ESTADO DE DIREITO, FIDELIDADE E DECISÕES JUDICIAIS COLEGIADAS: O CASO BRASILEIRO*

05/08/2024

Gerald Postema, um dos mais influentes expoentes na filosofia política e jurídica contemporânea, combina prosa elegante e clareza analítica em seu livro Law’s Rule: The Nature, Value and Viability of the Rule of Law. Em uma rica análise da noção de Estado de Direito, Postema afirma que a ideia central deste conceito é prover “proteção e recurso contra o exercício arbitrário do poder, por meio das ferramentas características do Direito”[1]. Esta ideia central se articula em uma concepção de Estado de Direito que se sustenta em três princípios: soberania do Direito, igualdade aos olhos do Direito, e fidelidade em relação ao Direito.

Neste artigo, preocupo-me com um destes princípios: o da fidelidade ao Direito. A fidelidade corresponde a uma das teses principais do livro de Postema: a de que o Direito só é capaz de prevenir o abuso de poder se houver um etos (ethos) específico na sociedade, baseado em responsabilidades mútuas. De acordo com Postema,

“A tese da fidelidade sustenta que o Estado de Direito somente será robusto em uma comunidade política quando todos os seus membros, e não apenas a elite jurídica ou governante, considerarem uns aos outros, e especialmente os oficiais jurídicos, responsáveis de acordo com o Direito”[2].

Em outras palavras, a fidelidade envolve uma espécie de comprometimento, compartilhado entre todos os integrantes de uma comunidade política, no acompanhamento, fiscalização e responsabilização mútuas quanto às obrigações jurídicas – ou seja, corresponde a efetivo zelo na observância do Direito. Contudo, podemos nos questionar se há este etos da fidelidade no Brasil e, de forma mais específica, se ele transparece nas práticas deliberativas de nossas cortes judiciais. Como argumento a seguir, o modo como a deliberação colegiada está estruturada no Judiciário brasileiro prejudica (quando não inviabiliza) o etos da fidelidade.

Devemos fidelidade não apenas ao Direito, mas uns aos outros[3]. Assim considerada, a fidelidade ganha especial relevância em decisões colegiadas: nestes casos, a deliberação resulta em uma decisão do tribunal, que não pode ser a simples soma da decisão de cada juiz. Mesmo quando há divergências entre os julgadores, o que se espera é uma decisão precedida por debate e argumentação racional. A decisão deve refletir uma única voz – deve ser uma decisão comum entre pares, uma decisão institucional. Ou, considerando o apreço de Postema por analogias musicais, os juízes em deliberações colegiadas são como uma orquestra performando um concerto: cada músico toca de acordo com sua partitura, mas ao final temos uma única música executada pela orquestra.

Contudo, frequentemente, não é isso que ocorre nos tribunais brasileiros. Neste ponto, vale observar nossas práticas deliberativas judiciais. Ao descrever o modo como as cortes brasileiras trabalham, José Rodrigo Rodriguez salienta alguns pontos importantes. Além do apelo aos argumentos de autoridade (como “as festejadas lições” de algum “renomado jurista”), as decisões colegiadas constituem, na realidade, simples agregado de opiniões. Não é sem razão que cada magistrado apresenta um “voto” para compor a decisão do tribunal. Por tal razão, Rodriguez afirma que nossas práticas deliberativas judiciais são uma espécie de “justiça opinativa”[4]. Segundo o autor, tal prática se explica, ao menos parcialmente, pelo fato de as deliberações serem públicas, e até mesmo televisionadas – o que significa que cada juiz está comprometido com o oferecimento de uma opinião fundamentada para uma audiência, ao invés de construir a melhor resposta ao caso concreto, o que envolveria argumentação e raciocínio sistemáticos[5].

Como é possível perceber, este modelo de deliberação colegiada não favorece o princípio da fidelidade. Por estarem focados na construção de suas próprias visões sobre um caso, muitos juízes buscam apenas o protagonismo, e há clara supressão do debate verdadeiro em nível intrainstitucional. Muitos argumentos não são analisados, desconstruídos ou mesmo rejeitados – são considerados, tão somente, como partes do “voto” de cada magistrado. Como poderíamos esperar um etos de responsabilidade mútua em um modelo como este? Se não bastasse, este modelo favorece a entrega de um resultado, mas não de uma boa resposta para os casos. Uma vez que o resultado tenha sido obtido, as razões que o constituem são, muitas vezes, ignoradas em casos futuros. Não é difícil notar como este modelo atrapalha a certeza e a previsibilidade jurídica – valores que também são associados ao Estado de Direito.

Algumas medidas podem ser tomadas para minimizar estes problemas. Em um interessante estudo[6], Conrado Hübner Mendes analisa alguns parâmetros para avaliar o desempenho deliberativo, em termos democráticos, de cortes constitucionais. Tais parâmetros podem ser pensados como efetivos ônus argumentativos. Três são particularmente importantes.

Inicialmente, um parâmetro geral: a densidade e consistência jurisprudencial. Tal parâmetro implica no conhecimento de precedentes e na consciência de que a decisão atual servirá como precedente para decisões futuras. Uma cultura jurídica sólida pressupõe algum nível de certeza com relação às decisões anteriores dos tribunais – do contrário, as cortes sofreriam de “amnésia institucional” a cada julgamento[7].

Outro parâmetro, específico do momento deliberativo, corresponde à qualidade deliberativa interna (ou deliberação intrainstitucional). Neste caso, para que haja uma deliberação colegiada bem-sucedida, é fundamental que os juízes adotem determinadas atitudes e comportamentos: a abertura para ser convencido e mudar de posição, bem como o uso de razões publicamente defensáveis. Disso se segue que a posição de cada juiz não deve ser “formada em casa ou na paz do seu gabinete, mas no fórum público (ainda que o ‘público’ limite-se ao colegiado)”[8].

O terceiro parâmetro, específico do momento pós-deliberativo, se relaciona com a composição de uma decisão escrita: a identidade institucional. Este parâmetro se traduz no esforço de traduzir e documentar uma deliberação colegiada enquanto uma decisão supraindividual, o que não se confunde com a soma dos votos isolados de cada magistrado[9].

Após apresentar estes e outros parâmetros, Mendes analisa o modo como eles operam nas deliberações do Supremo Tribunal Federal, chegando a conclusões similares às apresentadas por Rodriguez. Mendes ressalta a baixa frequência com que os ministros mudam suas próprias posições, pois já chegam aos julgamentos com votos prontos, que são lidos durante as sessões. Por si só, tal fato poderia revelar uma desconsideração por seus colegas e pelas demais posições defendidas durante o julgamento. Além disso, cada posição (i.e., voto) é pensada como uma peça de erudição individual, reproduzindo, com frequência, o estilo enciclopédico dos manuais jurídicos – aos custos de uma verdadeira autoria institucional[10].

Juristas imersos na prática forense dificilmente discordariam das constatações feitas por Conrado Hübner Mendes e José Rodrigo Rodriguez. Ao observarmos o modo como os sistemas deliberativos colegiados dos tribunais brasileiros operam, ficam evidentes os problemas relacionados com o princípio da fidelidade ao Direito, na forma apresentada por Gerald Postema. Há, portanto, muito espaço para estudos jurídicos que ainda não alcançaram proficuidade e visibilidade: a reflexão e a construção de desenhos institucionais aptos a promover a qualidade argumentativa de decisões colegiadas.  Garantir um modelo adequado de deliberação judicial se torna uma responsabilidade para todos nós; como afirmou Postema, “defender o Estado de Direito é um empreendimento cooperativo”[11].

 

Notas e referências:

*O presente artigo corresponde ao trabalho apresentado pelo autor por ocasião do V Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política, no dia 12 de março de 2024, na Faculdade de Direito da UFMG.

[1] POSTEMA, 2022, p. 18, tradução livre.

[2] POSTEMA, 2022, p. 66, tradução livre.

[3] “O argumento é que, em uma comunidade caracterizada por um Estado de Direito robusto, prestar contas [accountability] é um poder normativo comunicado – distribuído e compartilhado. Todos os membros de uma comunidade têm uma responsabilidade mútua no exercício deste poder. Cada membro deve esta obrigação uns aos outros – a obrigação é mútua e geral” (POSTEMA, 2022, p. 72, tradução livre).

[4] RODRIGUEZ, 2013, p. 62-63.

[5] RODRIGUEZ, 2013, p. 63.

[6] MENDES, 2011.

[7] MENDES, 2011, p. 349.

[8] MENDES, 2011, p. 352.

[9] MENDES, 2011, p. 353.

[10] MENDES, p. 357-359.

[11] POSTEMA, 2022, p. 70, tradução livre.

MENDES, Conrado Hübner. Desempenho deliberativo de cortes constitucionais e o STF. MACEDO JR., Ronaldo Porto; BARBIERI, Catarina Helena Cortada (org.). Direito e interpretação: racionalidades e instituições. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 337-361.

POSTEMA, Gerald J. Law’s rule: the nature, value and viability of the rule of law. Oxford: Oxford University Press, 2022.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

 

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