Estudar, para quê? (Parte 1)

21/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 21/03/2015

“Mi habitación está llena de ángeles invisibles que no dejan ningún rastro”.

A. J. Ayer

Parte 1

Em seu livro «The courtier and the heretic. Leibniz, Spinoza, and the Fate of God in the Modern World» (2006), Matthew Stewart recorda que alguns filósofos simplesmente expõem suas filosofias; quando acabam suas disquisições, penduram suas ferramentas de trabalho, voltam para casa e se permitem os bem merecidos prazeres da vida privada. Outros filósofos vivem suas filosofias. Têm por inútil toda filosofia que não determine a maneira como empregam seus dias, e consideram absurda qualquer parte da vida que não inclua sua filosofia. Estes filósofos nunca voltam à casa.

Estou convencido, para o que aqui interessa, que os melhores estudantes (e todos somos estudantes) são os que pertencem ao segundo destes grupos. Aqueles que fazem da solitária viagem individual de descobrimento, da curiosidade temerária, do cultivo da mente e da paixão não contida pelo conhecimento uma forma de vida. Nada é o bastante quando o objetivo é converter-se na melhor versão de si mesmo. Como disse em certa ocasião John Waters: “La vida no vale nada si no tienes una obsesión”. Explico.

Estudar é, sem lugar a dúvidas, um processo que implica grande esforço mental. Requer uma atividade cerebral custosa em tempo e também em consumo de energia, e a energia é um recurso limitado. Não se produz de forma automática, senão que exige profundidade, atenção dedicada, motivação, determinação e empenho intelectual: pensar resulta caro.

Por outro lado, a relevância e a atenção atribuídas à informação que se quer aprender é crucial. É bom ter informação, mas, mais importante que isso é ter conhecimento. Quer dizer: o passo de informação a conhecimento significa que atribuímos significado, que damos sentido à informação e que a usamos para um propósito, que somente prestamos atenção e incorporamos ao conhecimento o que é útil para nossa vida. Tanto assim que quanto maiores são as exigências cognitivas  derivadas da complexidade (e/ou necessidade) de aprender alguma informação, maior parece ser sua importância e dificuldade de apropriação.

A questão é que nos habituamos à (entranhada e ilusória) suposição de que uma informação relevante e difícil só pode ser adequadamente compreendida e assimilada quando é ensinada ou vem reforçada por alguma autoridade social. Uma espécie de tópico (lugar-comum) que delata a convicção, tansitada e frequentada por por muitos, de que o ato de estudar/aprender consiste, fundamentalmente, em “tragar” os conhecimentos transmitidos por um terceiro (professor), em aceitar sem discussão as opiniões alheias, em pensar sem fatiga com a cabeça dos demais. Solene insensatez.

Mas não somente isso. Esta crença compartida, que facilita nossa comum e cômoda atitude de “aprender” sem a moléstia e o esforço de perceber, processar, discernir e assimilar individualmente cada novo conhecimento aprendido ou habilidade adquirida, também tem algo não só profundamente antipedagógico, senão também imoral, vicioso e alienante: encerra o propósito suicida de fazer-nos permanecer em um vazio intelectual. Quero dizer, não se reconhece aqui – e o que é pior, se potencia e incentiva - a profunda distância que há entre “estudar como um fim em si mesmo” (“estudar para saber”) e “estudar como um meio para” (“estudar para aprovar”).

E da mesma maneira que uma gota de água nos proporciona indícios sobre sua composição química, o descaso e/ou a ignorância deliberada da extraordinária diferença que existe entre estas duas formas de estudar oferecem signos interessantes dos sintomas de um problema que produz as mais graves consequências. Problema, sobra dizer, que constitui a principal causa das misérias que permitem ou facilitam a indiferença e o desapego por um aprendizado realmente significativo. O objetivo passa a ser o de encher a memória e deixar o entendimento e o raciocínio vazios.

De fato, por culpa da nossa incapacidade para perceber o gigantesco abismo que há entre “estudar para saber” e “estudar para aprovar”  (i) olvidamos que não é o ato de estudar (sem atributos) o realmente valioso, senão o que fazemos com ele,  e (ii) nos acostumamos a viver no universo da ditadura dos “livros de ocasião”, da tirania dos resumos e anotações, da sobredose de informações inconexas e fragmentadas, do estudo desvinculado, desinteressado e irreflexivo. E já sabem o que dizem: “Se a única ferramenta que possuímos é um martelo, tudo começa a se parecer com um prego” (Abraham Maslow).

O que pretendo dizer é que “estudar” deixou de ser a busca virtuosa da própria excelência para converter-se em algo meramente instrumental, um meio ou um simples mecanismo pretendidamente “eficaz” e “seguro” para a autoafirmação e consagração profissional, ascensão e estabilidade socioeconômica, sem qualquer implicação com nossas atitudes pessoais e vitais, com nossa visão da vida e do mundo.

O único inconveniente é que esta compreensão sobre a tarefa de estudar, que em um primeiro momento parece necessária (sempre há algo de bem no pior mal e certa porção de mal no bem mais apreciado), tem um lado escuro e sinistro. Não é suficiente e, ademais, é nefasta, na medida em que termina indicando o seguinte: tudo o que estudamos é algo “externo” a nossa pessoa, um simples utensílio para assegurar-nos a subsistência e um eventual status socioprofissional; nossos estudos não são e nem constituem nosso “eu. Somos algo distinto do estudado, aquilo que enfrentamos como inimigo, ou no melhor dos casos, como um amigo ingrato. É simplesmente um instrumento, como uma muleta que nos ajuda a caminhar melhor, mas que se encontra fora do nosso ser: não faz parte e nem integra nossa substância. Algo esquisito, estranho e distante da realidade de nossa própria condição e situação.

Por esta via, qualquer aprendizado se constitui em (e é vivido como) uma facticidade alheia, em um “opus alienum” à existência de quem estuda/aprende e sobre o qual não tem nenhum controle. É algo que eu faço unicamente por necessidade, que cultivo recorrendo a um apego romântico ao “sacrifício” ou a uma espécie de “sofrimento justificado”: um mal necessário, um “mal menor”. Vida e estudo, vida e formação, são, assim, coisas diferentes; vetores que não se tocam, pontes que não se entrecruzam.

Isso significa que o estudar para aprovar implica não somente em transformar a virtude de estudar em uma atividade hostil, senão também em concebê-la como algo que existe fora do indivíduo e com a qual há que enfrentar-se. Esta forma de estudo, que Minor Salas denomina de “concepção instrumental do saber”, ignora claramente que o estudo/aprendizado não é uma entidade que se encontra “out there”, em algum lugar fora do indivíduo, senão que é sua própria vida, sua personalidade, sua existência.

Para dizê-lo de uma forma mais desafetada, o “estudar de forma instrumental” (para “aprovar”) tem o mesmo valor e significado da frase: “Mi habitación está llena de ángeles invisibles que no dejan ningún rastro”. Embora pareça revelar ou significar algo, carece de sentido e não contribui para fazer-nos melhores pessoas, para adquirir bom conhecimento, consolidá-lo e armazená-lo em nosso cérebro, a fim poder utilizá-lo no momento em que o necessitarmos; uma atividade deliberadamente banal e ineficaz, “una especie de mentira que te cuentas a ti mismo hasta casi creértela” (N. Warburton).

O resultado é uma merma na qualidade do conhecimento, porque os malabarismos mentais dedicados ao aprendizado superficial e aos estudos superficiais se traduzem em pensamento superficial: uma cabeça cheia de conhecimentos invisíveis que não deixam nenhum rastro.


Confira a parte 2!


 


Imagem Ilustrativa do Post: Autor desconhecido

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