1. A PRETENSÃO COMO CATEGORIA ESSENCIAL AO PROCESSO
- Dos conceitos
Como se sabe, a Ciência do Direito compõe-se de categorias abstratas, forjadas pelo pensamento do homem.
Uma vez captado o fenômeno jurídico e cunhada a nova categoria, ela é levada a fazer parte da Teoria Geral do Direito, não sem antes proceder-se à sua individualização através da outorga de um “nome”. Este, no tráfico verbal jurídico, passa a ser elemento de referência àquela ideia.
Em sendo assim, torna-se imperioso que se explicite com que ideias ou categorias vamos trabalhar, antes mesmo do início do singelo desenvolvimento teórico que se pretende fazer. Note-se que, inúmeras vezes, por mera divergência semântica, usam-se as mesmas palavras com um significado diverso ou assemelhado.
Para isso evitar, urge o rigor terminológico.
Desta forma, deixamos claro que este estudo é construído a partir dos conceitos formulados por Carnelutti para a teoria geral do processo.
Assim, quando falamos em lide, estamos nos referindo ao conflito de interesses qualificado pela pretensão de um sujeito processual e a resistência de outro.
Por outro lado, tomamos a pretensão como sendo a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio (Carnelutti, in Sistema de Derecho Procesal Civil, Buenos Aires, UTEHA, Argentina, 1944, vol. 1°, p. 44, tradução de Alcalá-Zamora e Sentís Melendo).
Ressalte-se, por derradeiro, que o conflito de interesses que nos preocupará é aquele trazido ao processo e moldado pelas partes, conforme exato posicionamento de Liebman exposto no clássico trabalho “O Despacho Saneador e o Julgamento do Mérito”, publicado em seus Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro, São Paulo, Bushatsky, 1976, p. 115.
- A lide como elemento acidental do processo
A doutrina mais autorizada, na sua grande maioria, sustenta ser a lide o elemento essencial do processo. Nada obstante, com desmedida ousadia, procuraremos reativar nova reflexão sobre o tema.
Em verdade, casos há em que o conflito de interesses não se faz presente e a existência do processo é indiscutível. Não se podendo negar a própria realidade, procura-se contornar o problema através de construções artificiosas.
Vamos a alguns dos muitos exemplos que se poderiam apresentar.
Pense-se no réu que, citado, expressamente reconhece a juridicidade do pedido formulado pelo autor. No processo penal, o réu pode confessar integralmente os fatos que lhe são imputados na denúncia ou queixa e manifestar inequívoco desejo de submeter-se à pena prevista na norma penal. Veja-se a este respeito a lição de Piero Calamandrei em suas Instituciones de Derecho Procesal Civil, Buenos
Aires, EJEA, 1973, vol. 1º, p. 183, tradução de S. Sentís Melendo.
Também no processo de execução não temos lide ou conflito de interesses, mas apenas sujeição do réu. Eventual litígio surgirá em decorrência de ação de embargos, que instaura processo de conhecimento incidente.
A toda evidência, nestes casos, há processo e atividade jurisdicional própria.
Portanto, processo sem conflito de interesses ou lide.
Entretanto, não se quer reconhecer esta realidade jurídica. Prefere-se ampliar a ideia de lide, não mais se exigindo resistência à pretensão do autor. Para a existência da lide, seria suficiente que a pretensão do autor se apresentasse como insatisfeita.
Ora, pelo simples fato de haver uma pretensão insatisfeita não se pode afirmar a existência de um real conflito de interesses. Vale dizer, sem oposição efetiva, não temos conflito de interesses no sentido processual mencionado.
Não é incomum haver consenso entre as partes e o processo ser necessário por imposição da própria lei. É o caso do processo penal, em face do princípio nulla poena sine judicio. O desejo do réu de submeter-se à pena é irrelevante.
Isto também se verifica nas ações penais não condenatórias, como o habeas corpus, a revisão criminal, a reabilitação etc., pois a pretensão de seus autores pode encontrar acolhimento do próprio Ministério Público.
Importa salientar, nada obstante, que, para a configuração do conflito de interesses, se nos apresenta irrelevante o fim último que move a pretensão do autor e a resistência do réu.
Para nós, basta a exteriorização da oposição de interesses para a caracterização da lide. Por isso, refutamos a assertiva de que na interdição e na extinção de condomínio temos apenas a impropriamente chamada jurisdição voluntária.
Neste particular, artificial foi o entendimento de Carnelutti que no processo penal também não haveria lide, pois o Ministério Público manifestaria a pretensão punitiva estatal no interesse do réu. Basta pensar-se no pedido de condenação à pena de morte, onde ela é admitida (sic).
Não se pode negar que o processo é uma das formas mais comuns de composição de conflitos de interesses. Entretanto, urge admitir que a lide não lhe é essencial, podendo o processo ser concebido sem uma efetiva oposição do réu à pretensão do autor.
Neste sentido se manifesta Calamandrei, in verbis:
“Puede haber ejercicio de función jurisdicional al solo objeto de assegurar la observancia del derecho, aun en casos en los que no hay paz alguna que mantener, en cuanto no existe ningún conflicto de intereses entre las partes, las cuales están perfectamente de acuerdo en querer conseguir un cierto efecto jurídico” (ob. cit., p. 182).
- A pretensão como elemento essencial ao processo
Se há processos sem pretensões excludentes, qual a essência jurídica do processo?
Rigorosamente, o que se torna indispensável à existência do processo é a pretensão do autor manifestada em juízo, exteriorizada pelo pedido e delimitada pela causa de pedir ou imputação.
Impõe-se, na realidade, que alguém venha ao Poder Judiciário pedir que um determinado interesse seu venha a prevalecer em detrimento de outra pessoa. Deduzida a pretensão, que é fato jurídico-processual, através do exercício da ação, teremos processo, mesmo que haja por parte do réu reconhecimento formal do direito alegado pelo autor. Haverá processo até mesmo se o réu provar que sempre desejou adimplir a sua obrigação, tornando o recurso às vias jurisdicionais desnecessário.
Note-se que o exercício irregular ou abusivo do direito de ação não obsta a existência do processo, embora venha ele a ser extinto sem julgamento do mérito, ou seja, sem a apreciação da pretensão irregularmente formulada.
Assim, parece-nos mais aceitável construir toda a teoria da jurisdição e do processo em torno do conceito de pretensão, que lhes é essencial.
A regra é que, na grande maioria dos processos, se contém um conflito de interesses. Entretanto, excepcionalmente isso pode não ocorrer, o que já é suficiente para reformular algumas premissas da teoria geral do processo, aceitas de há muito.
Ademais, com este posicionamento teórico sobre a pretensão, julgamos resolver, ao menos em parte, a tormentosa questão de bem delimitar a chamada jurisdição voluntária.
Se a base indispensável do processo não é mais o conflito de interesses ou lide, a sua detectação, por vezes altamente controvertida, passa a ser absolutamente despicienda. Só será procedimento de jurisdição voluntária aquele que não contiver uma pretensão.
Em outras palavras, não havendo de um sujeito de direito a exigência que seu determinado interesse se sobreponha em face de outro, não temos processo, mas tão somente jurisdição voluntária. É a hipótese, por exemplo, do casamento, de venda de bem de menor etc.
Pelo exposto, podemos conceituar o processo como sendo o conjunto de atos necessários ao julgamento ou atendimento prático da pretensão do autor ou mesmo de sua admissibilidade, pelo Juiz.
Parece-nos relevante, outrossim, salientar que o processo, como categoria autônoma, não se confunde com a relação jurídica processual a que dá origem.
Causa e efeito hão de ter ontologias próprias. O processo não é, mas cria a relação jurídica entre os sujeitos processuais. É artificial dar ao processo uma ontologia pelo seu aspecto interno e outra pelo seu aspecto externo. Veja-se a respeito o que sustentamos, com apoio em autores alienígenas, em nossa monografia intitulada “Da Publicização do Processo Civil”, Rio, Liber Juris, 1982.
Destarte, é preciso afastar da ciência processual construções que já não mais satisfazem o sistema dogmático atual, as quais entravam o seu célere desenvolvimento.
Com este escopo, procuramos demonstrar ser um erro procurar conflitos de interesses onde eles não existem (pretensões meramente insatisfeitas), para compreender a estrutura do processo. O processo visa compor lides, mas o que lhe é indispensável é a pretensão deduzida em juízo. Presente esta, haverá processo criando relação jurídica entre os seus sujeitos (autor, juiz, réu).
2. PRETENSÃO E PRESCRIÇÃO PENAL
2.1. A punibilidade
A norma penal incriminadora cria para o seu destinatário o dever genérico de praticar determinada ação ou abster-se dela. Correlatamente, tem o Estado o poder-dever de exigir tal conduta, impedindo, coercitivamente, a prática da infração penal, através do seu poder de polícia.
Até então, a rigor, não existe direito (rectius, poder-dever) de punir por parte do Estado. Este surge com o cometimento de uma infração penal “punível”.
A punibilidade, a nosso juízo, não é elemento ou requisito da infração penal, devendo ser entendida como a possibilidade jurídica de aplicação de sanção penal ao seu sujeito ativo. Crimes há que, enquanto não preenchidas determinadas condições, não são punidos. Veja-se, como exemplo, o disposto no § 2°, do art.7°, do Código Penal, letras b e c.
As condições de punibilidade se diferem das chamadas condições de procedibilidade.
As primeiras, por serem pressupostos do poder-dever de punir do Estado, referem-se ao mérito da pretensão do autor, enquanto as últimas condicionam o regular exercício da ação penal.
Assim, o poder-dever de punir do Estado pressupõe: a) a prática de uma infração penal (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade); b) punibilidade do sujeito ativo da infração.
Conceituação diversa deve ser destinada à chamada pretensão punitiva.
- A pretensão punitiva
Conforme ensinamento de Carnelutti referido no estudo anterior, pretensão é a exigência de subordinação de um interesse alheio ao próprio. Desta maneira, pretensão é fato. Fato processual quando deduzida em juízo, através do exercício da ação.
No processo penal, a pretensão punitiva é sempre insatisfeita, pois a pena não pode ser aplicada senão por meio do processo, em decorrência de tutelar-se a liberdade do réu, direito indisponível.
Em sendo abstrato o direito de ação, urge que não vinculemos o direito (poder-dever) de punir do Estado com a pretensão punitiva. São categorias autônomas e distintas. O poder-dever de punir pode existir sem que a pretensão punitiva tenha sido deduzida em juízo. Por outro lado, casos há em que o autor deduz determinada pretensão punitiva sem que efetivamente tenha o alegado direito de punir, sendo o pedido condenatório julgado improcedente.
Destarte, impõe-se diferenciar a existência da pretensão processual da apreciação de ser ela fundada ou não.
Pelo exposto, o poder-dever de punir é condição indispensável para o acolhimento (mérito) da pretensão punitiva. Entretanto, esta pode existir independentemente daquele.
A pretensão punitiva se costuma dividir em pretensão condenatória e pretensão executória, conforme o provimento jurisdicional invocado (pedido imediato), dando surgimento ao processo de conhecimento ou ao processo de execução.
2.3. Prescrição e mérito da pretensão punitiva
Assim colocadas as coisas, parece-nos incorreto dizer que a prescrição penal extingue a pretensão punitiva ou executória.
Primeiramente, porque a pretensão punitiva é gênero da qual a pretensão executória é espécie. Em segundo lugar, a prescrição é causa extintiva da punibilidade, fazendo perecer o poder-dever de punir do Estado. Malgrado tal perecimento, muitas vezes a pretensão punitiva é deduzida in judicio, o que acarretará na improcedência do pedido de condenação (mérito).
Deste modo, podemos concluir que pretensão é categoria de natureza exclusivamente processual, veiculada em juízo através do exercício da ação, que existirá como fato independentemente do direito alegado pelo autor. Já a punibilidade é de natureza material, sendo requisito indispensável à existência do poder-dever de punir estatal.
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