Pouco mais de 30 anos após o início de sua redemocratização, o País presencia o segundo processo de impeachment presidencial, a prisão de figuras proeminentes da república[1] e de grandes empresários, que protagonizam, segundo dizem, o maior escândalo de corrupção da história do Brasil[2].

A integrar esse quadro de instabilidade, uma grave crise econômica emerge e se consolida[3], contabiliza-se um aumento vertiginoso do desemprego[4], questões relacionadas à (in)segurança pública ganham grande visibilidade midiática, algumas das principais instituições do Estado têm sua credibilidade fragilizada[5], desponta o empobrecimento da população mais vulnerável[6].

A cena política nacional experimenta a exasperação dos discursos[7]. Vozes menos progressistas reverberam pautas vinculadas à moral de matiz religioso, sustentadas por uma bem organizada, expressiva e capitalizada representação parlamentar[8].

Um suposto ideário de neutralidade política é oferecido em larga escala no varejo por um significativo número de figuras públicas, personagens dos mais variados segmentos sociais, sejam eles políticos, profissionais liberais, professores, intelectuais e, claro, alguns pseudointelectuais que ganham, todos, notoriedade a partir de atividades pautadas pelo apelo retórico e até primitivo de construção de inimigos públicos imaginários (comunistas, esquerdistas e ou “esquerdopatas”) e pelo recurso truculento da agressão verbal e do constrangimento psíquico e moral.

Uma neutralidade desmentida pelo paradoxal comportamento ideológico daqueles que, evidentemente, não podem manifestar o ódio ao Outro na clandestinidade – precisam assumir, ideologicamente, o “lado dos heróis”.

Nesse contexto, impulsionadas pelas forças mais conservadoras do horizonte nacional, ganham notabilidade as opiniões manifestadas pela associação denominada “Escola sem Partido”[9], especialmente aquelas relacionadas à alegada falta de neutralidade do ensino ministrado nas escolas públicas e privadas, as quais serviriam de palco para professores que, valendo-se da audiência cativa dos estudantes e abusando da fragilidade deles, praticariam doutrinação político-ideológica,  assim como, incitariam à adoção de padrões morais – especialmente de caráter sexual – incompatíveis com aqueles ensinados por seus pais[10].

Tal ideário dá origem a anteprojetos de lei disponibilizados pela referida associação[11], que são apresentados por parlamentares em diversas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas.

Na Câmara dos Deputados, foi instituída uma Comissão Especial[12] para analisar os diversos projetos que tratam da temática desenvolvida pelo movimento Escola sem Partido. Dessa análise resultou o substitutivo ao Projeto de Lei 7.180/2014[13], que concluiu pela viabilidade e pertinência da proposta.[14]

Nesta semana a Comissão Especial destinada a dar parecer sobre o Projeto de Lei n.º 7180/2014, de autoria do Deputado Erivelton Santana (o chamado Projeto da Escola se Partido), retomou as reuniões em razão da discussão sobre o mérito da questão, notadamente quanto ao teor do Substitutivo apresentado pelo Relator, Dep. Flavinho.

O debate, talvez como sintoma do absurdo que o dito PL veicula, é permeado por uma série de argumentos retóricos, frágeis, com forte apelo populista àquelas ideias antes mencionadas. Os parlamentares que defendem a aprovação do PL, em alguns momentos, parecem acreditar (se isso é possível) que atuam em defesa do Brasil, para livrar de uma vez por todas o país do “comunismo”.[15]

 

II – Inviabilidade jurídico-constitucional do texto em discussão no Projeto de Lei n.º 7180/2014 da Câmara dos Deputados

 

Pois bem. O que diz o projeto Escola sem Partido (Substitutivo do Dep. Flavinho, PL 7180/2014)?

Em resumo, o texto sob análise e, ao que tudo indica, na iminência de ser aprovado pela Comissão Especial, é composto de 8 artigos, sete deles com conteúdo propriamente dito, e o último estabelecendo um prazo de dois anos após a publicação para entrada em vigor.[16]

As novidades legislativas pretendem:

Estabelecer um equilíbrio entre a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender no âmbito da educação básica pública e privada em todo o país (art. 1º);

Vedar ao Poder Público (leia-se professores) qualquer ingerência no processo de amadurecimento sexual dos alunos, bem como dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero (art. 2º);

Impedir que o professor utilize-se da sala de aula para promover seus interesses, opiniões, concepções ou preferências em questões morais, religiosas, políticas e partidárias (art. 3º, I);

Impedir o favorecimento, o prejuízo ou o constrangimento de alunos em razão das convicções políticas, morais, religiosas e ideológicas dos discentes (art. 3º, II);

Impedir que o professor realize propaganda político-partidária dentro da sala de aula e incite os alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas (art. 3º, III) – as carreatas, por ora, estão isentas!

Garantir uma neutralidade na abordagem das questões políticas, socioculturais e econômicas;

Garantir um suposto direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com as próprias convicções (art. 3º, V);De modo geral, o projeto pretende estender tais diretrizes também para o ensino universitário, como fica claro no art. 5º;

 

 Do ponto de vista constitucional o Projeto do Escola sem Partido é uma constrangedora iniciativa que padece de vícios flagrantes e ostensivos.

Não que alguém defenda uma escola com partido, hipótese, que, em todo caso, parece exsurgir de algumas inflamadas manifestações em favor do PL 7180/2016.

A rigor, o que se tem visto na discussão do tema, sobretudo na impactante repercussão que a polêmica tem gerado nas redes sociais, nos canais de comunicação e nos próprios órgãos públicos, é que os defensores do Projeto são agressivos e direcionam toda a sua crítica diretamente a três partidos (PT, PSOL e PCdoB), além de incitar, por meio de discursos rasteiros e muitas vezes mentirosos o ódio ao que chamam de “ideologias de esquerda”.

No cenário atual, cada vez de forma mais clara, tudo que assume complexidade superior às capacidades intelectuais do sujeito começa a ser tratado como tema e ideologia de menor importância. Ganha fôlego, nesse ponto, a mesma estratégia adotada e difundida pelo candidato eleito, Jair Bolsonaro, e por seus correligionários, ao desviar o foco dos problemas reais e complexos pela adesão irrefletida de soluções simples, rápidas e em boa parte dos casos totalmente agressivas com quem pensa diferente.

Para começo de conversa, a discussão entre o que seriam “ideologias de esquerda” ou “ideologias de direita”, no plano jurídico-constitucional deve necessariamente ser permeada pelo projeto normativo imposto pela Constituição Federal de 1988.

Esta ou aquela visão política que se tem em relação a determinados temas é, nesse contexto, limitada por um acordo anterior que já ganhou estatura normativa e traça importantes diretrizes jurídicas que conformam, no âmbito estatal, as atividades legislativas, executivas e judiciárias.[17]

É esse acordo que permite o convívio de diferentes em uma mesma comunidade política, pacto que – considerando as diferenças profundas, muitas vezes inconciliáveis nas concepções de vida das pessoas, – estabelece um conteúdo moral mínimo sobre o qual esses diferentes podem assentir. Tal consenso tem precedência às percepções individuais na cena política pública e determina a forma como a estrutura estatal deve agir.

Bem por isso, aliás, algumas discussões reiteradamente trazidas a debate em campanhas eleitorais, por exemplo, não passariam por um adequado filtro constitucional.

Por mais dolorido que possa ser, e para alguns personagens públicos de fato parece ser duríssimo o golpe, o Estado não pode tudo. Essa é uma herança deixada pelas tragédias do século XX e que ganhou estatura teórica e jurídica sobretudo na ideia de força normativa da Constituição como obstáculo intransponível à vontade das maiorias ocasionais.[18]

Adotadas tais premissas, alguns pontos tidos aqui como mais polêmicos da proposta são submetidos ao filtro constitucional.

Primeiro, o chamado equilíbrio entre a liberdade de aprender e a liberdade de ensinar não traria, à primeira vista, maiores problemas. De fato, a liberdade de aprender e a liberdade de ensinar são previsões constitucionais constantes no art. 206, II, CF/88.

Entretanto, o pretendido equilíbrio, compreendido no contexto do projeto apresentado, tenta viabilizar mecanismos de controle sobre a atuação dos professores que afrontam inarredavelmente o próprio direito do docente e também dos discentes que, de forma cínica, o projeto anuncia preservar.

Mais do que isso, o equilíbrio buscado pelo projeto será perseguido à custa do cumprimento de deveres estatais de magnitude constitucional.

Quando se pretende embaraçar a atividade docente nas questões de amadurecimento sexual e questões de gênero, o projeto de lei ignora o fato de que a temática voltada à abordagem de tais temas envolve uma orientação que se pode desdobrar em ações necessárias e preventivas de saúde (doenças sexuais transmissíveis) e na prevenção ao abuso sexual de crianças e adolescentes,[19] por exemplo, trazendo resultados importantes em áreas que são interconectadas com a educação.

Além disso, ao contrário do atual discurso panfletário que se tem difundido principalmente na internet, trabalhar a questão de gênero nas escolas não tem qualquer relação com dogmatismo ou orientação e aproximação a “homossexualismo”.[20]

Trata-se de uma visão estreita, absolutamente apartada da ideia de pluralismo que traz, ínsita, a efetiva possibilidade de vivências diversas e que, num espaço comum de convivência, devem necessariamente pautar suas relações pelo respeito.

Ademais, num país onde um transexual tem uma expectativa de vida de aproximadamente 35 anos de idade é um cinismo absoluto deixar de discutir tais questões, além de um descompromisso estatal.[21]  

A violência relacionada a questões de gênero é uma realidade inescondível e deve, por absoluto respeito a diversos comandos constitucionais que resguardam o direito à dignidade, à liberdade, ao pluralismo de ideias, que impõem medidas de promoção do bem-estar de todos sem preconceitos de ordem sexual (art. 3º e 5º, CF/88), ser combatida pelas mais diversas formas, seja no plano educativo, seja no plano de saúde, de legislações protetivas, e, nos casos mais graves, até por meio de legislação penal.

O trabalho do professor, portanto, antes de ser neutro (uma impossibilidade filosófica) e omisso, deve pautar-se por uma ação propositiva, nos termos do que determina a CF/88, levando aos alunos problematizações suficientes para despertá-los para as graves consequências do preconceito por razões sexuais.

Pelos mesmos motivos, ainda que não expressamente consignados no projeto, as questões raciais são também discussões absolutamente necessárias na escola e, ao contrário de uma visão novamente ingênua ou mal intencionada dos defensores do projeto, não se pode exigir do professor qualquer “neutralidade” em temas tão polêmicos como a questão racial.

A propósito, num país onde 54% da população é negra, mas os negros/pardos representam mais de 70% da população carcerária e morrem assassinados também numa cifra de 71%, é assustador pensar que esse assunto não deva merecer reflexão escolar.

A importância do tema está fortificada na própria CF/88 ao coibir a discriminação por origem de raça e prever que os crimes de racismo são imprescritíveis (art. 3º, IV e art. 5º, XLI e XLII).

Temas esses que também se conectam diretamente à promoção do bem estar geral (art. 3º, CF/88), mas em particular ao desenvolvimento do aluno como cidadão (pilar do Estado Democrático de Direto, art. 1º, II, e art. 205, caput, CF/88) a partir de uma indispensável formação humanística que, diga-se, é uma das ações previstas constitucionalmente para incorporar os planos decenais de educação (art. 214, V, CF/88) e que, naturalmente, impactará na vida coletiva de todos.

Assuntos desse jaez, se bem trabalhados, também cumprem outra função essencial a ser desempenhada pelo Estado na proteção de crianças e adolescentes (art. 227, CF/88) que, vítimas das mais variadas e disfarçadas formas de violência (cor, raça, sexo, segmento/classe social, condições físicas), podem e são muitas vezes desestimuladas de frequentar as instituições de ensino, causando repetência e nos casos mais extremos abandono escolar.

Segundo, no âmbito político, religioso, partidário, ninguém defende que o professor faça proselitismo dentro da sala de aula.

O que não se pode é, como quer o projeto, estabelecer uma ideia de “neutralidade” que tente impedir o professor de manifestar livremente sua opinião como garantido pela CF/88 (art. 5º, IV, IX, art. 206, II, III) e mais do que isso, que lhe tolha o dever de ensinar a partir de um necessário arcabouço de significantes que evidentemente lhe conformam e delimitam o modo de compreender o mundo (não a única visão certa, mas a visão que lhe é possível).

A visão do educador necessariamente comporá o jogo dialético do qual já fazem parte as concepções apreendidas no seio da família, bem como aquelas que se pode perceber pelo contato com as pessoas e suas realidades. Desse modo, tem-se enriquecida e ampliada a gramática com a qual o educando poderá traduzir um mundo cada vez mais complexo, que cobra dos indivíduos capacidade de cidadania.

Nesse contexto, é preciso consignar que o ambiente escolar deve ser protegido justamente dessa percepção equivocada e estreita de que tudo aquilo que não compreendo ou com o que não concordo deve necessariamente ser rechaçado ou tratado como menos importante, ou – pior – não deva ser tratado, seja invisibilizado, calado.

Pelo contrário, é na angústia, no estranhamento, que se desvela o choque entre uma totalidade conjuntural que o aluno possui mas que pode não dar conta de um determinado assunto. O novo, o que ainda não é compreendido ou o que é compreendido de forma diversa da minha compreensão não pode ser afastado. É na ampliação do saber que se amplia a percepção do que não se sabe. Daí a importância do pluralismo de ideias que o projeto tenta bloquear sob o retórico argumento de proteção das ideias divergentes (desde que o professor seja neutro, claro, e que as ideias não sejam de esquerda).

Terceiro, e em sintonia com o ponto anterior, os pais não podem ter direito a que os filhos recebam no ambiente escolar uma educação pautada pelas convicções pessoais paternas/maternas de ordem moral e/ou religiosa.

Na verdade, os filhos são sujeitos de direitos e eles têm o direito de apreender.

O ambiente escolar é o espaço público onde as convicções são postas à prova na convivência plural com outras diversas formas de viver.

Nesse sentido, antes de o espaço público ser adequado às pretensões pessoas desta ou daquela pessoa é a vontade individual que, devidamente respeitada, deve adaptar-se à cena pública.

A escola, nesse aspecto, representada pelos professores, ao pautar assuntos de um ponto de vista diverso, tem justamente a função de problematizar questões que dizem respeito à esfera pública.

Essa percepção defendida no projeto decorre de uma indevida confusão entre a esfera pública e a esfera privada. Não é possível, numa democracia, tal confusão, sob pena de, sobrepondo-se a esfera pública, abandonarem-se direitos inafastáveis da dignidade humana, como o são a liberdade moral, religiosa, política; sobrepondo-se a esfera privada, ocorrer uma confusão insolúvel de desejos individuais insatisfeitos e incontroláveis.

A propósito, é justamente no limite imposto pelo espaço público que, muitas vezes, a criança ou adolescente terá as primeiras experiências com a imposição e observância de limites que pelas mais variadas razões são excessivamente alargados ou relativizados no ambiente familiar.

   

III - O embuste da Escola sem partido. Problemas reais encobertos pela retórica do inimigo público (o professor).  

 

A temática que subjaz ao projeto Escola Sem Partido, a chamada “doutrinação ideológica”, poderia ser facilmente compreendida e solucionada sem quaisquer recursos abusivos à liberdade de ensinar e de aprender, sendo desnecessário optar pela via legislativa com opções temerárias como as que se tem oferecido atualmente por defensores do projeto.[22]  

Inclusive, para os casos de “excessos doutrinários” por parte de professores (seja à esquerda, seja à direita), é possível encontrar melhores antídotos, do que uma ilusória neutralidade.[23] Uma delas é fazer valer o que diz o artigo 205 da Constituição onde há referência da colaboração entre escola (Estado) e família, cooperando para “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Sem contar o próximo artigo, 206, onde são indicados expressamente os princípios do ensino, enfatizando os incisos II e VI, que tratam da liberdade de ensinar e aprender, utilizando-se da gestão democrática.

Aproveito para fazer uma reflexão: quando foi a última vez que você teve contato com o Conselho Escolar da escola dos seus filhos, ou sobrinhos, ou crianças e jovens com quem convive? Você sabe que em cada escola existe (e/ou deve existir) um Conselho Escolar composto por representantes de todos os segmentos da comunidade escolar?

Outro mecanismo de registro do que acontece no ambiente escolar é o Projeto Político Pedagógico (PPP), que orienta a elaboração dos Planos de Ensino e de Estudos que nortearão o ano letivo e onde ficam oficializadas todas as habilidades e competências que serão trabalhadas no período. Você, familiar, tem informações a respeito disso?

 O avanço de correntes políticas conservadoras parece não compactuar com alguns valores universais, como os mencionados na declaração dos direitos humanos, tampouco com a legislação vigente, sequer avaliando sua existência. Atuando como professora da rede básica pública, de um município do Rio Grande do Sul, tenho conversado com muitos colegas e a sensação que permeia os diálogos é de ultraje diante de tantas manifestações favoráveis ao Projeto Escola sem Partido.

Muito desta sensação se deve às precárias condições em que grande parte das escolas se encontram, onde professores, sim os “doutrinadores”, precisam comprar até o papel higiênico para seus banheiros com o próprio salário (não ganhamos, em regra, um salário mínimo, mas o valor recebido está bem abaixo do que seria digno para a profissão que está envolvida na formação de todas as outras),[24] muitas escolas não têm ambiente adequado para as aulas, o básico: não tem estrutura física que ofereça segurança mínima (elétrica e hidráulica); o calor dentro de cada sala muitas vezes é insuportável, a baixa condição acústica pode, inclusive, prejudicar a saúde dos professores e dos alunos, afetando as cordas vocais, por exemplo. E talvez, em um mundo ideal, as escolas teriam laboratórios de química, física, bibliotecas equipadas, quadras e material esportivo.

Nossa rotina tem altos e baixos, a grande realidade das comunidades escolares é humilde, de famílias que trabalham o dia todo fora de casa, com casos onde é preciso dialogar com a extrema pobreza entre os alunos. Este cenário nos traz várias questões como o problema da evasão escolar, tendo em vista que a escola pouco ou nada remete o aluno às suas condições reais de vida, tampouco se apresenta como um meio de transformação social,[25] pois eles não vislumbram tal possibilidade, o que nos preocupa sobremaneira.

Trazendo uma breve reflexão sobre a rede particular, afinal estamos todos navegando na mesma embarcação, sabemos que os estabelecimentos de educação tem muitos desafios. Grande rede privada, segundo se comenta, tem inclusive revisto a bibliografia disponível nas suas bibliotecas, tendo até mesmo retirado livros que segundo críticas de várias famílias seriam muito “marxistas”.

Este desencantamento com a educação talvez tenha nos trazido à realidade que vivenciamos nas últimas eleições, pessoas cada vez mais distantes do saber científico, pouco treinadas para lidar criticamente com as questões que advêm do mundo virtual, tampouco preparadas para interpretar as “notícias da televisão”.

Falar sobre a forma de ver e se relacionar com o mundo e as pessoas é uma seara complexa, contudo, é o cerne da nossa educação formal básica, onde poderemos, enquanto escola, oferecer uma visão diferente daquela que o aluno está acostumado a ter no seu núcleo familiar. Não seria este o grande ato enriquecedor de conhecimento, fundamental para a formação de uma pessoa capaz de exercer sua cidadania plenamente?

Como faremos nas aulas de Educação Física quando, incontáveis vezes, se escutam afirmações de alunos (tanto os de 6 anos de idade quanto os mais velhos) dizendo que futebol é só para os meninos, ou que não fariam as aulas de dança porque é coisa de menina, quando ouvimos de meninos quando se machucam, que não podem chorar porque é “macho”. Como falarão os professores de história sobre o holocausto ou a escravidão? Como os professores de português falarão dos porquês: Por que alguém tem uma cama quente para dormir? Eu durmo em um colchão sobre o chão batido, por quê?

Muitas vezes precisamos fazer um parêntese no Plano de Ensino e falar sobre a importância do diálogo, que a conversa é o melhor meio de resolver conflitos e divergências entre as pessoas, sejam elas colegas, amigos ou familiares. Ou falar sobre sermos empáticos com todas as pessoas e os animais, por exemplo.

A divergência é salutar para as relações, o grande problema é o tom de voz e a postura assumidos por algumas pessoas, vociferando e apontando o dedo sem ao menos ouvir o que o outro lado tem a dizer, esta escuta seletiva que acaba por dissolver qualquer possibilidade de aprendizado e comunhão de ideias, de ambas as partes.

O projeto Escola sem Partido é incompatível até mesmo com a nova Base Nacional Comum Curricular, ainda que com todos os problemas da BNCC que tem sido alvo de duras críticas pelo especialistas. O futuro é incerto.

 

IV – Conclusão

 

De modo geral, as temáticas propostas no texto visam contribuir no debate jurídico, político e social sobre o Projeto (e mais do que isso, a ideia) Escola sem Partido, a partir da imbricação dos fatores determinantes que demarcam o terreno de apoiadores e de críticos.

Do ponto de vista político, considerando o momento de exasperação dos ânimos e dos ideários, facilmente constatável durante a recente campanha eleitoral a Presidente da República, em que se pode observar o incremento de um fator agressivo pungente na forma de tratamento e de discussão das temáticas públicas, sendo importante ressaltar, pela visível ascensão, um discurso pautado pela pretensão de eliminação das posições divergentes, em especial, aquelas categorizadas como “ideologias de esquerda” e que, segundo a construção imaginária, seriam difundidas por professores doutrinadores (os inimigos públicos imaginários). 

De um ponto de vista jurídico, tentamos demonstrar, ainda que não exaustivamente, como uma infinidade de dispositivos constitucionais e legais conforma a atuação estatal e, por consequência, dos professores, de modo que a abordagem sobre boa parte dos assuntos que se tornaram alvo dos defensores do projeto Escola sem Partido, antes de qualquer opção docente, reveste-se de caráter obrigatório, em razão da agenda constitucional vigente.

No campo social, pretendeu-se chamar a atenção para a necessidade de manutenção de uma liberdade crítica e de um ambiente saudável para que os professores possam exercer suas atividades. Antes de impor obstáculos, o Estado deve assumir de uma vez por todas o compromisso de quitar o débito educacional existente, valorizando o professor, ao invés de incitar ou permitir a incitar o ódio contra os profissionais mais importantes desse sistema, e fornecer à ampla gama de alunos da rede pública de ensino condições dignas para estudar, para se alimentar, para praticar esportes, atividades artísticas, culturais, ampliando as possibilidades de existência e de realização pessoal dos alunos.  

Da mesma forma que a sociedade, antes de tentar censurar ou permitir que se censure a atividade docente nas escolas, deve efetivamente exercer cidadania, envolvendo-se também nas atividades escolares e participando dos debates públicos para a construção de uma escola emancipadora, democrática, humanística e qualificadora.

 

 

Notas e Referências

[1] Segundo informações do MPF, em abril de 2015 ocorreram as primeiras prisões de políticos na Operação Lava Jato. Em 10/10/2016, Eduardo Cunha, ex-Presidente da Câmara dos Deputados é preso preventivamente. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/linha-do-tempo. Acesso: 8/11/2018.

[2] Segundo informa o Ministério Público Federal os casos de corrupção que foram objeto da Operação Lava Jato já produziram mais de mil mandados de buscas e apreensões, de 120 mandados de prisões preventivas, 176 acordos com colaboração premiada, acusações criminais contra 347 pessoas, 215 condenações. Crimes cujo valor pedido para ressarcimento aos cofres públicos chega a quase 40 bilhões de reais. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/parana/resultado. Acesso em: 8/11/2018.

[3] Em 2017 o PIB nacional recua 3,6% e anuncia-se a maior recessão da história desde 1931. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/pib-brasileiro-recua-36-em-2016-e-tem-pior-recessao-da-historia.ghtml. Acesso em: 8/11/2018.

[4] IBGE afirma que o Brasil tem o maior contingente de desempregados desde o início da série histórica. Mais de 27 milhões de desempregados no país. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-277-milhoes-de-pessoas-diz-ibge.shtml. Acesso em: 8/11/2018.

[5] FGV confirma queda da confiança da população nas instituições públicas. Disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/icjbrasil-2017-confianca-populacao-instituicoes-cai. Acesso em: 20/11/2018.

[6] População brasileira empobrece 9,1% em 2016. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/03/1864296-populacao-brasileira-empobrece-91-com-recessao.shtml; Acesso em: 20/11/208.

[7] O então candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro, entre outras afirmações, diz que as minorias devem se adequar às maiorias ou desaparecer; nega a laicidade estatal. Disponível em: https://istoe.com.br/frases-de-bolsonaro-o-candidato-que-despreza-as-minorias/. Acesso: 8/11/2018.

[8] Números de 2015 indicam que dos 513 Deputados Federais, 199 estavam vinculados à bancada evangélica. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658. Acesso: 8/11/2018. Ver sobre o assunto, O Congresso mais conservador dos últimos 40 anos, de Antonio Augusto de Queiroz. Le Monde Diplomatique, 2018, Edição 156, 5 de nov. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-congresso-mais-conservador-dos-ultimos-quarenta-anos/

[9] Site do movimento Escola sem partido: http://www.escolasempartido.org/. Acesso em: 11/11/2018.

[10] Substitutivo ao projeto de lei nº 7.180, de 2014. Disponível em: https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1688989&filename=Tramitacao-PL+7180/2014. Acesso em: 20/11/2018.

[11] Site https://www.programaescolasempartido.org/

[12] Ato do Presidente da Câmara dos Deputados que institui a Comissão Especial. Disponível em: https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1496205&filename=Tramitacao-PL+7180/2014. Acesso em: 13/11/2018.

[13]Disponível em: https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1688989&filename=Tramitacao-PL+7180/2014. Acesso em: 20/11/2018.

[14] Em razão do encerramento da legislatura sem que o Projeto tenha sido definitivamente votado na comissão, foi arquivado. Entretanto, a temática deve voltar à discussão em 2019, tendo em vista que a retomada de tramitação de projeto de lei é perfeitamente cabível, nos termos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

[15] Por mais patético que possa parecer a algum desavisado que venha a ler este artigo, sim, na Câmara dos Deputados, como de modo geral durante toda a campanha eleitoral em 2018, ainda se fala em Comunismo como uma realidade presente.

[16] Setores importantes da sociedade opõem-se ao projeto. Relatores da ONU classificam o Escola sem Partido como censura; a associação Juízes para a Democracia emite nota técnica que conclui pela inconstitucionalidade do projeto; associações de professores também se manifestam contrariamente à proposta; o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, emite a Nota Técnica 01/2016, que também aponta para uma possível inconstitucionalidade das ideias constantes do projeto, e expede recomendações a instituições de ensino no intuito de vedar ações arbitrárias contra professores. https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,relatores-da-onu-denunciam-escola-sem-partido-e-classificam-projeto-de-censura,70001737530. Acesso em: 20/11/2018. Disponível em: https://iddh.org.br/noticias/iddh-denuncia-programa-escola-sem-partido-a-onu/. Acesso em: 20/11/2018. https://ajd.org.br/nota-tecnica-sobre-o-projeto-de-lei-escola-sem-partido/. Disponível em: 20/11/2018. https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com. Acesso em: 20/11/2018. http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/temas-de-atuacao/educacao/saiba-mais/proposicoes-legislativas/nota-tecnica-01-2016-pfdc-mpf. Acesso em: 20/11/2018. http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311456113&ext=.pdf. Acesso em: 9/11/2018.

[17] Sobre o assunto, imprescindível: “A constituição dirigente marca uma decisiva distância em relação ao entendimento da política como domínio juridicamente livre e constitucionalmente desvinculado: a vinculação jurídico-constitucional dos actos de direcção política não é apenas uma vinculação através de limites, mas uma verdadeira vinculação material que exige um fundamento constitucional para esses mesmos actos. Neste sentido, a constituição programático-dirigente não substitui a política, mas torna-se premissa material a política”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra editora, 1982, 1994 (reimpressão), p. 483, 487.

[18] Sobre o plus normativo que representa o Estado Democrático de Direito, com suas vinculações formais e materiais, com comando de respeito à liberdade e deveres prestacionais, ligados a um projeto de transformação social, STRECK, Lênio Luiz. MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 97 e ss. E também vale ressaltar a observação de Fioravanti, para quem na fórmula contemporânea de democracia constitucional parece haver uma pretensão de justo equilíbrio entre o princípio democrático e a ideia - ínsita de toda a tradição constitucionalista – de fixar limites ao poder político, notadamente a partir da força normativa da constituição, e, em particular, por meio do controle de constitucionalidade característico das democracias modernas. Nesse cenário ainda relativamente novo, diz o autor, é que surgem tensões diversas, a exemplo da relação entre os sujeitos protagonistas deste equilíbrio. De um lado os atores da política democrática, parlamento, governo e partidos; de outro, os sujeitos de garantia jurisdicional. E é indispensável o “mantenimiento y la progessiva consolidación del equilíbrio” cujo pressuposto sugere que um não intente invadir o campo de atuação do outro. FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la antigüedad a nuestrosdías. Tradución de Manuel Martínez Neira. Madri: Trotta, 2011, p. 163/164.

[19] O art. 227, § 4º, impõe ao Estado a obrigação de punir severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. Tais abusos, como anuncia o Boletim epidemiológico da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017, ocorrem predominantemente na residência das vítimas. Disponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho/25/2018-024.pdf>. Último acesso em: 6/12/2018.

[20] Termo inadequado, mas veiculado com muita insistência atualmente, sobretudo por parcela de políticos e nas mídias sociais.

[21] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional

[22] Relembre-se, nesse ponto, a atuação da candidata eleita a deputada federal em Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, que incitou alunos a filmar professores que estivessem em “atitude suspeita” nas salas de aula, a saber, que realizassem qualquer crítica ao então candidato presidencial do partido que ela compõe, o PSL.

[23] “É impossível, na verdade, a neutralidade da educação. E é impossível não porque professoras e professores “baderneiros” e “subversivos” o determinem. A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política. [...] Para que a educação fosse neutra era preciso que não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com relação aos modos de vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em prática, aos valores a ser encarnados. [...] Para que a educação não fosse uma forma política de intervenção no mundo era indispensável que o mundo em que ela se desse não fosse humano” (Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia. 53 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011, p.108-109).

[24] Em alguns estados, como no caso do Rio Grande do Sul, o piso nacional, fixado em valor absolutamente insuficiente e indigno sequer é respeitado. Mais do que isso, o pagamento é parcelado. O valor do piso nacional dos professores é muito inferior ao daquele pago em privilégios, de indiscutível inconstitucionalidade, para determinadas categorias como o famigerado Auxílio-moradia, por exemplo. Mas, também vale ressaltar, que este valor do piso é equivalente ao que os médicos cubanos recebiam no Brasil (já descontada a parte do Governo Cubano), valor que o futuro presidente, “consternado” com a condição de “escravidão” dos estrangeiros, acha excessivamente baixo. Aliás, difundiu-se nas mídias sócias um discurso de clamor popular contra a condição indigna dos trabalhadores cubanos que recebiam valor semelhante ao fixado no piso nacional dos professores. 

[25] É de particular importância atentar-se para o fato de que o Estado assume, a partir da CF/88, um compromisso de ordem constitucional voltado à redução das desigualdades sociais. Esse objetivo, para além de discussões enviesadas sobre “direita” e “esquerda” faz parte de um projeto político-normativo que se desdobra em várias frentes de atuação, dentre as quais, seguramente, a educação ganha relevo, porque é sobretudo no ambiente escolar que a reflexão sobre as condições de vida pode e deve destacar-se.

 

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