http://themis.org.br/wp-content/uploads/2015/12/REVISTA-THEMIS.pdf>. Acesso em: 10/06/2016.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. Tradução: Ângela Leite Lopes. São Paulo: Ed. 34, 1996.
____. Momentos políticos, Intervenciones 1977-2009. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2010.
[1] Nome fictício.
[2] A página pode ser acessada em: https://www.facebook.com/euempregadadomestica/
[3] Informações disponíveis na reportagem de Vanessa Bárbara (2016): <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,eu-empregada-domestica,10000064717>.
[4] Considerando-se que o trabalho doméstico é majoritariamente realizado por mulheres, optamos por utilizar genericamente a expressão "as trabalhadoras domésticas". 63% dessas mulheres são negras e muitas delas sofrem também humilhações racistas. Essas mesmas mulheres negras estão na luta pela melhoria das condições de trabalho doméstico, como Creuza Maria Oliveira, trabalhadora doméstica e atual presidente da Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD).
[5] O auxílio creche não foi regulamentado pela Lei Complementar nº 150/2015. As empregadas domésticas também não tem direito ao PIS (Programa de Integração Social) pois é restrito aos empregados da iniciativa privada contratados por pessoa jurídica.
[6] No entanto, para Joyce, a articuladora da campanha que intitula esse texto, o trabalho doméstico é um resquício do período da escravidão e o melhor caminho seria sua abolição, Joyce não acredita em igualdade nesse espaço privado.
Luana Renostro Heinen é Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela UFSC. Professora da Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB e da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres”..
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Marina Barcelos de Oliveira é Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do Programa de Educação Tutorial PET-Direito UFSC. Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC.
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