A Estética[2] não pode ser uma categoria dissociada da vida do direito. Ao contrário, quando se compreende a função organizacional da Justiça em uma Sociedade, quando se procura serenidade para que se sobreponha a realidade insensata da violência, da miséria, das formas de segregação na vida dos povos, procura-se sempre uma perspectiva, um ângulo de beleza para que essa se torne cada vez mais possível num cenário de reinvenção da agradabilidade como axiologia do cotidiano. Por esse motivo, e para fins deste escrito, adota-se a terceira compreensão sobre a categoria Justiça por meio dos ensinamentos de Osvaldo Ferreira de Melo[3].
Ao se entender a Justiça a parte dessa compreensão, percebe-se que a Estética realiza uma importante missão na medida em que não deva ser vista apenas nas obras de arte, apenas nos deleites abstratos de seus criadores, apenas no detalhe barroco ou na perspectiva surreal de suas tonalidades. As obras de arte, entre o Renascimento e a Modernidade, já eram explicadas de modo mais detalhado numa perspectiva ideal, mais racional em autores como Kant e Hegel.
Esse último filósofo, por exemplo, sintetiza a ideia da arte dentro daquilo que enunciou sobre o Espírito Absoluto[4], ou seja, a Estética passa ser uma condição de busca pelo belo objetivo, pois, se a função da obra de arte é apenas imitar a natureza, o ser humano jamais conseguirá imitar de forma perfeita aquilo que o mundo natural apresenta como manifestação de existência. Nesse ponto, Hegel é muito claro: quando a obra de arte imita apenas a natureza, essa parece um verme que se rasteja tentando imitar um elefante[5].
É a partir desse entendimento que se analisa o que é Estética para o Direito nas lições de Gustav Radbruch e Osvaldo Ferreira de Melo. Nenhum dos dois autores afirmam que o Direito possa alcançar as suas pretensões, seus objetivos sem a presença da Estética. Para Radbruch, por exemplo, a Estética se assemelha ao entendimento de Hegel, ou seja, está na obra de arte, sejam nas pinturas, nas esculturas, nas poesias, na arquitetura.
O Direito e suas formas de manifestação, como é o caso da linguagem jurídica, são incapazes de entender a complexidade da experiência sensível sem o auxílio da Estética. Nesse caso, existem duas categorias que precisam ser destacadas a fim de se entender o fenômeno estético no Direito, quais sejam, Sensibilidade Jurídica[6] e o Sentimento Jurídico.
A primeira expressão é advinda daquilo que as nossas percepções são capazes de captar e sentir todos os dias. É a partir das profundas privações da Liberdade, da Igualdade, da Justiça, da Ética que se consegue identificar como um fenômeno pode ter valor no intuito de estabelecer a paz. Quando, no entanto, a experiência sensível mostra o que deve ser resguardado como fundamental para convivência humana, constata-se o trabalho do Sentimento Jurídico.
Essa categoria, segundo Radbruch[7], unirá duas situações opostas, bem como se manifesta no plano da racionalidade. As duas situações opostas são a sensibilidade e o preceito geral e abstrato do Direito. Por esse motivo, o autor citado insiste em destacar que a dimensão estética do Direito está na multiplicidade de suas antíteses[8]. Sem a presença da Estética na sua produção, interpretação e aplicação, o Direito Positivo de Kelsen se assemelha a um destino fatal na qual o individuo se despedaça[9].
Sob ângulo diferente, a Estética, em Osvaldo Ferreira de Melo, assume uma proposição mais humanista[10] e cujo conteúdo não está somente nas obras de arte, mas na própria socialidade[11] típica do cotidiano. É aqui que o mencionado autor desenvolve a perspectiva da Estética da Convivência[12].
Essa foi uma ideia original do autor, o qual percebeu que a clareza do Direito - entendido como espaço ao desenvolvimento da organização[13] social por meio da pluralidade estética – sintetiza a busca do belo objetivo o qual Hegel assinalava. Nesse caso, e segundo o Professor Osvaldo Melo, todas as pessoas são artistas de uma obra prima chamada cotidiano, pois é nesse ir e vir entre certezas e incertezas, nesse oceano dos conflitos de nossas antíteses que reside a beleza de ser humano.
A busca pela paz como finalidade permanente no Direito está nesses microcosmos relacionais de todos os dias. Neles busca-se o ser humano estetizado[14]. Essa é a fonte de uma Justiça que serve não apenas para corrigir os excessos, mas para identificar novos valores, novas possibilidade de uma defesa intransigente da Dignitas Terrae, da Liberdade, da Ética, da Igualdade, entre outros.
Talvez, quando nutrirmos valores renascentistas, como se pode observar a partir do pensamento de Melo, seja possível afirmar: A maior obra de arte que se desenvolve na convivência é a partilha do segredo humano que habita a outra pessoa. Não seria a Estética o primeiro desdobramento de um genuíno Direito da Pós-Modernidade[15]?
[1] Texto originalmente publicado no site “Conversando com o Professor”. Disponível em: http://conversandocomoprofessor.com.br/artigos/arquivos/aquino_para_publicar_pdf_artigos_e_ensaios_estetica_e_direito_-_radbruch_e_melo.pdf. Acesso em: 18 de fev. 2019.
[2] “Pelo termo estética referimo-nos não apenas ao reino do aparecer, nem somente ao que, no senso comum, definimos como aparência, mas ao imenso campo dos afetos, dos sentimentos, das emoções e, também, de tudo o que se refere à corporeidade: a sexualidade, a raça, o gênero, a idade, as formas da plasticidade corporal. Isso inclui a linguagem, por meio da qual apresentamos e representamos coisas e pessoas, seres inanimados e animados”. TIBURI, Marcia. Ridículo político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. [Edição Kindle]. Rio de Janeiro: Record, 2017, pos. 159-162.
[3] Justiça se manifesta "[...] como a relação entre as reivindicações da sociedade e as respostas que lhe dê a norma". MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1994, p.
[4] “[...] É que a beleza, [...], não constitui uma abstração do intelecto mas sim o conceito em si, concreto e absoluto, ou seja, a ideia absoluta”. HEGEL, Georg W. F. Estética: textos seletos. Tradução de Claudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2012, p. 22.
[5] HEGEL, Georg W. F. Curso de estética: o belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 119/120.
[6] “Para fins deste artigo, propõe-se o seguinte Conceito Operacional para essa Categoria Sensibilidade Jurídica: ato de sentir algo junto à pluralidade de seres, lugares, momentos e linguagens e que constitui base indispensável para o aperfeiçoamento do sentimento de Justiça, da Consciência Jurídica e convivência global”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. A mediação como experiência moral na pós-modernidade: reflexões ao desenvolvimento de uma política publica. In: FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila; GOULART, Juliana Ribeiro; GONÇALVES, Jéssica. Mediação como política pública. Florianópolis: EMais, 2018, p. 18.
[7] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 158.
[8] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. p. 159.
[9] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. p. 160.
[10] MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. p. 15.
[11] “[...] A socialidade é a capacidade de convivência, mas também de participar da construção de uma sociedade justa, na qual os cidadãos possam desenvolver as suas qualidades e adquirir virtudes”. CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005, p. 37.
[12] Sob o ângulo da Política Jurídica, a categoria denota sensação de “[...] harmonia e beleza que rescende dos atos de convívio social que se apoiam na Ética e no respeito à dignidade humana. Assim, podemos considerar como um dos fins mediatos da Política Jurídica a criação normativa de um ambiente de relações fundadas na Ética que venham a ensejar o belo na convivência social, em atendimento a necessidades espirituais latentes em todo ser humano [...]”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de Política Jurídica. Florianópolis: Editora da OAB/SC, 2000, 37/38.
[13] “[...] O ‘princípio organizador’ posto ao nível da racionalidade sensível não está ao alcance da racionalidade lógica. O ponto de fusão entre forma e conteúdo, linguagem e pensamento, conceito e imagem, é o grande desafio de todas as teorias estéticas”. PAVIANI, Jayme. A racionalidade estética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1991, p. 25.
[14] "[...] O ser eticizado é o inconformado com o injusto e o incorreto; o ser estetizado não pode conformar-se com o feio produzido pelo injusto e o incorreto, nem com o desinteressante, o tedioso e o medíocre nas relações de convivência. [...] Se a grande função da arte é propiciar prazer espiritual, que prazer maior será́ para o ser humano sensível do que o bem-conviver, a comunicação aberta, o sentir-se aceito na diversidade e descobrir-se com as condições psicológicas e culturais de aceitar o pensar do outro?". MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. p. 62.
[15] “[...] como pensar num direito pós-moderno fundamentado em princípios e valores do reino da dignidade humana?” Melo indica, ainda, os paradigmas da Modernidade ainda “[...] inspirativos e cheios de esperança, que, em certos casos, prometem durar bastante tempo, como meta dos oprimidos [...] e à [...] consciência por parte de cada um, das suas necessidades legítimas, de suas possibilidades e dos seus deveres e direitos”. MELO, Osvaldo Ferreira de. O papel da política jurídica na construção normativa da pós-modernidade. In: DIAS, Maria da Graça dos Santos; MELO, Osvaldo Ferreira de; SILVA, Moacyr Motta da. Política jurídica e pós-modernidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 92/93.
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