Pressupondo que o Direito Penal – conforme seu discurso oficial – se preste à proteção dos bens jurídicos mais relevantes contra as lesões ou ameaças de lesões mais graves[1]; bem como que para se atribuir o estigma de crime a uma determinada conduta é necessário que ela tenha sido subjetivamente direcionada a um determinado fim (princípio da culpabilidade) e que o seu resultado seja objetivamente verificável (regras de imputação objetiva), interessa analisar os seguintes casos.
Caso 1- Adriano subtraiu, sem violência, cinco quilos de carne Angus de um mercado. Acontece que Adriano acreditava que as referidas carnes, que estavam em cima do balcão, tivessem sido separadas e já devidamente pagas, para si, por sua esposa, razão pela qual nada de errado imaginava estar fazendo. As carnes custavam, no total, R$800,00. Caso 2- Bianca subtraiu, sem violência, cinco quilos de carne Coxão-duro de um mercado de bairro. Bianca ignorava o valor das carnes, as quais custavam, no total, R$100,00[2]. Caso 3- Camila subtraiu, sem violência, cinco quilos de carne Angus de um mercado, pois sabia que seu sabor era especial e que poderia fazer um delicioso churrasco com ela. Seu valor era de R$800,00. Caso 4- Daniel subtraiu, sem violência, cinco quilos de carne de um mercado, cujo preço, acreditava, seria de R$800,00, por se tratar de carne Angus. Todavia, por erro de Daniel, ele acabou subtraindo cinco quilos de Coxão-duro, com preço bem inferior ao do outro produto. Caso 5- Evandro subtraiu, sem violência, cinco quilos de carne de um mercado, cujo preço, acreditava, seria de R$100,00, por se tratar de carne Coxão-duro. Todavia, por erro de Evandro, ele acabou subtraindo cinco quilos de Angus, com preço muito superior ao do outro produto. Evandro sequer sabia que um alimento poderia custar tão caro, tendo praticado tal conduta por ter ouvido de um conhecido sobre a existência de um tal “princípio da insignificância” que afastaria a incidência penal da subtração de produtos de pequeno valor, principalmente em relação ao patrimônio do mercado, multinacional e bem-sucedido[3], embora fosse um ilícito civil.
No caso 1, temos um típico exemplo de erro de tipo. Adriano (A), imaginando fazer uma conduta atípica, por um erro de percepção sobre a realidade (erro de tipo), pratica conduta prevista pela lei como crime. Objetivamente, “A” causou lesão a bem jurídico relevante do mercado, a saber: o patrimônio, de forma gravosa – pelo menos suficiente para caracterizar a modalidade do art. 155, §2º, do CP, a depender do patrimônio total do mercado. Subjetivamente, “A” não teve conhecimento de que estava a preencher os elementos do tipo, razão pela qual não pode responder penalmente em razão da ausência de dolo na conduta.
No caso 2, temos um típico caso de insignificância na lesão ao bem jurídico (hipótese vulgarmente tratada no foro como princípio da insignificância). Subjetivamente, Bianca (B) tinha dolo em furtar o mercado, tanto que conhecia e efetivamente colocou sua vontade em curso a fim praticar os elementos formais do tipo, a saber: subtrair para si coisa móvel do mercado, pouco se importando para o valor de tal coisa. Objetivamente, a conduta de “B” não lesou significativamente o patrimônio tutelado pela norma, tratando-se, portanto, de um indiferente penal, razão pela qual, em que pese o elemento anímico de “B”, não poderá ele ser responsabilizado penalmente por isso.
No caso 3, Camila (C) responderá pelo crime de furto, ao menos na modalidade do art. 155, §2º, do CP, a depender do patrimônio total do mercado. Isso porque, objetivamente, “C” causou lesão gravosa ao patrimônio do mercado, bem como, subjetivamente, teve a vontade e a consciência de estar praticando tal conduta, pouco se importando com o valor da coisa subtraída.
No caso 4, mais uma vez parece não haver maiores divergências quanto à responsabilidade do agente. Subjetivamente, Daniel (D) pretendia realizar um furto de R$800,00, todavia, objetivamente, realizou tão somente uma subtração de R$100,00. Assim, em razão da pequena monta da lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, não há que se falar em responsabilidade penal, uma vez que ausente a lesividade na exteriorização da conduta.
Por sua vez, e aqui está o ponto central do presente artigo, nos interessa particularmente o caso 5. Subjetivamente, Evandro (E) pretendia subtrair da loja mercadorias na monta de R$100,00. Objetivamente, “E” subtraiu mercadorias do mercado que lhe causaram uma lesão significativa ao seu patrimônio[4]. Tal cenário, à primeira vista, possibilitaria a responsabilização penal de “E” por furto, ao menos na modalidade do art. 155, §2º, do CP, uma vez que reuniu tanto a lesão significativa ao bem juridicamente tutelado pela norma penal, quanto o elemento subjetivo em subtrair.
A doutrina e a jurisprudência, de forma majoritária, vêm se manifestando no sentido da responsabilização de “E”[5]. A justificativa de tal argumento ganha força quando se trabalha com a questão do “desvalor” tanto da conduta quanto da ação. Assim, se a conduta, originariamente, possuía um desvalor – no caso o desvalor se consubstanciaria no interesse de “E” em subtrair coisa alheia móvel para si –, bem como o resultado também foi negativamente valorado – no caso perceptível pela lesão significativa[6] ao bem jurídico do mercado – então não haveria como deixar de responsabilizar “E” em tal circunstância. O erro sobre o valor do bem alvo da subtração não teria o condão de afastar a responsabilidade penal, uma vez que se trataria tão somente de um erro acidental – em oposição ao erro de tipo essencial – e, portanto, seria irrelevante para o Direito[7].
Ocorre que soluções que genericamente declarem ser irrelevante algum estado anímico do sujeito não parecem corresponder ao que se espera de uma verdadeira responsabilidade subjetiva, desprezando a análise do caso em concreto. Ao que parece, “E” não deveria ser responsabilizado penalmente, uma vez que o seu dolo não foi outro senão o de especificamente subtrair carne no valor de R$100,00 do mercado que, no nosso exemplo, se apresenta como um valor insignificante cuja constatação é de atipicidade material, portanto um indiferente penal.
Considerando que “E” tinha o conhecimento de que lesões insignificantes a bens jurídicos penalmente protegidos não passam de irrelevantes penais, muito embora estivesse ciente de que a subtração ainda assim configuraria um ilícito civil, “E” se dirigiu ao mercado e agiu exclusivamente voltado para atuar nessa margem de insignificância penal, todavia, por um erro de percepção da realidade, acabou por subtrair mercadoria em valor superior ao que desejava. No caso, os limites da subjetividade de “E” coincidem com os limites do que seria insignificante, em nenhum momento desejando algo além do que, em verdade, lhe seria penalmente tolerado, atípico. O dolo de “E” – seu conhecimento e sua vontade – estava dirigido para uma conduta atípica, portanto, possível de ser praticada sem que surgisse responsabilidade penal.
De outra sorte, quando acusam “E” de ter agido com desvalor em sua ação, ignoram que a tal “conduta desvalorada”, embora, de fato, o seja no âmbito cível, não o é no âmbito penal e, tratando-se a tipicidade do limite entre o penalmente proibido e o penalmente tolerado, justamente para que os jurisdicionados conheçam os limites sociais do seu direito de liberdade. Esse é o marco que, em última análise, será determinante para que um indivíduo pratique ou não uma conduta – inclusive, caso assim se deseje arcar com as devidas responsabilidades, possibilitar que o indivíduo assuma o risco de ser responsabilizado perante uma seara, sabendo que não o será na penal, exatamente por não se encontrar na margem de proibição penal – situação muito próxima, por exemplo, à do planejamento tributário.
Dessa forma, embora uma conduta seja ilícita, mas um indiferente penal, ela não pode ser considerada, ao menos nesse âmbito, como penalmente desvalorada (pois ao menos para o Direito Penal ela não o é).
Nisso, a conduta de “E” não poderia ser punida, uma vez que supôs estar a praticar um indiferente penal, uma conduta atípica, sequer dotada de reprovabilidade penal indiciária, todavia, por um erro de percepção da realidade acabou por praticar uma conduta objetivamente relevante para o Direito Penal. Se objetivamente relevante, mas ausente a culpabilidade, ausente o elemento subjetivo do tipo, no caso, em virtude do que podemos chamar de “erro de tipo insignificante”, afastando, por fim, o comum argumento de que o erro sobre o valor ou sobre a quantidade do bem subtraído seria mero “erro acidental”.
Notas e referências
[1] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. E Trad. André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
[2] Apesar deste ensaio estar mais voltado à dogmática e à compreensão real da (in)significância da lesão ao bem jurídico protegido do que de como os Tribunais decidem, utilizamos o valor de R$100,00 como referência em razão da jurisprudência do STJ considerar insignificante montante inferior a 10% do salário-mínimo vigente à época do fato (por todos: AgRg no REsp 2.005.962), considerando que o salário-mínimo atual é de R$1.320,00, a evitar qualquer dúvida a respeito da intenção de demonstrar a pequeneza da lesão praticada contra o bem jurídico protegido.
[3] Estamos cientes da Jurisprudência do STJ de que "[o] porte econômico do estabelecimento vítima é irrelevante para a aferir a incidência do princípio da insignificância " (AgRg no HC n. 621.085), com a qual discordamos, afinal, só se poderá aferir a lesão a algo se se possuir a dimenção do algo e da lesão/ameaça a ele praticada. Estar alheio ao porte econômico da vítima é conferir proteção insuficiente aos mais pobres (que também são vitimados), ao mesmo tempo que confere proteção a ninharias, relativamente comparadas ao capital social de multinacionais de faturamentos anuais multimilhonários.
[4] Sem entrar em maiores considerações neste momento sobre a proporcionalidade entre a lesão e o tamanho do patrimônio do mercado, apenas pressupondo a Jurisprudência do STJ.
[5] Conforme a Jurisprudência do STJ: “não se pode confundir bem de pequeno valor com o de valor insignificante ou irrisório, já que para aquela primeira situação existe o privilégio insculpido no § 2º do art. 155 do Código Penal” (AgRg no HC 521.476).
[6] Pressupondo-se a Jurisprudência do STJ.
[7] JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte geral. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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