Ética de Schrödinger

01/07/2018

O último artigo terminou com a menção ao trabalho “O que é vida?”, de Erwin Schrödinger, concluindo com uma leitura do Cristianismo compatível com as ideias místicas orientais. A mesma obra possui, ainda, outros textos, um deles sob o título “Mente e Matéria”, transcrições de conferências proferidas no Trinity College, Cambridge, em outubro de 1956, em que são abordadas algumas questões fundamentais sobre a vida humana.

Na procura pela unidade da Ciência, parte-se de uma determinada área do saber em direção ao centro da esfera da realidade, centro que conecta todas as coisas, em busca do conhecimento de Deus, o Logos ou Razão absoluta. Por mais que essa seja uma tarefa impossível, é no desenvolvimento dessa atividade, por meio de avanços não lineares, que a humanidade evolui. Como o impossível somente é impossível se contrário à Vontade de Deus, ao Logos, cabe aos indivíduos continuarmos na batalha contra o mundo irracional, o impossível realmente impossível, até que esse mundo seja vencido, com a ajuda de Deus, mudando a direção da multidão para o sentido do indivíduo que luta com Deus, Israel, para que o Logos encarne em todos nós.

Assim Deus mostra sua misericórdia, perdoando os erros daqueles que veem sua Vontade possível e necessária como impossível, quando, em última análise, apenas Sua Vontade, o Logos, é real e logicamente possível, é a Única Evolução. “Pois Deus fechou todos em desobediência, para com todos usar de misericórdia” (Rm 11, 32). Jesus, como Judeu, expressa esse Deus em Vida, como expressão humana do método científico, o Caminho, e não é por acaso que Alá é chamado, no Alcorão, constantemente, de Clemente e Misericordioso.

Nesse sentido, Schrödinger, com sua formação física e matemática, avançou em direção a outros campos do conhecimento, da biologia e da ética, tendo como base sua noção de ordem lógica e natural, desenvolvendo uma Ética a partir da Física, ou da Biologia, como será abordado em diante. Da minha parte, tendo como pressuposto uma noção de ordem humana e natural, formulo uma Física a partir do Direito, em sua noção mais original, que é Teológica. A ideia fundamental, ligada aos primórdios da Filosofia, está na existência de uma conexão integral entre todos os fenômenos físicos e mentais, na inteligibilidade radical do cosmos, do universo, por meio de uma unidade lógica e racional, coincidente com o centro da esfera da realidade.

Assim, na procura pela unidade do Saber, Schrödinger, no primeiro capítulo de “Mente e Matéria”, com o título “A base física da consciência”, começa afirmando que o “mundo é um construto de nossas sensações, percepções, reminiscências”, dizendo convir “considerar que ele exista objetivamente por si só”, mas que essa percepção depende de acontecimentos especiais que ocorrem dentro do cérebro, para concluir com a indagação: “que espécie de processo material está diretamente associado à consciência?” (Erwin Schrodinger. O que é vida? O aspecto físico da célula viva. Trad. Jesus de Paula Assis e Vera Yukie Kuwajima de Paula Assis. São Paulo: Editora UNESP - Cambridge University Press, 1997, 162, versão eletrônica).

Schrödinger propõe duas vias de comportamento, uma dizendo ser imperscrutável a origem da consciência, porque referente a argumento irrefutável e indemonstrável, e assim sem valor para o conhecimento, postura que significa uma eliminação da questão e que tem como consequência uma visão de mundo com uma temível lacuna. Ele diz, portanto, que o surgimento de neurônios e cérebros é muito especial para que essa busca seja abandonada.

É importante dizer que passados sessenta anos, mesmo com as impressionantes evoluções tecnológicas posteriores ao texto, com ressonâncias magnéticas do cérebro em funcionamento e nanotecnologia, a pergunta acima continua atual.

Em sua tentativa de resposta, Schrödinger propõe que a consciência está ligada a fenômenos novos, que estão além da repetição automática ou inconsciente:

“o que há pouco dissemos e mostramos ser uma propriedade dos processos nervosos é uma propriedade dos processos orgânicos em geral, a saber, associarem-se à consciência na medida em que são novos. (...)

Portanto, a consciência está associada àquelas de suas funções que se adaptam a um ambiente em transformação por meio daquilo que denominamos experiência. O sistema nervoso é o local em que nossa espécie ainda está envolvida numa transformação filogenética; metaforicamente falando, é a 'copa da vegetação' (Vegetationsspitze) de nosso tronco. Eu resumiria a minha hipótese geral da seguinte maneira: a consciência está associada ao aprendizado da substância viva; seu saber (Können) é inconsciente” (Idem, pp. 170-171).

No mundo global, a consciência de humanidade é essencial para a preservação da espécie, e por isso as divisões entre nações e tribos deixam de ter relevância e passam a prejudicar a Vida, o que Schrödinger, como veremos, também destaca, e daí a exuberância e atualidade da Consciência de Cristo, exigindo o amor a Deus, o mesmo de toda a humanidade, e ao próximo, isso quando estava em plena ação o primeiro império multicontinental, o romano, uma grande novidade na Política humana, devendo ser ressaltado que Cristo, como Messias, significa o cumprimento da Lei da humanidade pelo governante humano, rei e sacerdote, o que hoje corresponderia a presidente ou primeiro-ministro, cientista e guru espiritual. Nesse ambiente interligado e novo, da Política mundial, o aprendizado da substância viva apontou para a conexão de todos os humanos, exigindo um governo humano que sirva à humanidade, a partir de uma só Lei, aplicada por meio de interpretação inteligente e santa.

A Ética de Cristo, portanto, é a Ética da Humanidade, resumida em dois mandamentos, o amor a Deus e ao próximo, sendo este qualquer ser humano, Ética antevista em ação pelos profetas de Israel, como Reino de Deus, a solução de Vida para uma humanidade interligada.

Usando uma analogia com a Matemática, pelo conceito de máximo divisor comum, obtido pela decomposição dos números aos seus componentes mais simples, chega-se até o limite da unidade, o máximo divisor comum dos chamados números primos entre si, o número um que é a unidade racional básica do mundo matemático, abaixo da qual a inteligibilidade é perdida. A humanidade de todos nós é o máximo divisor comum, abaixo do qual a humanidade é perdida, e essa humanidade está em sermos imagem e semelhança de Deus, está em sermos capazes de uma racionalidade superior à racionalidade animal e meramente corporal, grupal ou nacional, está em encarnamos a Razão da espécie, chamada de Espírito santo ou Logos.

Assim, voltamos à proposta de Schrödinger, que na parte final do capítulo citado afirma que “a teoria da consciência que esbocei parece pavimentar o caminho rumo a uma compreensão científica da ética” (Idem, p. 172). Ele começa falando que na história do código de ética está uma ideia de autonegação, uma oposição à nossa vontade primitiva, por isso a vida consciente “é necessariamente uma luta contínua contra nosso ego primitivo”, aduzindo que a vida de cada humano é parte da evolução da espécie (Idem, p. 173). Em seguida menciona a importância dos comportamentos dos indivíduos na evolução das espécies, com influência decisiva no desenvolvimento da seleção dos mais aptos que transmitem as mutações hereditariamente, associando a consciência à interação com o ambiente em transformação, e sustentando que “a consciência é um fenômeno da zona de evolução” (Idem, p. 174). Segue a conclusão do raciocínio:

“Se isso for aceito, segue-se que a consciência e a discordância com o próprio eu estão inseparavelmente vinculadas, mesmo que devessem, por assim dizer, ser proporcionais entre si. Isso parece um paradoxo, mas os mais sábios de todos os tempos e todos os povos testemunharam-no e confirmaram-no. Homens e mulheres para os quais este mundo era iluminado por uma extraordinária e brilhante luz da consciência e que por sua vida e palavra, mais que outros, formaram e transformaram esse trabalho de arte a que denominamos humanidade, testemunharam pelo que disseram ou escreveram, ou mesmo por suas próprias vidas que, mais que outros, sofreram a dor cruciante da contradição íntima. Que isso sirva de consolo àquele que também sofre disso. Sem essa discórdia, jamais algo de permanente foi gerado.

Por favor, não me entendam mal. Sou cientista, não professor de moral. Não entendam com isso que desejo propor a ideia de que nossa espécie se desenvolva rumo a uma meta superior como um motivo eficiente para propagar o código moral. Isso não seria possível, já que é uma meta não-egoísta, um motivo desinteressado e, portanto, para ser aceito, pressupõe já a virtude. Sinto-me tão incapaz quanto qualquer pessoa para explicar o 'dever' do imperativo de Kant. A lei ética, na sua forma geral mais simples (sê altruísta!) é claramente um fato, está lá e mesmo a grande maioria daqueles que não a obedecem, frequentemente concorda com ela. Considero sua enigmática existência como um indício de que nosso ser se encontra no início de uma transformação biológica, de uma atitude geral egoísta para uma altruísta, do homem ter como propósito o transformar-se em animal social. Para um egoísmo animal solitário, o egoísmo é uma virtude que tende a preservar e melhorar a espécie; em qualquer tipo de comunidade, torna-se um vício destrutivo. Um animal que embarque na formação de sociedades, sem restringir em muito o egoísmo, perecerá. Formadores de sociedades filogeneticamente bem mais antigos, como as abelhas, as formigas e as térmitas, abandonaram completamente o egoísmo. Contudo, no estágio seguinte, o egoísmo nacional, ou simplesmente o nacionalismo, ainda está entre eles em pleno desenvolvimento. Uma abelha operária que, extraviada, vai até a colmeia errada, é morta sem hesitação.

No homem, ao que parece, está acontecendo algo que não é infrequente. Acima da primeira modificação, indícios claros de uma segunda num sentido semelhante são perceptíveis, muito antes que a primeira esteja próxima de ser realizada. Embora ainda sejamos extremamente egoístas, muitos de nós começam a enxergar que também o nacionalismo é um vício do qual é necessário desistir. Aqui, talvez, apareça algo muito estranho. A segunda etapa, a pacificação da luta entre os povos, pode ser facilitada pelo fato de a primeira etapa estar longe de ser concluída, de forma que os motivos egoístas ainda têm um forte apelo. Cada um de nós é ameaçado pelas novas e terríveis armas de agressão, sendo, portanto, induzido a ansiar pela paz entre as nações. Se fôssemos abelhas, formigas ou guerreiros lacedemônios, para quem não existe temor pessoal e covardia é a coisa mais vergonhosa do mundo, a guerra perduraria para sempre. Mas felizmente, somos apenas homens - e covardes.” (Idem, pp. 175-177 – negritos meus).

Pedindo escusa pela longa citação, que considero válida, porque expõe um raciocínio brilhante, e muito atual, vale mencionar, ainda, afirmação de Schrödinger no sentido de que o comportamento individual “tem influência muito significativa sobre a tendência da evolução (da espécie)” (Idem, p. 177).

O grande trecho acima foi transcrito porque pode ser interpretado como uma reprodução da ideia básica do Cristianismo como evolução biológica, associando Jesus Cristo ao homem novo, na microevolução e na macroevolução da espécie, proposta desenvolvida no artigo “Macroevolução e microevolução” (http://emporiododireito.com.br/leitura/macroevolucao-e-microevolucao-por-thiago-brega-de-assis).

A Evolução em Cristo está em pleno acordo, portanto, com a Ética de Schrödinger, porque a Ética de Cristo se resume a dois mandamentos: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22, 34-40).

O primeiro mandamento se liga à ideia do Monoteísmo, da unidade da humanidade como espécie, da unidade Lógica e Racional do mundo, unidade inteligente que permite o imperativo categórico, o qual se desenvolveu juridicamente no conceito de dignidade humana, o máximo divisor comum da Ética, o comportamento fundamentalmente replicável na humanidade, na unidade sapiencial da qual é originado o mundo social e político, a Lei que vale para todos.

O imperativo categórico, portanto, exige a análise dos comportamentos em relação aos demais humanos como bons, aceitáveis, toleráveis e repulsivos, ou seja, distinguindo entre solidariedade e egoísmo, estando a ação ética, como visto, ligada aos primeiros, porque vinculados ao conhecimento de Deus, à encarnação do Logos, o que significa ser o próprio Deus em ação, estando a atitude ética atada à adoração a Ele em Espírito e Verdade. “Porque é d'Ele, por Ele e para Ele que tudo existe. Glória a ele pelos séculos! Amém” (Rm 11, 36).

 

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