Erro Supremo

26/11/2015

 Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 26/11/2015

“Se a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é uma história de erros; e não só de erros, mas também de sofrimentos e abusos, todas as vezes em que no processo se fez uso de medidas instrutórias diretamente aflitivas, da tortura até o moderno abuso da prisão preventiva”.

(LUIGI FERRAJOLI)

As nações bárbaras desconhecem completamente o processo. No dizer de FERRAJOLI[1] o que distingue o processo da chamada “justiça com as próprias mãos ou de outros métodos bárbaros de justiça sumária é o fato de que ele (processo) persegue, em coerência com a dúplice função preventiva do direito penal, duas diferentes finalidades: a punição dos culpados juntamente com a tutela dos inocentes”. Ainda, de acordo com o jurista italiano, é a tutela dos inocentes que está na base de todas as garantias processuais.

Se, em exercício hipotético, perguntássemos a LUIGI FERRAJOLI sobre a legalidade da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinando a prisão de o Senador Delcídio do Amaral o que ele responderia?

Primeiramente FERRAJOLI diria que a referida decisão é própria das “nações bárbaras”.  Afirmaria, ainda, que a “admissão em princípios da prisão ante iudicium, qualquer que seja o fim que se lhe queira associar, contradiz na raiz o princípio de submissão à jurisdição, que não consiste na possibilidade de detenção apenas por ordem de um juiz, mas na possibilidade de sê-lo só com base em julgamento”. De acordo com FERRAJOLI “toda prisão sem julgamento ofende o sentimento comum de justiça, sendo entendido como um ato de força e de arbítrio”. Para HOBBES, lembra FERRAJOLI, “a prisão preventiva não é uma pena, mas um ato de hostilidade contra o cidadão”.

Alguns dos leitores mais atentos e críticos podem estar pensando, qual a relação da prisão preventiva com a prisão do Senador que se deu em “flagrante”? Sim, aí que reside um dos grandes equívocos da combatida decisão do STF. Não houve flagrante em nenhuma das suas modalidades previstas no Código de Processo Penal (art. 302). Aqueles leitores defensores da decisão do STF dirão: trata-se de crime permanente e, ainda, evocarão o art. 303 do CPP. Primeiramente, é necessário deixar assentado que ainda que se trate de crime permanente – em que o momento da consumação se protrai no tempo – é preciso ficar demonstrado o estado de flagrância (art. 302 do CPP). Os mesmos leitores e alguns punitivistas continuariam indagando: Mas o crime de “associação criminosa” ou de “organização criminosa” não é permanente? O Senador não fazia parte desta organização? Aqui também é preciso corrigir os equívocos. O crime de organização criminosa pressupõe para sua configuração que os agentes (quatro ou mais pessoas) estejam estruturalmente organizados e ordenados, com divisão de tarefas determinadas para fim de cometerem crimes. É evidente que os requisitos para a caracterização do crime de “organização criminosa” previsto na Lei 12.850/2013 não são, tão somente, os suficientes para caracterização de um mero e eventual concurso de agentes.

Em artigo publicado no site do Empório do Direito[2] os processualistas RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA e ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, referindo-se a decisão ora atacada assim se manifestaram:

Citou-se na decisão o art. 324, IV do Código de Processo Penal. Mero malabarismo que, obviamente, não se admitiria nem em uma decisão de um Juiz pretor (se ainda existissem no Brasil tais figuras), quanto mais de um Ministro do Supremo Tribunal Federal de quem se espera “notável saber jurídico”. Este artigo só seria aplicável ao caso se fosse possível a decretação, ao menos em tese, da prisão preventiva do Senador, o que não é, pois, como vimos acima, ele tem imunidade formal dada pela Constituição da República, pelo Constituinte originário (aliás, ao longo da referida decisão são citados artigos do Código de Processo Penal que estão justamente no Capítulo III, do Título IX, que trata da Prisão Preventiva). Dito de outra forma, a invocação do art. 324, IV, do CPP, somente poderia ocorrer se o pressuposto – decretação da prisão preventiva – fosse possível”. (aqui)

A Constituição da República é muito clara e taxativa: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.” (art. 53, § 2º, da CR).

Daí, porque todo o “malabarismo” feito pela 2ª Turma do STF, transformando e utilizando, indevidamente, os argumentos da decretação de uma prisão preventiva para mascarar uma prisão em flagrante inexistente.

Destaca-se, ainda, o fato de que não foi devidamente e claramente imputado a prática de crime inafiançável ao Senador. Aliás, a decisão é demasiadamente e propositalmente confusa. Segundo a Constituição da República, são crimes inafiançáveis o racismo, a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, os definidos como crimes hediondos, o genocídio e os praticados por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLII e XLIII da CR).  Sendo certo que o Código de Processo Penal é que deve ser interpretado de acordo com a Constituição da República e não o contrário.

Não houve, nem em tese, a prática de crime inafiançável por parte do Senador da República Delcídio do Amaral.

Questiona-se, por fim, mas não menos relevante, a natureza da “prova” em que se baseou a decisão do STF.  Sem aprofundar na discussão a respeito dos limites da prova é fundamental lembrar que de acordo com a Constituição da República “são inadmissíveis, no processo as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º LVI). A gravação ambiental feita por terceiro sem o consentimento dos demais e sem ordem judicial foi sem dúvida alguma obtida ilicitamente e, portanto, é imprestável.

Por fim, como salienta GERALDO PRADO[3], é imperioso destacar que “as decisões judiciais não são emanação de um poder divino e que a divindade que podem em si mesmas carregar é aquela própria ao que de sublimemente divino é inerente a todo ser humano”. Assim, prossegue o eminente processualista, é importante “aceitar o erro como algo típico da natureza humana e admitir que o juiz, por mais ponderado, sensível e preparado que seja, não está imune a errar”.


Notas e Referências:

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[2] http://emporiododireito.com.br/para-nao-entender-a-prisao-de-um-senador-pelo-stf-por-romulo-de-andrade-moreira-e-alexandre-morais-da-rosa/

[3] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.


Sem título-1

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Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

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Imagem Ilustrativa do Post: Plenário do Senado // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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