Estabilização da tutela provisória de evidência?

22/09/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

Ainda que a nomenclatura empregada pelo legislador não tenha sido das mais felizes, a tutela provisória pode ser definida como a tutela voltada a combater os malefícios do tempo no processo, em homenagem ao princípio da isonomia material. Seu objetivo primordial é proteger situações excepcionais, que exigem um tratamento diferenciado daquele normalmente aplicado dentro de um processo. De fato, em regra, a construção estruturante do processo parte de uma lógica de neutralidade, segundo a qual não se pode alterar a situação fática existente até o seu encerramento, quando finalmente torna-se possível afirmar quem tem razão sobre o caso deduzido em juízo. No entanto, em algumas circunstâncias, se o direito de uma parte é evidente ou está em risco de perecimento, ou ainda, se o próprio resultado útil do processo está em vias de ser comprometido, é razoável permitir uma modificação na situação fática da questão debatida, para que as partes possam suportar melhor a natural demora do processo.

Assim, a tutela provisória pode ser considerada como uma modalidade de tutela diferenciada, fundada na técnica da antecipação de um provimento judicial dentro de um módulo procedimental. Exatamente por não exigir uma dilação procedimental, tem-se que esse tipo de provimento é feito sobre uma cognição sumária (juízo de probabilidade) e não exauriente (juízo de certeza). Ainda assim, o legislador se curvou à prática forense existente no regime do CPC de 1973 e previu no Novo CPC que o juiz pode deferir “tutela provisória” na sentença (art. 1.012, § 1º, V). Aqui, no entanto, não se trata propriamente de uma tutela provisória, uma vez que a sua cognição não é sumária, mas sim, de uma cognição exauriente. Trata-se, em verdade, de uma técnica concebida para permitir ao juiz que prolata a sentença a possibilidade de afastar o efeito suspensivo de uma eventual apelação manejada contra um comando seu, abrindo caminho para que esta prestação seja executada provisoriamente. Trata-se de uma situação de difícil conjugação teórica, fruto da injustificável manutenção do efeito suspensivo como regra à interposição da apelação (art. 1.012, caput, do CPC).

A maioria das regras sobre o funcionamento das tutelas provisórias estão concentradas no terço final da Parte Geral do Novo CPC, em seu Livro V (arts. 294 a 311), inteiramente dedicado ao tema. Essa, talvez, tenha sido uma das grandes conquistas do Novo Código: reunir sob a mesma rubrica as regras sobre o tema que se encontravam espalhadas pelo CPC de 1973.  Infelizmente, no entanto, a maioria das regras inseridas neste Livro V foram copiadas do CPC Revogado, ainda que com alguns aprimoramentos e uma melhor disposição.

De qualquer modo, importante frisar que, apesar do texto legal não ter deixado isso claro, a tutela de evidência e a tutela antecipada fazem parte de um mesmo segmento: são tutelas provisórias satisfativas. Isso porque ambas têm como meta proteger não o resultado útil do processo, mas o direito subjetivo deduzido em juízo. Com efeito, a tutela provisória cautelar objetiva assegurar a eficácia e a autoridade das decisões judiciais. Por isso, o seu deferimento não implica, pelo menos diretamente, na satisfação do direito almejado. Em outras palavras, a tutela cautelar visa apenas assegurar que a Justiça tenha tempo hábil para realizar a devida e adequada prestação jurisdicional sem a deterioração do direito que se pleiteia (segurança da execução).

No que tange às tutelas provisórias satisfativas, estas se destacam por buscar impedir ou extinguir o perigo de dano por meio da efetivação do direito pleiteado, conferindo provisoriamente ao interessado a instantânea asseguração das vantagens que pleiteia na demanda (execução para segurança). Seu objeto, portanto, está imiscuído com o objeto da pretensão principal, fato que ressalta a sua provisoriedade.

Outro aspecto que merece ser sublinhado, nestas linhas iniciais, diz respeito à forma como a tutela provisória pode ser ventilada. Nesse sentido, o art. 294 do CPC estabelece que as tutelas provisórias podem ser requeridas dentro de um processo já em curso, em caráter incidental, ou através de uma ação preparatória, em caráter antecedente. O problema é que o legislador, ao fazer essa previsão, disse textualmente que somente as tutelas de urgência (antecipatórias e cautelares), poderiam ser tratadas em caráter antecedente. Com isso, a impressão que se tem é que o legislador excluiu a possibilidade da apresentação de uma ação preparatória para obtenção de uma tutela de evidência.

A razão dessa diferenciação seria amparada, em primeiro lugar, pelo fato de que as ações preparatórias teriam como fundamento essencial a urgência em se obter o provimento judicial, caraterística que não integra o núcleo constitutivo das tutelas de evidência (art. 311 do CPC). Em segundo lugar, a robustez dos requisitos exigidos para a concessão da tutela de evidência também seria estruturalmente incompatível com a precariedade prevista para a elaboração de uma petição inicial abreviada, como aquela descrita no caput do art. 303 do CPC, que não precisa preencher todos os requisitos do art. 319 do CPC.

Ainda assim, apesar da excelência destas ponderações, parece correto concluir que o legislador andou bem ao afastar a possibilidade de postular uma tutela de evidência por meio de uma ação preparatória. De fato, como já dito, embora a tutela de evidência não tenha como pressuposto a urgência, ela também busca afastar os efeitos danosos do tempo no processo. Portanto, o eixo central da tutela de evidência também se coaduna com os objetivos perseguidos numa ação preparatória. Além disso, a possibilidade de apresentação de uma petição inicial simplificada, nos temos do art. 303 do CPC, representa uma faculdade processual e não uma obrigação.

Além disso, tratando-se de uma modalidade de tutela provisória satisfativa, a tutela de evidência não poderia receber um tratamento diferenciado em relação à tutela antecipada. Na verdade, uma tutela antecipada pode se transformar, com o passar do tempo, em uma tutela de evidência e vice-versa. Basta pensar, por exemplo, num caso onde a urgência desapareceu, mas novos documentos ou a fala da parte requerida transformaram o direito do autor numa questão evidente. Pior, é perfeitamente possível imaginar situações onde os requisitos da tutela antecipada e da tutela de evidência se façam presentes, simultaneamente.

Por todos esses motivos, a conclusão preliminar que se chega é que o legislador não deveria ter excluído a possibilidade da tutela de evidência ser perseguida por meio de uma ação preparatória, de caráter antecedente.[1] A questão que se impõe, portanto, é saber se seria possível aplicar, por analogia, as regras previstas para o pedido de tutela requerido em caráter antecedente às tutelas de evidência (arts. 303 e 304). Dito de outra forma, seria necessário perquirir se a tutela de evidência poderia ser postulada em caráter antecedente e, neste caso, se estabilizar.

Mais uma vez, a resposta parece ser afirmativa. Antes de mais nada, necessário lembrar que essa não foi a única situação onde o legislador deu tratamento excludente à tutela de evidência. De fato, as regras sobre a responsabilidade civil processual pelos danos causados em decorrência da concessão da medida (art. 302) e sobre a possibilidade de exigir a prestação de caução para a concessão da medida (art. 300, § 1º) estão previstas, no texto legal, na parte dedicada à tutela de urgência. Assim, numa interpretação literal, elas não seriam aplicáveis às tutelas de evidência. De modo que a aplicação das regras sobre tutela de urgência às tutelas de evidência parece ser um caminho natural para o funcionamento do sistema.

Nesse sentido, como bem sublinhado por Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, e Daniel Mitidiero, resta claro que o legislador disse menos do que deveria dizer em relação à tutela de evidência, abrindo caminho para que o intérprete busque, através das técnicas hermenêuticas, a supressão das lacunas existentes. Nas suas palavras: [2]

“Do ponto de vista técnico, nada obstaria a possibilidade de tutela da evidência antecedente, como mostra a experiência do référé provision francês (art. 809, Code de Procédure Civile); porém, intencionalmente ou não, nosso legislador parece ter optado por limitar a tutela antecipada antecedente aos casos de urgência. A opção, por óbvio, não merece respaldo. O ônus do tempo do processo não pode ser atribuído àquele que aparentemente tem razão. Por isso, examinando o regime da tutela antecipada antecedente à luz da garantia fundamental da tempestividade da jurisdição, evidencia-se a necessidade de se interpretar extensivamente o contido no art. 303, do CPC, de modo a abarcar também, por analogia, as tutelas da evidência.”

Destarte, afigura-se como possível a defesa da aplicação analógica das regras referentes à tutela de urgência antecedente à tutela de evidência. Uma questão, no entanto, merece ser destacada. Como se sabe, algumas modalidades de tutela de evidência dependem, para sua concessão, da oitiva prévia da parte contrária, em sede de contestação (art. 311, parágrafo único, do CPC). É o que acontece, por exemplo, com a tutela de evidência por abuso do direito (art. 311, I, do CPC) e a tutela de evidência por inconsistência defensiva (art. 311, IV, do CPC). São tutelas de evidência que dependem da postura da parte adversa e somente podem ser ventiladas a partir da fase de providências preliminares. Nestes casos, diante da impossibilidade de prolação de uma decisão liminar inaudita altera parte, não se afigura como viável a utilização da ação preparatória com base na estrutura procedimental prevista para a tutela antecipada (art. 303 do CPC) ou mesmo a sua estabilização (art. 304 do CPC).

A conclusão final que se chega é que a tutela de evidência somente poderá ser requerida em caráter antecedente e, eventualmente, estabilizada, nas hipóteses onde os seus requisitos estejam presentes desde a propositura da petição inicial (art. 303, § 5º, do CPC).


Notas e Referências:

[1]    Essa mesma visão é compartilhada, dentre outros juristas, por Daniel Neves, Teresa Alvim, Fernando Gajardoni e Rogério Licastro.

[2]    Novo Curso Processo Civil, Vol. 2, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 224. 


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