Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Urgente
Por que tanta violência?
O que aconteceu com nossa humanidade?
Ao invés de gerar, criar, consolar,
Nos perdemos em atos insanos, bárbaros.
Como obstar esta violência que
destrói corpos e almas?
Onde estaria o verdadeiro sentido de civilização?
Nos perdemos...
Naturalizamos a violência,
nos acostumamos com a dor,
com o agredir o outro,
a redicularizá-lo, maculá-lo.
É preciso ressignificar nossas ações,
É preciso reconhecer nossas fragilidades,
É preciso uma transformação ética,
que nos liberte da guerra,
do descompromisso com o outro.
É urgente a revolução do amor,
que passa por algo “simples”:
Escutar a criança.
Ela pede o nosso olhar,
Ela exige cuidados.
Exige que nasçamos para ela,
uma díade: responsabilidade e proteção.
(Josiane Rose Petry Veronese)
O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n. 8.069, de 13 de julho de1990 - completa neste ano de 2023, trinta e três anos.
A normativa anterior, o Código de Menores - Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979 - estabelecia a Doutrina da Situação Irregular, a qual constituía um sistema em que o “menor de idade” era objeto tutelado pelo Estado, sobrelevando a responsabilidade, na forma de culpabilização, da família. Em seu art. 2º, considerava o “menor em situação irregular” aquele que se encontrava em seis situações distintas, quais sejam: (i)o menor abandonado (em saúde, educação e instrução); (ii)a vítima de maus-tratos ou castigos imoderados; (iii)os que se encontravam em perigo moral; (iv)os privados de assistência judicial; (v)os desviados de conduta; e, por fim, (vi)o autor de infração penal.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, do Estatuto da Criança e do Adolescente, rompe-se com o modelo inquisitorial da Doutrina da Situação Irregular e instituiu-se um novo e garantista paradigma: a Doutrina da Proteção Integral.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, dispõe, em seu art. 1º., sobre a proteção integral à criança e ao adolescente e, em seu artigo 2º, diferencia criança de adolescente, considerando criança a pessoa de até 12 anos de idade incompletos e, adolescente, aquela entre 12 e 18 anos de idade. Quando o Estatuto se referiu ao status de criança e de adolescente, quis caracterizar aqueles seres humanos em peculiares condições de desenvolvimento, devendo ser, em todas as hipóteses, ontologicamente respeitados.
Conforme o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei”, assegurando-se-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Da leitura deste artigo observam-se três grandes princípios: a) às crianças e aos adolescentes são assegurados todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana; b) têm direito à proteção integral a eles dispensada no Estatuto; c) a eles são garantidos todos os instrumentos necessários para a afirmação de seu desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, em condições de liberdade e dignidade. Saliente-se que a Lei da Primeira Infância, Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, acrescentou em seu parágrafo único: “Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, incorporando a orientação constitucional, disciplinou, em seu artigo 4º, que é “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Em complemento às disposições constitucionais e às exigências próprias de tal artigo, a ele foi acrescentado um parágrafo, o qual enumerou alguns dos procedimentos indispensáveis para a garantia de prioridade exigida pela Constituição, quais sejam, “primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias”, “precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública”, “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” e “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Não pretende tal enumeração ser exaustiva, pois a Lei não poderia especificar todas as situações em que deverá se assegurar a preferência à infância e à adolescência, tampouco todas as formas de garanti-la.
Por absoluta prioridade devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes. Além de descrever e enumerar os direitos da criança e do adolescente, o Estatuto indica o mecanismo de sua exigibilidade. Desse modo, a "garantia de prioridade" compreendida no parágrafo único do artigo 4° será promovida e fiscalizada, em especial, pelo Ministério Público, nos termos de suas funções institucionais (art.129, CF).
O artigo 5° do Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta a última parte do artigo 227 da Constituição Federal, que visa proteger todas as crianças e adolescentes da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão e todos os atentados aos seus direitos, quer por ação ou omissão. Os mandamentos constitucional e estatutário têm sua fonte no 9° Princípio da Declaração Universal dos Direitos da Criança da ONU: "A criança gozará de proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma...". Com a Lei n. 8.069/1990, as crianças e os adolescentes passam a ser sujeitos de direitos e deixam de ser objetos de medidas judiciais e procedimentos policiais, quando expostos aos efeitos da marginalização social decorrente da omissão da sociedade e do Poder Público, pela inexistência ou insuficiência das políticas sociais básicas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao dispor sobre a proteção integral à criança e ao adolescente afirma que a criança é a pessoa até doze anos incompletos. Pessoa, por seu turno, é o ser que se forma na concepção, portanto traz a defesa do nascituro. Essa defesa ganha forças com o a redação do art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual assegura a proteção à vida e à saúde da criança mediante a efetivação das políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Consoante se depreende do art. 8º e seus parágrafos, conforme redação dada pela Lei n. 13.257, de 2016 (Marco Legal pela Primeira Infância)[1], o início da proteção integral ocorre com aquele que ainda não nasceu, mas já foi concebido, ou seja, o nascituro, quando é assegurada à gestante o atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Os princípios a serem seguidos na interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente são: os fins sociais, o bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a condição da pessoa humana em desenvolvimento. O art. 6o traz como subsídio para a interpretação a referência ao bem comum, ou seja, àqueles valores que visam à construção de um Estado de Justiça e buscam prioritariamente o atendimento das necessidades da coletividade; aos direitos e deveres individuais e coletivos, e à condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, razão pela qual necessitam de uma proteção especial no zelo de seus direitos.
Muitos são os desafios que decorrem da atuação na esfera do Direito da Criança e do Adolescente, ramo jurídico autônomo, que por si só sofre o descaso de muitas instituições de ensino – públicas e particulares – que não tinham a sua previsão no quadro das disciplinas que eram ofertadas no curso de graduação em Direito, fato este que sofreu alteração, a partir de 2023, há que se ter a sua previsão nos currículos.
Enfim, apreende-se que todos os dispositivos presentes no texto constitucional, em especial os artigos 227 e 228, bem como na legislação ordinária (sobretudo a Lei 8.069/1990) pretendem a consolidação de um novo modelo social que priorize o desenvolvimento sadio de nossas crianças e adolescentes. Todavia, a tão difícil realidade que vivemos, com violências de todo ordem, aponta, infelizmente, um modelo societário no mais das vezes desumano e distante dos ideais da fraternidade, do efetivo compromisso com o outro. E questionamos: como suscitar nas crianças e adolescentes o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais, ao meio ambiente, ou mesmo, como fomentar ou imbuir na criança e no adolescente o respeito aos seus pais, a sua própria identidade cultural, idioma, valores, se tudo isso lhes é negado?
Basta de tantas omissões, descasos e violências. Trinta e três anos aponta que toda uma trajetória temporal já ocorreu, inclusive, não apenas uma mudança de século, mas de milênio. Não nos conformemos, realidades precisam ser alteradas e depende de um esforço comum. A criança não é um projeto para o amanhã, a criança e o adolescente são o nosso hoje!
Notas e referências
VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança – 30 anos. Salvador, JusPodivm, 2019.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Das Sombras à Luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito Penal Juvenil e responsabilização estatutária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e organizadora). Direito da Criança e do Adolescente: Novo curso - novos temas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Interesses difusos da criança e do adolescente. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
VERONESE, Josiane Rose Petry (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e organizadora). Nejusca 25 anos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[1] Art. 8 o É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.
§ 1 o O atendimento pré-natal será realizado por profissionais da atenção primária.
§ 2 o Os profissionais de saúde de referência da gestante garantirão sua vinculação, no último trimestre da gestação, ao estabelecimento em que será realizado o parto, garantido o direito de opção da mulher.
§ 3 o Os serviços de saúde onde o parto for realizado assegurarão às mulheres e aos seus filhos recém-nascidos alta hospitalar responsável e contrarreferência na atenção primária, bem como o acesso a outros serviços e a grupos de apoio à amamentação.
§ 4 o Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal.
§ 5 o A assistência referida no § 4 o deste artigo deverá ser prestada também a gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção, bem como a gestantes e mães que se encontrem em situação de privação de liberdade.
§ 6 o A gestante e a parturiente têm direito a 1 (um) acompanhante de sua preferência durante o período do pré-natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato.
§ 7 o A gestante deverá receber orientação sobre aleitamento materno, alimentação complementar saudável e crescimento e desenvolvimento infantil, bem como sobre formas de favorecer a criação de vínculos afetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança.
§ 8 o A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos.
§ 9 o A atenção primária à saúde fará a busca ativa da gestante que não iniciar ou que abandonar as consultas de pré-natal, bem como da puérpera que não comparecer às consultas pós-parto. § 10. Incumbe ao poder público garantir, à gestante e à mulher com filho na primeira infância que se encontrem sob custódia em unidade de privação de liberdade, ambiência que atenda às normas sanitárias e assistenciais do Sistema Único de Saúde para o acolhimento do filho, em articulação com o sistema de ensino competente, visando ao desenvolvimento integral da criança.
Imagem Ilustrativa do Post: no rio formoso 3 // Foto de: Manu Sanches // Sem alterações
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