Este Direito, desconectado da realidade, tem alguma utilidade social? Uma reflexão em forma de crônica - Por Afrânio Silva Jardim

29/03/2017

Parei a minha leitura para este breve “desabafo”.

Provavelmente, amanhã, já não concorde integralmente comigo mesmo ... talvez esteja exagerando aqui ... Como disse, um dia, o grande professor José Carlos Barbosa Moreira, “em Direito tudo é provisório, nada é definitivo” ...

Depois das turbulências de ontem, com o povo gritando pelas ruas contra as medidas legislativas de um governo ilegítimo, me ponho a continuar a leitura de uma obra jurídica que deixara interrompida.

Ainda excitado com as questões sociais e políticas (nem falei na "lista do Janot"), me deparo com o seguinte texto, dentro de uma abordagem mais ampla sobre a democratização do processo nos dias de hoje:

"O processo, nessa perspectiva, mais do que instrumento do poder, é instrumento para a participação no poder, contribuindo para a otimização da participação do povo ou, em outros termos, para democratizar a democracia através da participação" (p.466; aqui é citado um famoso constitucionalista europeu)".

Por questões éticas, não cabe aqui identificar a obra, que é boa na perspectiva jurídica. O livro é um dos melhores e já o elogiei em escrito anterior. Uso esta obra apenas como um dos muitos exemplos do quanto nós, juristas, nos afastamos da “vida das pessoas”, nos afastamos do sentimento do “povo concreto”.

Melhor explicando, a minha reflexão é no sentido de “denunciar” o quanto são áridas as teorias jurídicas, o quanto são desconectadas da realidade social. Notem que também me considero um adepto da dogmática do Direito, embora crítico e em crise constante ...

Entretanto, quando os seus autores falam em tutela dos direitos fundamentais, quase de forma religiosa, falam em efetividade da tutela jurisdicional, em ordem jurídica justa e processo justo, me fazem pensar que eu estou no Planeta Marte ou mesmo fora do nosso sistema solar ...

Vejam o quanto tem de “romântico” este breve texto: “De outra parte, o procedimento também pode ser visto com verdadeiro canal para a participação popular no poder e na sociedade, concretizando os ideais da democracia participativa”. (p.485).

Pouco antes, os autores asseveram que “o processo não pode mais ser visto como uma relação jurídica processual”. Entretanto, no parágrafo seguinte, dizem ser evidente existir uma relação entre as partes e o juiz, sendo irrelevante se é uma única relação que se desenvolve ou são várias relações. (p.486). Duas páginas após, encontramos essa assertiva: “Não há como, nem por que, separar a noção de procedimento da de processo, uma vez que o procedimento que revela os propósitos do Estado Constitucional nada mais é do que o processo jurisdicional do Estado contemporâneo” (p.488, in fine). Não consigo compreender como duas “categorias jurídicas” sejam apenas uma “categoria jurídica”, vale dizer, a mesma “categoria jurídica” (sic).

Julgo que, se estamos no plano da dogmática da “ciência” processual, não podemos tornar o “culto” desmedido aos chamados Direitos Fundamentais como o objeto central do nosso estudo, de nossa reflexão. Deixemos isto para o relevante Direito Constitucional moderno.

A “aridez” desta dogmática, que escandaliza o cidadão comum, fica patenteada quando deparamos com explicações como estas: “O direito ao processo justo goza de eficácia vertical, horizontal e vertical com repercussão lateral. O mesmo se diga de seus elementos estruturais”. No parágrafo seguinte, encontramos a seguinte afirmativa: “O direito ao processo justo é multifuncional. Ele tem função integrativa, interpretativa, bloqueadora e otimizadora”, (p.492).

Por vezes, eu fico pensando: será que nós, juristas, vivemos no mesmo mundo dos simples mortais??? Os processualistas estão mesmo acreditando que o processo judicial é uma forma de participação do povo nas decisões jurisdicionais?

Se for esta participação que legitima a função jurisdicional do Estado, estamos todos "deslegitimados" e é preciso avisar a alguns juízes que atuam na esfera penal ... "Santa ingenuidade" desta elite de juristas que sai da sala de aula para o seu suntuoso escritório e vice-versa.

Como disse antes, já estou me arrependendo do que estou dizendo aqui, mais cedo do que esperava e vou voltar para ler aqueles textos de ficção jurídica ...

Quero antes confessar que, quando estou tratando de escrever ou falar sobre o Direito, eu mesmo procuro assumir um rigor sistemático. Vale dizer: me considero um "dogmático" no plano jurídico. Busco interpretar as normas jurídicas, em uma perspectiva sistemática, buscando a sua racionalidade ou, como dizem alguns, a "lógica interna do sistema". Depois, por vezes, eu critico o que tentei demonstrar como realidade jurídica. Primeiro, é preciso conhecer o objeto de nosso conhecimento para, depois, desvalorá-lo.

Embora reconheça que a dogmática jurídica é absolutamente necessária para o estudo "científico" do Direito, embora reconheça também que ela pode ser até um freio ou limite ao poder estatal em geral (mormente em um cenário de ativismo judicial), acho que este estudo asséptico do Direito não tem muita relevância para a vida das pessoas e nos lança para um "mundo abstrato", totalmente desconectado da realidade.

De qualquer forma, peço licença para parar por aqui, já que vou voltar para aquela obra que me serviu de exemplo para demonstrar o quanto nós, juristas, podemos ser considerados irrelevantes para a vida real das pessoas...

Não sei se a obra é de ficção jurídica ou se o próprio Direito já é uma ficção por si mesmo ...

Lógico que estou me referindo ao "direito burguês", reproduzido por nós, juristas abstratos. O verdadeiro Direito é concreto e reproduz as relações de produção e circulação de bens em uma determinada sociedade, sendo um mecanismo de controle social, imposto por quem detém o poder político, quase sempre amparado pelo poder econômico.

O Direito pertence ao “mundo da cultura” e, por conseguinte, retrata a estrutura econômica de um determinado modelo social. Este Direito é que interessa ao povo conhecer, criticá-lo e, se for o caso, “lutar” para modificá-lo.

Agora, se nós, juristas, “engamos” o povo com categorias abstratas e conceitos distantes da realidade, estaremos ajudando a perpetuação deste determinado sistema de poder.

Agora, chega. Tenho de voltar para o mundo abstrato das ideias jurídicas ... .


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