Naquele tempo, a posse da terra era a marca da diferença social. Maneco, então, homem bom, honesto e trabalhador, reclamava do sistema que premiava com mais terras os proprietários já enriquecidos.
A coisa era mesmo injusta. Maneco fazia o tanto que podia pra ter a sua parte. Não sei se Maneco recusaria o sistema, se fosse incluído na maracutaia. Henriqueta era a mulher de Maneco. A vida dela era dura; dura de ser doída.
Quando Henriqueta morreu, Ana Terra, a filha, nem sofreu. Entendeu que a mãe se livrara de uma servidão. Era escrava dos afazeres da casa, de servir os homens, de tudo daquela condição, mesmo que chamada de senhora.
Cozinhar, pedalar na roca, em cima do estrado, fiando, suspirava as cantigas da mocidade. Ana, agora, queria ver o pai. Ele ia precisar de quem lhe fizesse a comida, lavasse a roupa, cuidasse da casa.
Ela olhava o pai que olhava a morta que não olhava mais ninguém. O pai precisava enfim, pensava Ana, de alguém a quem pudesse dar ordens, como a uma criada. Esse alguém seria ela ou a sua cunhada.
E penso eu: ordens à mulher, à criada, à filha, à nora. Ordens ao feminino. A vida dos homens era igualmente bruta. Mas a relação ultrapassava a divisão de tarefas. Em todo o correr da faina de ambos, à mulher se acrescentava submissão.
Ana Terra habita O Continente, de Érico Veríssimo. Lembrei de Ana porque ela foi a vítima do primeiro estupro de que fiquei sabendo. Lembro que muitos homens a violentaram repetidas vezes.
Ela tem raiva e vive de birra. Sabe que uma pessoa pode e deve lutar com a sorte que tem. Vai a um rio, lava-se dos restos do acontecimento desgraçado, e sem ilusões nem mais nada segue teimando em viver.
O autor escreve com críticas sociais e sua narrativa é condizente com o mundo. No mundo existem estupros. Quero dizer: a vida real produziu a imaginação do genial autor de O Tempo e o Vento.
A mesma verdade dos fatos sociais que nos produzem crenças, valores etc constituiu a permissão para a “circulação’’ da ideia e concretização de uma realidade de 50 mil estupros por ano, de estupros contados por minuto.
O nosso modo de existir (o real que nos interpela a todos) permite estupros e recomenda ao estuprador divulgar o registro da violência, espetacularizando-o como algo a ser comemorado, em linguagem atual, curtido.
O estuprador machista pode pensar que é um macho primitivo, mas não. O machista já não é macho, é homem. Já não é primitivo, é civilizado, Já não é sexo, é gênero. Gênero constituído pelo que sobra de pior da civilização.
Civilização é construção; estabelece patamares. Nos patamares alcançados acontecem novas tensões entre tentativas de mais avanços e forças que desejam retrocessos. É a eterna dialética social, ou a luta cultural.
Essa luta está no real, mas também no reino do simbólico, constituindo um imaginário. Quando Temer, por burrice (sem medir efeitos de seus atos e não atos), arquiteta um ministério masculino, ele não sabe, mas faz a civilização retroceder.
Há coisas que não parecem ser ideológicas, mas são. É do “modo de pensar” que habita Temer desimportar à presença do feminino. A ideia de gênero não faz mossa no “pensamento” do presidente em exercício.
Temer legitima o poder a partir da cultura masculina. Essa cultura supõe a objetificação das mulheres. O feminino na civilização Temer (ele é um cavalheiro) não é relação de poder, é romantismo.
Temer nos vai rebaixar 22 posições no Índice Global de Desigualdade de Gênero e nem se dá conta disso. E se for informado, não processará a informação. Isso é um péssimo começo para o herdeiro do desmando no Brasil.
Cai um governo ladrão, entra um governo machista e um alienado festeja um estupro coletivo. Desanimador, claro. Mas em situação pior Ana Terra lavou-se e pôs-se a fazer o que tinha que ser feito.
Ana não era feminista, mas tinha comprometimento político com a vida. A igualdade é causa do cotidiano pelejada na arena do poder. A cultura do estupro é culpa de todo mundo que obstrui a equivalência entre o homem e a mulher.
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