Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
A interposição de recursos impõe a atenção máxima do recorrente. Isso porque, diante de uma decisão ou de uma sentença que lhe seja prejudicial, é natural que o interessado pretenda ver o caso submetido à análise de outros julgadores.
Aliás, essa pretensão é tão natural que extrapola o âmbito processual propriamente dito. Nas coisas da vida, quase sempre pretendemos uma nova análise quando nos sentimos injustiçados. Nas relações amorosas, por exemplo, dificilmente alguém deixa de insistir no relacionamento quando o outro (ou a outra) manifesta o desejo de ruptura de forma contrária à sua vontade. Se vamos ao médico e recebemos um parecer desfavorável, por exemplo, é natural querermos ouvir a opinião de um outro médico. Por que motivo, então, diante de uma sentença de condenação que considere injusta, o envolvido não pretenderia submeter a questão às instâncias superiores?
Além de servir para extravasar esse sentimento natural que busca a nova análise do caso, a interposição de recurso também permite que outros julgadores examinem a questão adotando outros pontos de vista. E isso é muito bom porque a leitura feita por aquele que proferiu a sentença pode ser viciada, ou seja, é possível que os outros julgadores façam uma leitura mais correta do caso. Nem se cogita que o primeiro julgador aja de má-fé. Não é isso. É possível que se faça uma leitura equivocada do caso, mesmo agindo com boa-fé. Portanto, é sempre importante que se permitam outros olhares sobre a questão a ser julgada.
Também não se pode ser ingênuo a ponto de achar que o acerto sempre estará com as instâncias superiores. Evidentemente, é possível que o juiz de primeiro grau faça a correta análise e que a sua sentença seja reformada nas instâncias superiores de forma equivocada. É claro que isso é possível. De toda forma, sendo esse o sistema processual que temos, a verdade é que se deve considerar boa a interposição de recursos porque, em regra, a cada instância, se permite uma espécie de filtro através do qual se retiram os equívocos. Sabemos dos muitos problemas que existem no nosso sistema recursal (atuamos há muito tempo em varas criminais e já vimos bastantes coisas), mas, teoricamente, é esse o quadro que se apresenta.
A questão que pretendemos abordar nesta coluna se refere especificamente ao chamado princípio da fungibilidade (ou teoria do recurso indiferente de Goldschmidt ou teoria do tanto vale)[1], o qual é expressamente previsto no art. 579, caput, do CPP, segundo o qual, salvo hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro. O parágrafo único do mencionado dispositivo acrescenta que, se o juiz, desde logo, reconhecer a impropriedade do recurso interposto pela parte, mandará processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível.
Em outras palavras, o legislador reconhece a possibilidade de o recurso interposto de forma equivocada ser recebido como se correto fosse. Há apenas um cuidado que se deve ter nesse caso. Havendo má-fé, fica afastada a aplicação do mencionado princípio, ou seja, o recurso errado não será admitido como se correto fosse.
Então, a questão a ser enfrentada, de maneira evidente, é a seguinte: o que deve ser considerado como má-fé para afastar a aplicação do princípio da fungibilidade recursal? Eis, portanto, a questão verdadeiramente relevante quanto ao tema.
De maneira geral, a doutrina tem entendido que a má-fé fica evidenciada quando o recurso errado é interposto fora do prazo previsto para o recurso certo. Aliás, é preciso registrar que o legislador podia ter sido mais generoso com os operadores do Direito e podia ter previsto um único prazo para a interposição de todos os recursos. Não se entende por que existem prazos distintos para a interposição do recurso em sentido estrito, dos embargos infringentes ou do recurso extraordinário, por exemplo. A opção do legislador em nada contribui para a vida prática. Ao contrário, só atrapalha.
Pois bem. Se existem prazos distintos, é preciso que eles sejam respeitados. Mas a maioria da doutrina aceita o recurso errado se a sua interposição ocorrer dentro do prazo previsto para o recurso certo. Vejamos um exemplo simples. A apelação deve ser interposta no prazo de 5 dias, conforme prevê o art. 593, caput, do CPP. Os embargos infringentes devem ser interpostos em 10 dias, conforme prevê o art. 609, parágrafo único, do CPP.
Se o réu, por exemplo, for condenado pelo juiz de primeiro grau, caberá a interposição da apelação. Se a Defesa interpuser, ao invés da apelação, os embargos infringentes até o 5° dia, o princípio da fungibilidade poderá salvar o recurso errado porque interposto dentro do prazo para o recurso correto. Mas se a Defesa interpuser os embargos infringentes a partir do 6° dia, não se aplica o princípio da fungibilidade porque revelada a má-fé, uma vez que o recurso errado foi interposto após o prazo previsto para o recurso correto.
Adotam esse entendimento, segundo o qual o desrespeito ao prazo previsto para a interposição do recurso correto caracteriza a má-fé impeditiva da aplicação do princípio da fungibilidade recursal, autores como Tourinho Filho[2], Marcellus Polastri[3], Paulo Rangel[4], Fauzi Hassan Choukr[5] e Guilherme Nucci[6].
Mas existem autores que flexibilizam esse entendimento, sustentando que é possível aplicar o princípio da fungibilidade recursal mesmo quando extrapolado o prazo para a interposição do recurso correto. Em linhas gerais, reconhece-se a dificuldade de aferição da má-fé aludida no art. 579, caput, do CPP, para salientar que, em casos excepcionais, quando evidente a boa-fé do recorrente, mesmo após o término do prazo para interposição do recurso correto, o recurso errado deve ser recebido por força do princípio da fungibilidade recursal. Adotam esse último entendimento autores como Aury Lopes Jr[7] e Eugênio Pacelli[8].
Entendemos que o melhor entendimento é aquele que fixa um critério objetivo para a aplicação do princípio da fungibilidade, uma vez que facilita a constatação da má-fé que impede a sua aplicação. Portanto, é possível salvar o recurso errado com base no princípio da fungibilidade recursal, desde que respeitado o prazo previsto para a interposição do recurso correto. Extrapolado tal prazo, caracteriza-se a má-fé referida no art. 579, caput, do CPP, impedindo-se a aplicação do princípio da fungibilidade recursal.
Por último, não custa lembrar que, aplicado o princípio da fungibilidade recursal, o art. 579, parágrafo único, do CPP, determina a adequação do recurso. Em outras palavras, o recurso errado é recebido como se correto fosse e, a partir de então, é adotado o procedimento correto. Conserta-se o erro cometido na interposição recursal e o procedimento recursal propriamente dito segue da forma correta.
Notas e Referências
[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 407.
[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 407.
[3] LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 1024.
[4] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 781.
[5] CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 821.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 815.
[7] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 981.
[8] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 848.
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