Eu e as minhas limitações   

07/04/2021

Alienado: “aquele que vive sem conhecer ou compreender os fatores sociais, políticos e culturais que condicionam os impulsos íntimos que levam a agir da maneira que age” (Houaiss). Alienação: “processo ligado essencialmente à ação, à consciência e à situação dos homens, e pelo qual se oculta ou se falsifica essa ligação de modo que apareça o processo (e seus produtos) como indiferente, independente ou superior aos homens, seus criadores” (Aurélio).

Significações de dicionário talvez não sejam bastantes para a compreensão complexa dos termos. Vai o esforço de alguma complementação: na definição de alienado, “fatores sociais, políticos e culturais” são referência ao meu lugar de existir, às injunções de poder que me envolvem e aos valores que me foram transmitidos, os quais informam a compreensão que tenho dos acontecimentos, porque tudo isso compõe a minha consciência da realidade.

Alienação: é a não percepção de que tudo no mundo afeta o humano; a situação do humano depende do humano; nada está fora da humanidade. As coisas todas decorrem de processos complexos e geram processos complexos produzidos pelos humanos, conforme os interesses dos humanos, causando efeitos nos humanos. O que acontece é História. Nada depende de mágica, astros, energia, sorte ou divindades. Nem de pensamento positivo.

“Por que as garrafas de vinho têm 750 ml, e não 1 l? Divergência entre o sistema métrico de unidades e o sistema imperial inglês, mais antigo. No século 19, o Reino Unido era o principal importador de vinhos franceses. Os ingleses usavam o galão, que equivalia a 4,5 l arredondados. Por causa disso, os franceses adotaram caixas com seis garrafas de 750 ml, que, somadas, dão um galão” (Bruno Vaiano, Superinteressante, de 13jan21, editado).

Se essa explicação contemplasse todas as razões, a pessoa informada da relação litro/galão estaria ciente do motivo do volume de prazer vinícola engarrafado. Mas o imbróglio é maior: a França fizera a Revolução Burguesa, derrubara uma monarquia, implantara o sistema de pesos e medidas (o grama, o litro e o metro, este como sendo a décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre). Forçara a coincidência dos relógios. Quebrara tradições.

O poder francês levou seu modo de calcular peso, volume e distância para quase todo o mundo, mas esbarrou no poder inglês. O que estivesse sobre domínio inglês, o que não eram poucas nações, ficava com seus parâmetros imperiais. Estados Unidos e Inglaterra, até hoje, recusam-se a adotar o sistema métrico decimal. As relações comerciais entre países com um ou outro sistema obrigam a conversões, sem concessões ao poder de estabelecer o padrão.

Uma garrafa de vinho, pois, não tem, por acaso, determinada quantidade do agradável líquido. Seu volume decorre de relações comerciais, de imposição de pesos e medidas, do poder da França ou da Inglaterra no planeta. Essa contenda subsiste nos nossos interiores influenciados pela cultura europeia pré-Iluminismo: ainda se usa, sem se saber o porquê, dúzia, galão, palmo, polegada ou braça. Um uso em extinção, por falta de expressão de poder.

O alienado, não obstante achar que a “escola da vida” lhe forneceu esperteza suficiente para não ser enganado por ninguém, é, antes de tudo, um ingênuo. É uma enorme inocência acreditar que se pode submeter a escrutínio pessoal a complexidade da História. Perplexos frente ao enredamento do que não alcançam entender, esses ingênuos “advertem-se” por teorias conspiratórias: acreditam em organizações secretas controladoras do nosso devir.

A esquerda (nossa esquerda de direita) pensa que o mundo caminha para o fascismo. A direita acredita que logo seremos submetidos ao comunismo. Um tanto exagerado. Claro, existem organizações de indivíduos e países querendo estabelecer e consolidar poder, mas o que há de concreto, evidentemente, não está como informação disponível para os deslumbrados com conjurações “secretas” que só eles sabem onde começou e como vai terminar. 

A rota de fuga da alienação é saber que não teremos consciência de tudo. Não tenho ideia da origem das peças que arranjam o meu computador. Quem tem poder para vender ou comprar o que compõe esta máquina? Embora curioso, não darei conta do todo. É impossível. A vida em comum pede articulação com outros que sabem outras coisas. Fidúcia. Sem confiança a coexistência é impraticável. A eterna suspeita de maquinações antes que astúcia é sintoma.

Tenho alguns saberes; desejo outros mais. Algumas coisas sei que não sei; talvez, se as souber, não as compreenda. Imagino que coisas há que jamais imaginei. Sou eu e as minhas limitações. Há vida além delas, mas é nelas que vivo e viverei. O mais é desvario ampliado por redes sociais, como essa briga sobre remédios. Como me orientar no meio disso? Acompanhando o mais seguro: a ciência. O tratamento precoce é a vacina. Infelizmente, nada mais.

 

 

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