Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 14/11/2015
No último dia 5 de novembro, em julgamento realizado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os ministros por unanimidade firmaram entendimento sobre a consumação dos crimes de furto e roubo. Segundo eles, os crimes se consumam quando há inversão da posse do bem, "sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada".
Os ministros se depararam com um caso em que a vítima fora assaltada à mão armada e teve sua mochila e celular roubados. Ao tentarem fugir em uma moto, o acusado e o comparsa caíram e foram presos policiais militares que estavam nas proximidades. A vítima imediatamente recuperou seus objetos.
O acusado foi condenado na primeira instância pelo crime de roubo consumado; porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), acertadamente e de acordo com a melhor doutrina, reconheceu que houve apenas a tentativa de roubo, já que o celular e a mochila não saíram do poder de vigilância da vítima.
Contudo e lamentavelmente, ao discutir o caso, os ministros do “Tribunal da Cidadania” firmaram a tese de que: “consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do bem, mediante emprego de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em seguida a perseguição imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada”.
O outro caso tratou do crime de furto e ocorreu também no Rio de Janeiro. Um homem pegou o telefone celular de uma mulher enquanto ela caminhava pela rua e correu em direção à praia, mas foi preso em flagrante. A sentença afirmou que o furto foi consumado, pois o telefone celular saiu da vigilância da vítima, “ocorrendo a inversão da posse do objeto, com a retirada, ainda que por pouco tempo, do poder de disposição sobre o mesmo”.
Uma vez mais, corretamente e com base em doutrina sólida, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) afirmou que houve apenas tentativa de furto e diminuiu a pena aplicada. No STJ, no entanto, sob a relatoria do ministro Nefi Cordeiro - ministro que ficou conhecido após condenar um homem a quase 5 anos de prisão por tráfico de 0,02g de maconha - foi firmada a tese de que : “consuma-se o crime de furto com a posse de fato da res furtiva, ainda que por breve espaço de tempo e seguida de perseguição ao agente, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada”.
A controvertida e inusitada decisão da Terceira Seção do STJ foi impulsionada pelo REsp 1499050 e REsp 1524450, promovidos pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que tomado pela fúria punitiva, não se conformou com a decisão do TJRJ em ambos os casos.
Em minhas primeiras aulas de direito penal aprendi que para que haja crime (conduta típica, ilícita ou antijurídica e culpável) é necessário que ocorra ofensa (lesão) ao bem jurídico tutelado.
De acordo com o princípio da lesividade (nullum crimen sine injuria), também chamado de princípio da ofensividade,[1] só podem ser considerados como crimes aqueles comportamentos que lesam ou ofendam bem jurídico alheio público ou particular. Pelo referido princípio a conduta interna e, portanto, que não se exterioriza lesionando direitos de outras pessoas, deve se situar fora do âmbito do direito penal, ainda que seja “pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente - falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal”. [2]
O princípio de lesividade, no ensinamento de Ferrajoli[3],
“equivale a um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário e, com isso, para reforçar sua legitimidade e credibilidade. Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis e à de ilícito administrativo todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionam bens não essenciais, ou os que são, só em abstrato, presumidamente perigosos, evitando, assim, a ‘fraude de etiquetas’, consistente em qualificar como ‘administrativas’ sanções restritivas da liberdade pessoal que são substancialmente penais”.
No que diz respeito aos tipos penais do furto (art. 155 do CP) e do roubo (art. 157), ambos crimes materiais ou de resultado, consumam-se com a ocorrência do resultado naturalístico , que tem como bem jurídico em sentido amplo o patrimônio. O objeto da tutela jurídica é a propriedade e a posse. Por se tratarem de crimes materiais, necessário para que haja a consumação à superveniência do eventus damni. Ambos são crimes de dano (dano patrimonial). Assim, não há que se falar em furto ou em roubo sem efetivo desfalque do patrimônio alheio.
Nélson Hungria[4], o grande tratadista do direito penal brasileiro, após tecer inúmeras considerações sobre as várias teorias em torno ao momento consumativo do furto: a da contrectatio, a da apprehensio, a da amotio, a da ablatio, afirma que se inclina pela posição segundo a qual para consumação do citado crime “é necessário estabelecer-se um estado tranquilo, embora transitório, de detenção da coisa por parte do agente”.
Segundo Hungria,
“o furto não se pode dizer consumado senão quando a custódia ou vigilância, direta ou indiretamente exercida pelo proprietário tenha sido iludida. Se o ladrão é encalçado, ato seguido à apprehensio da coisa, e vem a ser privado desta, pela força ou desistência involuntária, não importa que isto ocorra quando já fora da esfera de atividade patrimonial do proprietário: o furto deixou de se consumar, não passando da fase de tentativa. Não foi completamente frustrada a posse ou vigilância do dono. Não chegou este a perder, de todo, a possibilidade de contato material com a res ou de exercício do seu poder de disposição sobre ela. A sua propriedade sofreu sério perigo, mas não propriamente uma efetiva lesão: a sua posse, como exercício da propriedade foi perturbada, mas não definitivamente suprimida. Poder-se-ia falar em perigo de dano, mas não em dano real ou concreto”.
De igual modo Heleno Cláudio Fragoso[5], para quem para a consumação do furto, no sistema do Código Penal, “é necessário que o agente tenha completado a subtração da coisa”. O próprio conceito de subtração, segundo o memorável professor carioca, “exige o rompimento de um poder material de detenção sobre a coisa, e o estabelecimento de um novo”. Assim, o furto estará consumado apenas e somente quando a coisa for tirada da esfera de vigilância do sujeito passivo, do seu poder de fato e passando a integrar o poder autônomo de disposição do agente.
Finalmente, para não cansar o leitor com inúmeras citações, trago a lição do maior dogmata crítico do direito penal brasileiro, professor Juarez Tavares, que quando Sub- Procurador Geral da República atuava perante o STJ e que em discussão em um grupo de professores de direito penal, criminologia e processo penal assim se manifestou:
“Os crimes de furto e roubo são delitos de desapossamento. Não importa se para isso se usa a teoria da esfera de vigilância ou não; importante é que haja desapossamento, e desapossamento só se dá com a instituição de novo poder de disposição sobre a coisa. O ladrão perseguido pela polícia tem apenas um poder precário sobre a coisa, o que caracteriza tentativa e não consumação. Isso é mesmo elementar, porque o bem jurídico, no caso o patrimônio, só estará definitivamente lesado quando o poder de disposição sobre a coisa se tornar faticamente concretizado. A vigar a referida tese, não haveria tentativa de furto, salvo se entender que o início da execução se verifique antes do início da prática da ação típica, o que viola, por seu turno, o princípio da legalidade e toda longa tradição liberal do direito brasileiro, na linha do pensamento europeu desde o Código Penal francês de 1810”.
É necessário pontuar que a decisão do STJ, baseado numa política criminal cada vez mais punitivista e repressiva, terá consequências desastrosas para o encarceramento. Milhares de pessoas (diga-se jovens, negros, favelados, semianalfabetos e pobres) serão levadas para o cárcere que já está superlotado destas mesmas pessoas condenadas ou não por crimes de tráfico de drogas, roubo e furto. Os citados crimes contra o patrimônio respondem, segundo dados do INFOPEN (junho de 2014), por 32% da população carcerária, ou seja, mais de 200 mil pessoas.
É lamentável que um tribunal que se denomina como sendo da cidadania tome uma decisão que atinge os excluídos e vulneráveis, os que não fazem parte da sociedade de consumo e que para muitos, infelizmente, constituem cidadãos de segunda categoria ou “não pessoa” na expressão infeliz de Günther Jakobs. Pessoas que estão “fora do jogo” no dizer de Zygmunt Bauman[6]. Ao invés de buscar a efetivação de uma democracia material e de dar oportunidade a essas pessoas para que um dia, quem sabe, se tornem cidadãos, o STJ elimina com sua decisão qualquer possibilidade para que isso se realize, posto que ninguém, absolutamente ninguém, sai melhor do cárcere do que entrou. Na prisão não se forma cidadãos.
Por tudo e, principalmente, diante deste espancamento da doutrina penal, resta apenas gritar, como disse o mestre Chico Buarque: “chame, chame o ladrão”.
Notas e Referências:
[1] Cf. Paulo de Souza Queiroz, ob. cit. p. 36.
[2] Batista, Nilo. Introdução...ob. cit. p. 91.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 383-384).
[4] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. vol. VII, arts. 155 a 196. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
[5] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, parte especial: arts 121 a 212. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
[6] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro:Zahar, 1998.
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Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
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