Estudo de caso de uma história de terror: notas sobre deveres pré-contratuais de informação e vícios do consentimento

06/03/2024

Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil

Histórias sobre casas mal-assombradas fazem parte da cultura popular. São inúmeros os contos, livros, filmes e séries que retratam as desventuras de famílias desavisadas ou descrentes que adquirem uma bela casa e, logo após fixarem residência, percebem que algo muito estranho foi adquirido junto do imóvel. Essas narrativas, para além de seu valor literário, detêm peculiaridades jurídicas dignas de reflexão.

Imagine-se uma das diversas concretizações desse arquétipo narrativo. Uma família, composta por uma arquiteta e um construtor, adquire, reforma e, posteriormente, revende uma casa antiga. Ao realizar o procedimento de remoção de mofo do porão de uma dessas casas, os novos proprietários identificam o corpo de um homem, preso no vão entre duas paredes, em circunstâncias que indicam um suicídio no qual o falecido matou-se construindo, ele próprio, a parede na qual se prendera. Curiosos e assustados com a descoberta, o casal investiga informações sobre a casa, sendo revelada uma sucessão de ocorrências macabras envolvendo os antigos moradores.

O caso ora narrado baseia-se, livremente, no enredo da série “A Maldição da Residência Hill”, de 2018, disponível no serviço de streaming Netflix. Na história, além de reformar a casa, o casal, junto de seus filhos, tinha por costume residir nas propriedades que reformava. Nesse contexto, após a descoberta do corpo na parede, a família observou diversos fenômenos traumáticos durante sua estadia na casa.

Em situação hipotética que diverge do que se passa na série, suponha-se que, não obstante a descoberta assustadora, o casal (cético ou não acerca dos relatos sobrenaturais) apresenta preocupação legítima com o investimento despendido na aquisição do imóvel. Assim, ainda interessados nos rendimentos projetados, eles decidem levar a cabo a reforma inicialmente pretendida. Uma vez finalizada, o construtor entra em contato com um corretor, que o orienta no sentido de que, no estado americano do Massachusetts, onde exercia suas atividades, não haveria o dever de informar tal descoberta a futuros compradores - o que, conforme será demonstrado adiante, parece correto. Pouco tempo depois, o casal consegue revender a casa por um bom preço. O adquirente, no entanto, pouco após fixar residência na indigitada casa, é comunicado por vizinhos acerca dos fatos macabros e, sobretudo incomodado pela descoberta do corpo que esteve emparedado no porão, pretende desfazer a venda.

Embora pareça apenas um típico enredo ficcional de terror, narrativas semelhantes já foram apreciadas pelo Judiciário dos Estados Unidos. O mais famoso caso desta natureza foi o Stambovsky v. Ackley, do estado de Nova Iorque. Helen Ackley era proprietária de uma mansão e passou anos propagando aos quatro ventos que sua casa era mal-assombrada, gabando-se das diversas ocasiões em que teria tido contato com os fantasmas com quem alegava co-habitar. Sua história era dotada de visibilidade local, tendo sido reportada por jornais e revistas da região, com entrevistas concedidas por ela própria. Passados alguns anos, porém, Ackley parou de se pronunciar sobre o assunto, justamente na época em que colocou o imóvel à venda. Este acabou sendo comprado pelo casal Stambovsky, que, já finalizado o negócio, ficou sabendo da história sobrenatural pelo dono de um armazém da vizinhança, que perguntou se eram eles os novos proprietários da “mansão mal-assombrada”. Como não eram da região, os Stambovsky não conheciam os relatos, dignos de histórias de terror, que circundavam o local no qual pretendiam viver. Motivados pela crença na maldição ou (pior) na desvalorização do imóvel, o casal acionou a justiça buscando a anulação do negócio de compra e venda firmado; alegando que não o teriam realizado se soubessem dos eventos fantasmagóricos (ESTADOS UNIDOS, 1991).

Os Stambovsky perderam em primeira instância. O caso chegou à apreciação do tribunal regional do estado e, em 1991, a sentença a quo foi reformada: a corte superior deliberou pela anulação da compra e venda pactuada, com a devolução do valor já pago. Os julgadores notaram que a vendedora havia relatado a presença de fantasmas a uma fonte confiável - a revisão Seleções do Reader’s Digest -, de forma que não poderia negar sua existência perante os compradores no litígio judicial.

A decisão caminhou no sentido de que, embora não fosse juridicamente relevante ou faticamente comprovável que a casa abrigava fantasmas, o fato é que ela se tornou notoriamente conhecida por tais histórias, propagadas pela própria proprietária que, após passar anos deliberadamente alimentando esta crença, absteve-se de comunicá-la aos compradores. Assim sendo, entendeu a corte julgadora que ela falhou com seu dever de informação perante os Stambovsky, que não tinham conhecimento desse “defeito emocional” que causava a desvalorização da propriedade adquirida (e foi considerado considerado razoável que não o conhecessem, haja vista não serem familiarizados com a região).

Ainda, a corte nova-iorquina sustentou, a respeito do dever do comprador de se diligenciar e procurar os defeitos de toda natureza porventura existentes no imóvel que pretende adquirir, que até a inspeção e busca mais meticulosas não seriam capazes de revelar a presença de poltergeists, nem derrubariam a sombria reputação daquela propriedade perante a comunidade. Foi nesse contexto que, em célebre acórdão proferido pelo tribunal em 1991, constou que “em termos legais, a casa é assombrada”[1].

Em sentido diverso e afastando-se (mas nem tanto) do plano paranormal, menciona-se que, na Pensilvânia, em 2006, estava à venda uma casa na qual um homem matou a esposa e suicidou-se. Cientes do ocorrido, Kathleen e Joseph Jacono compraram a propriedade. No ano seguinte, a casa foi colocada no mercado e vendida para Janet Millien, sem qualquer menção à ocorrência macabra que ali teve lugar. Quando descobriu o fato, a compradora processou o casal, mas o juiz de primeiro grau julgou improcedente a demanda, tendo decidido que os vendedores não tinham a obrigação de informá-la sobre o “estigma psicológico” do imóvel, pois este não constituiria um defeito material, e apenas um defeito material seria apto a anular o negócio celebrado (ESTADOS UNIDOS, 2012).

A afirmação de que este exemplo não está tão distante daqueles relacionados a fenômenos sobrenaturais está amparada na ideia de que a motivação para buscar anular o negócio jurídico de compra e venda do imóvel é, em última instância, bastante similar. Trata-se de circunstâncias que socialmente relacionam aquela propriedade a ocorrências macabras, que podem flertar com eventos paranormais ou com o desconforto psicológico de viver em um ambiente com a “energia” de crimes e/ou de mortes violentas ou trágicas. Em algum nível, portanto, toda a discussão perpassa considerações metafísicas.

Ainda tomando como ilustrativo o cenário estadunidense, cita-se que a maior parte dos estados do país possui legislações acerca de propriedades estigmatizadas - em razão de crimes, mortes e/ou eventos sobrenaturais - e da existência ou não do dever de informar o comprador sobre este estigma.

Na Califórnia, por exemplo, a lei estabelece que suicídios e homicídios geram a estigmatização da propriedade e, por isso, devem ser informados aos compradores interessados, desde que tenham ocorrido nos três anos anteriores à data da venda do imóvel. Se tiverem ocorrido há mais tempo, o vendedor ou corretor apenas é obrigado a confirmar informações explicitamente requeridas pela contraparte (Código Civil do Estado da Califórnia, art. 1710.2). No Alaska e na Dakota do Sul podem ser encontradas disposições legais semelhantes, mas o prazo é de um ano antes da alienação do imóvel (respectivamente, Estatuto n. 08.88.615 c.1-2 do Estado do Alaska e Lei n. 43-4-44 do Estado da Dakota do Sul).

Em outros estados, embora a legislação disponha em sentido oposto (isto é, pela ausência do dever de informar tais circunstâncias), é curioso observar a referência expressa a fenômenos sobrenaturais. Em Iowa, consta na lei que não há obrigação de divulgar quaisquer homicídios, assombrações, atividades paranormais, suicídios ou qualquer outro tipo de ocorrência psicologicamente angustiante, sendo responsabilidade do comprador descobrir tais fatos (Código n. 558A.4 do Estado de Iowa). A legislação do Minnesota estabelece que não é necessário informar a respeito de mortes ou atividades paranormais percebidas na propriedade (Estatuto n. 513.56 do Estado de Minnesota). Em Massachusetts, estão listados dentre os fatos que estigmatizam a propriedade fenômenos alegadamente parapsicológicos ou sobrenaturais (Lei Geral do Estado de Massachusetts, Parte 1, Título XV, Capítulo 93, Seção 114), mas não há a necessidade de que sejam informados aos compradores.

No Brasil, o fascínio com casas mal-assombradas parece ainda não atingir patamar semelhante ao dos Estados Unidos. Merece menção, no entanto, um caso nacional da década de 1960, ocorrido em Curitiba, objeto de manchete no jornal “Última Hora”, que, em 5 de janeiro de 1962 noticiou: “Mistério: forças invisíveis levam pânico e terror ao Capão de Imbuia”. Na ocasião, uma família de 8 pessoas acionou a polícia apavorada com “fatos misteriosos” que vinham vivenciando no imóvel. Eles afirmavam que “mãos misteriosas” estavam destruindo móveis, apedrejando o prédio, destruindo telhas e danificando a cobertura da casa. Dando um passo além, juravam que um par de sapatos deixado ao lado da cama “dançava como se calçado por pés invisíveis” (FOGGIATO, 2022).

Dois dias após a primeira notícia, o “Última Hora” desmentiu a farsa. Concluiu-se que os proprietários tinham, nas palavras do diário, um “plano diabólico” por meio do qual pretendiam conseguir a rescisão do contrato de compra e venda do lote que haviam adquirido.

Com a repercussão do caso, foram levados ao local muitos curiosos, resultando em uma movimentação de pessoas e veículos inédita para o bairro curitibano. Relata-se que quem não ficou feliz com a história foi o proprietário do loteamento em que se situava a suposta casa mal-assombrada. O empreendedor pretendia lançar uma campanha de vendas em breve. A campanha teve que ser adiada, visto que seria desastrosa naquele momento, diante das alegações paranormais, que podiam afastar compradores e desvalorizar os imóveis.

Narrados esses episódios reais, propõe-se um exercício intelectual de retomada da questão posta no caso hipotético elaborado, livremente, a partir do enredo da série “Residência Hill”. Retoma-se: o casal, embora tenha encontrado um corpo sepultado sob a casa em condições suspeitas, opta por finalizar a reforma e revendê-la mesmo assim, sem informar o ocorrido ao comprador. Este, após descobrir o fato por intermédio de vizinhos, busca desfazer o negócio. 

A resposta para a questão hipotética colocada, à luz do direito civil brasileiro, perpassa por uma análise dos deveres pré-contratuais de informação incidentes em relações negociais dessa natureza. Na fase das tratativas, estabelece-se um jogo de informações no qual, presumindo uma relação paritária, divide-se entre as partes o ônus de informar e o ônus de se informar. A questão diz respeito, conforme colocado por Judith Martins-Costa, “ao que se deve falar (e ao que se pode e, por vezes, o que se deve calar) e para quem se deve falar” (MARTINS-COSTA, 2024, p. 231).

Especificamente no que diz respeito ao problema posto, deve-se perquirir: (i) se o fato de ter sido encontrado um corpo, “em condições suspeitas”, configura circunstância relevante o suficiente para ser informada no contexto das tratativas prévias à conclusão do negócio de compra e venda imobiliária; e (ii) em caso positivo, se referido ato deveria ser informado pelo devedor ao comprador, ou se incumbiria a este último diligenciar-se no sentido de apurar a “higidez espiritual” do imóvel que pretende adquirir.

Quanto ao primeiro ponto, tem-se que a análise da boa-fé e dos limites do dever pré-contratual de informação é necessariamente contextual. Consoante explicita Iñigo de la Maza Gazmuri: “para determinar as condições nas quais surgem os deveres pré-contratuais de informação, é necessário considerar que, no ordenamento jurídico, existem interesses cuja proteção justifica impor deveres pré-contratuais de informação (daí, por exemplo, a liberdade contratual e a lealdade contratual) e outros que, ao contrário, aconselham o estabelecimento de limites à imposição dos referidos deveres (por exemplo, o princípio da autorresponsabilidade e a criação de incentivos). Um estudo dos deveres pré-contratuais de informar exige identificar interesses cuja proteção justifica a imposição ou limitação desses deveres e determinar como organizar sua coexistência - ou seja, como ponderá-los - quando são contraditórios”[2] (DE LA MAZA GAZMURI, 2010, p. 373, tradução nossa).

Apesar da resposta inevitavelmente casuística, é possível identificar alguns elementos de substancialidade que permeiam a questão e que poderiam subsidiar uma fundada insatisfação do comprador em adquirir um imóvel “assombrado”. A própria tentação do vendedor de omitir a existência da informação - por receio de uma redução na procura do imóvel e por estar ciente que a superstição pode ser utilizada como fundamento de barganha para a diminuição do preço - indica estar-se diante de uma característica juridicamente relevante do objeto da prestação.

Com efeito, embora seja juridicamente irrelevante se uma casa é ou não mal-assombrada - inclusive como consectário da laicidade do Estado -, é juridicamente relevante que eventuais compradores (e a comunidade ao seu redor) acreditem que uma casa é mal-assombrada em razão de eventos traumáticos lá ocorridos. No atual estágio civilizacional, sobretudo em um país majoritariamente religioso como o Brasil, pode-se considerar que o cidadão-tipo teria algum nível de desconforto em adquirir uma residência em que passou uma ocorrência “macabra”. Referido fato bem poderia obstar a conclusão de um negócio ou, ao menos, ser tido como justificativa para uma desvalorização do bem no mercado imobiliário. Afinal, ainda que aquele comprador específico seja um completo cético, o fato de a comunidade ao redor apresentar esse incômodo pode ser suficiente para impactar o valor da propriedade.

É válido pontuar, contudo, as circunstâncias fáticas em que referida reputação se estabelece. Fatos corriqueiros, tais como uma morte natural, uma desventura pessoal, ou meras “fofocas” de vizinhos não são suficientes para tornar a casa “legalmente assombrada” (na curiosa expressão da corte de Nova Iorque). Está, aqui, a se cogitar de fatos com real potencial de impacto psicológico em um cidadão-tipo, tais como crimes graves, práticas aviltantes, dramas pessoais excepcionalmente impactantes, enfim, ocorrências que, inegavelmente, lançam sombras sobre a reputação de um imóvel sob a ótica de um contratante razoável e probo. O direito tampouco pode considerar característica subjetiva de contratantes que sejam excessivamente suscetíveis ou supersticiosos. Em razão do imperativo de segurança do tráfego jurídico, há de se trabalhar com dados objetivos e padrões de conduta médios.

Assentada a substancialidade da questão, a resposta ao segundo ponto depende da distribuição da dinâmica do ônus informacional. Recorrendo novamente às lições de Judith Martins-Costa, coloca-se como critério adequado à fixação das cargas do dever informacional o dado de poder ou não o interessado ter, por seus próprios esforços, acesso à informação cogitada. Em suas palavras: “se o lesado puder ter acesso, razoavelmente, à informação, não há, para a contraparte, o dever de informar: a inércia própria não desloca a responsabilidade para a esfera alheia” (MARTINS-COSTA, 2024, p. 232). No caso, a descoberta do corpo é uma informação de difícil (e mesmo irrazoável) apuração por parte do comprador, estando totalmente na esfera de controle do vendedor. Não se espera, diante de uma aquisição imobiliária, que se realize uma due diligence espiritual e inexistem cadastros públicos de locais “assombrados” (seja por fantasmas, seja por eventos traumáticos pregressos).

É possível, portanto, sustentar que, como regra, haveria um dever de informar por parte do vendedor que pretende passar para frente sua casa mal-assombrada. Apenas a título de exceção ele seria desonerado desse dever, por exemplo, quando o fato for de amplo conhecimento da comunidade, de modo que seria razoável o vendedor esperar que as tratativas já tomariam como pano de fundo a natureza “sombria” do bem negociado. Essa exceção pode ganhar concreção quando se pensa em casos célebres, tais como a conhecida “Casa Abandonada de Higienópolis”, em São Paulo, transformada em assunto nacionalmente debatido por um podcast de grande repercussão do jornalista Chico Felitti. Suponha-se que os crimes cometidos pela moradora, narrados por Felitti, tivessem ocorrido na casa de Higienópolis e que, poucos anos após a estreia do podcast, o imóvel tivesse sido colocado à venda. Neste contexto, parece razoável a suposição do vendedor de que os compradores  sabiam, ou, ao menos, poderiam saber da (má) fama do local e dos crimes ali engendrados. Situação semelhante poderia ter lugar em microcosmos de bairros ou cidades pequenas, onde determinados imóveis têm sua reputação consolidada e amplamente conhecida como “malditos”. A prova da exceção, nessas hipóteses, pode ser feita mediante depoimentos de testemunhas ou mesmo por constituir fato notório ao próprio juízo.

Constatada a existência, como regra, de um dever de informar, passa-se à análise das possíveis consequências jurídicas de uma omissão dessa informação por parte do vendedor. Eventual descumprimento do dever de informar pode ensejar consequências indenizatórias, pela aplicação da cláusula geral de boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil), ou mesmo configurar elementos a justificar a configuração de uma causa de anulação do contrato com fundamento no erro de fato (art. 138) ou no dolo (art. 147).

Na problemática, os institutos em questão dialogam e até mesmo se sobrepõem. A relação que se estabelece é de continente e conteúdo. Os deveres impostos pela boa-fé são mais amplos e podem, de forma mais lata, permitir a solução indenizatória. A verificação dos vícios de consentimento e a consequente anulação do negócio, por outro lado, têm em sua fattispecie requisitos mais estritos. Contudo, estes, pela própria estrutura normativa do erro de fato e do dolo omissivo, sempre perpassarão pela verificação de uma necessária situação de desconformidade com o padrão de conduta imposto pela boa-fé objetiva no que concerne aos deveres de informação aplicáveis ao caso.

Nesse sentido, é esclarecedora a colocação de Ana Prata: “o dever de esclarecimento [i.e. fundado na boa-fé objetiva] existe desde que, independentemente do conhecimento ou cognoscibilidade da sua essencialidade, haja ou possa haver, com a diligência exigível, conhecimento do erro. Isto é, desde que seja perceptível para uma das partes, usando da comum diligência, que a outra formou a sua vontade contratual com base num pressuposto erróneo - e independentemente do caráter essencial do elemento ou do motivo sobre que o erro incidiu, e menos ainda da recognoscibilidade de tal essencialidade, quando ela se verifica - tem essa parte o dever de alertar o errante, esclarecendo a situação. Não se exigindo, para a constituição desta obrigação in contrahendo, que o obrigado conheça ou não deva ignorar o carácter essencial do elemento sobre que o erro incide, nem sequer tal essencialidade, bem se compreende que a responsabilidade fundada neste ilícito pré-contratual não se restrinja às hipóteses em que o negócio venha a ser anulado com fundamento no erro” (PRATA, 2005, pp. 99-100) e, adiante, sintetiza a autora: “no quadro da responsabilidade pré-contratual, se justifica maior exigência quanto à lealdade da conduta dos contraentes do que no âmbito do regime dos vícios da vontade, dado o valor da segurança no comércio jurídico que neste último está implicado e no primeiro não se verifica” (PRATA, 2005, pp. 117-118).

A solução indenizatória, mais amplamente disponível, liga-se a uma possível pretensão de abatimento no preço em razão da desvalorização do imóvel tido por “mal-assombrado” em comparação a um imóvel-tipo. Os principais dados para a composição do quantum residem em uma possível pressão de negociação que poderia ter sido exercida por parte do adquirente, para redução do preço caso tivesse acesso à informação. Mas não somente: também pode ser um fator relevante a comparação entre o preço de um imóvel-tipo e do imóvel “assombrado” para fins de revenda a terceiros, visto que o fato pode dar azo a uma verdadeira redução na expectativa de incremento patrimonial que o comprador depositou no negócio. Nesse caso, não é preciso que o fato seja substancial para o comprador - no anglicismo, um deal-breaker -, basta que haja a percepção da compreensão errônea acerca do objeto do negócio (i.e. a natureza “mal-assombrada” do imóvel negociado) e o correlato impacto na fruição do bem representado por este fato, tais como a desvalorização patrimonial, o incômodo psicológico dos futuros residentes etc.

No que concerne à possibilidade de invalidação do negócio por vícios do consentimento, na opção do direito positivo brasileiro, que se filia à teoria da confiança, a configuração do erro liga-se à posição do declaratário e à sua percepção de que eventual informação erroneamente percebida pelo declarante é substancial à avença. Consoante sustenta Lucas Costa de Oliveira acerca desta posição teórica, o objetivo do Código Civil brasileiro, ao adotar a aludida teoria, é de “efetivar a segurança nas relações jurídicas e implementar a confiança entre as partes. Assim, a verificação do erro deve partir da análise do comportamento do declaratário – se foi diligente ou negligente” (OLIVEIRA, 2019, p. 36). Nessa linha de compreensão, o erro de fato aproxima-se do dolo omissivo, sendo distintos apenas em razão de o último exigir o efetivo conhecimento, enquanto o erro contenta-se com a mera cognoscibilidade (QUINTELLA, 2017).

Havendo, pois, o conhecimento ou mesmo a mera cognoscibilidade por parte do vendedor de que o fato em questão é substancialmente relevante - i.e., um deal-breaker - e de que o comprador não está dele ciente, é cabível a invalidação do contrato de compra e venda da casa “mal-assombrada”. É clara a relação, consoante colocado acima, com o apoio nas lições de Ana Prata (2005), de diferentes intensidades dentro de um mesmo espectro normativo entre a responsabilização indenizatória pré-contratual fundada na cláusula geral de boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) e a configuração de um vício de consentimento apto a anular o negócio (art. 138 ou art. 147 do Código Civil).

Nesse contexto, conclui-se que a omissão da informação da localização do corpo em circunstâncias “suspeitas”, colocada no exemplo hipotético trazido acima configura um dado juridicamente relevante sob a ótica do direito brasileiro. Daí extrai-se, a princípio, a existência, no Brasil, de um dever de informação de eventuais “vícios espirituais” de uma residência, em solução oposta àquela relatada como sendo a aplicável ao Estado de Massachusetts.

O eventual descumprimento do dever ora identificado pode dar azo à mera indenização fundada na violação dos deveres de boa-fé - ainda que não seja possível constatar ter sido o fato ocultado um dado substancial à celebração do negócio jurídico na perspectiva do comprador. Por outro lado, sendo cognoscível a substancialidade do fato, tem cabimento a anulação do negócio por erro, ou mesmo por dolo omissivo, a depender de ser o fato e sua substancialidade apenas cognoscível ou efetivamente conhecida pelo vendedor.

 

Notas e referências

DE LA MAZA GAZMURI, Iñigo. Los límites del deber precontractual de información. Cizur Menor (Navarra): Editorial Aranzadi, 2010.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Stambovsky v. Ackley (169 A.D.2d 254). Suprema Corte, Divisão de Apelação. New York, 1991.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Milliken v. Jacono (60 A.3d 133). Suprema Corte. Pennsylvania, 2012.

FOGGIATO, Fernanda. A casa mal-assombrada de Curitiba: das “pedras voadoras”, só ficou a história. Câmara Municipal de Curitiba, Curitiba, 14 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.curitiba.pr.leg.br/informacao/noticias/a-casa-mal-assombrada-de-curitiba-o-desenlace-das-pedras-voadoras. Acesso em: mar/2024.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024.

OLIVEIRA, Lucas Costa de. Aspectos controversos sobre o erro no negócio jurídico: uma análise a partir da tensão entre autonomia e confiança. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 19, p. 17-37, jan./mar. 2019.

PRATA, Ana. Notas sobre responsabilidade pré-contratual. Coimbra: Almedina, 2005.

QUINTELLA, Felipe. Decodificando o Código Civil: sobre a escusabilidade ou cognoscibilidade do erro. GenJurídico.com.br, 16 maio 2017. Disponível em: https://goo.gl/BPp36t. Acesso em: mar/2024.

[1] No idioma original: “as a matter of law, the house is haunted”.

[2] No idioma original: “para determinar las condiciones bajo las cuales surgen los deberes precontractuales de informar es necesario tener presente que, en el ordenamiento jurídico, existen intereses cuya protección justifica imponer deberes precontractuales de informar (así, por ejemplo, la libertad contractual y la lealtad contractual) y outros que, en cambio, aconsejan establecer límites a la imposición de dichos deberes (v. gr., el principio de autorresponsabilidad y la creación de incentivos). Un estudio de los deberes precontractuales de informar precisa identificar los intereses cuya protección justifica la imposición o limitación de dichos deberes y determinar cómo organiza el ordenamiento jurídico su convivencia - es decir, cómo los pondera - cuando son contradictorios”.

 

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