Equívocos jurídicos recentes da chamada “Operação Lava - jato” - Por Afrânio Silva Jardim

27/09/2016

1 - PAREI POR VOLTA DAS DUAS HORAS DA MADRUGADA ...

Confesso que, passadas mais de duas horas da madrugada, ainda não consegui ler toda a denúncia que o Ministério Público apresentou, em Curitiba, contra o ex-presidente Lula, sua esposa e várias outras pessoas.

Confesso, ainda, que estou com dificuldade mesmo de extrair desta abundante narrativa quais são exatamente as condutas que são imputadas aos réus.

São 149 páginas de narrativas, as mais variadas e abrangentes, sobre esquemas de corrupção que se protraíram por mais de uma década em nosso país. Algumas passagens são repetidas de forma inexplicável.

O formato desta peça acusatória é totalmente atípico. Mais se parece com o relatório que os delegados de polícia têm de apresentar ao final do inquérito ... Por vezes, esta denúncia lembra também um longo arrazoado. Poderia ser uma alegação final ou contra-razões de algum recurso ..., ou seja, uma peça processual postulatória, mas não a peça inaugural de um processo penal.

Fui promotor de justiça por 26 anos (mais 5 como Procurador de Justiça) e nunca tinha visto o exercício da ação penal desta forma, através de uma denúncia com este formato estranho.

Como professor de Direito Processual Penal, em uma prova prática, reprovaria o aluno que redigisse uma denúncia desta forma ...

A boa técnica remenda, tendo em vista o disposto no art. 41 do Cod. Proc. Penal que, na denúncia, o órgão acusador faça imputações certas e determinadas, individualizando as condutas no tempo e lugar. É preciso que o réu saiba exatamente do que está sendo acusado para poder se defender de forma eficaz.

Fica até difícil entender por que a acusação precisa de 149 folhas para descrever as condutas penalmente típicas que atribui aos réus. Análises políticas e conjecturais não ficam bem em uma denúncia, como peça inicial de um processo criminal.

Pelo adiantado da hora, parei de ler estas narrativas infindáveis, cheias de adjetivos e poucos verbos, (condutas dos imputados).

Confesso que não compreendi bem as acusações. Fiquei meio perplexo com o que estava lendo. Não é assim que devem ser elaboradas as denúncias no processo penal. Repito: denúncia é diferente de alegações finais ou relatório de delegados ...

Como levar mais de 3 horas para ler uma denúncia e não conseguir chegar ao seu final, não conseguir extrair com clareza as acusações, que devem ser precisas e individualizadas? As argumentações devem ser feitas ao final do processo, com análise da prova carreada para os autos.

Tenho a impressão de que a desmedida extensão desta denúncia tem como escopo disfarçar a fragilidade de seu conteúdo acusatório.

Enfim, como ainda não entendi o teor desta infindável acusação, por ora, limito-me a criticar o formato da denúncia, formato este que torna quase que impossível serem entendidas as imputações específicas das condutas de cada um dos acusados. Forçoso é reconhecer que esta peça processual carece da mais comezinha técnica.

Nada obstante, já podemos dizer algo sobre o mérito das acusações, ainda que de forma resumida e superficial:

1. Não faz muito sentido dizer que o ex-presidente foi o “general” ou “maestro” de um esquema bilionário de corrupção e fraudes para receber de propina benefícios que chegariam a pouco mais de dois milhões de reais. Tais benefícios se traduziriam em pagar o transporte e armazenamento de móveis e presentes que o Lula teria recebido como presidente e mais uma reforma de um apartamento, que sequer ele teve a posse ou a propriedade;

2. Mesmo que assim não fosse, tudo isso não caracterizaria o crime de lavagem de dinheiro, pois tal numerário não entrou no patrimônio do ex-presidente Lula. Por isso, não usou ele dinheiro de propina de forma a disfarçar a sua origem criminosa. Nem isto diz a denúncia. Assim, tais benesses da OAS seriam apenas o próprio pagamento da alegada corrupção passiva. Corrupção passiva esta, vale a pena repetir, alegada de forma genérica e imprecisa.

3. No direito brasileiro, proprietário é quem tem o título translativo da propriedade registrado na matrícula do imóvel junto ao Registro Geral de Imóveis. No caso, o apto. de Guarujá está registrado no RGI em nome da empresa OAS. Note-se que a denúncia não chega sequer a alegar que o ex-presidente Lula e sua esposa tiveram, ainda que por um dia, a posse do referido apartamento. Visitar um imóvel e solicitar que nele seja feita esta ou aquela reforma não transforma o pretendente em proprietário ... Elementar.

4. Saber que existe um ou vários crimes (e isto não está provado) não transforma a pessoa em autora ou partícipe de tais crimes. Ademais, não pode haver participação por omissão em crime comissivo. Também aqui é elementar ...

5. O direito penal dos povos civilizados não aceita a chamada responsabilidade penal objetiva. Ninguém pode ser responsabilizado penalmente pelos crimes que seus subalternos teriam praticado. A responsabilidade penal é absolutamente pessoal. Nem precisaria dizer que isto é elementar ...

6. Esta denúncia entra em choque com toda aquela outra narrativa feita na denúncia contra o ex-presidente Lula pelos promotores de justiça de São Paulo. Ali eles afirmam que as benesses da OAS não teriam qualquer ligação com as fraudes da Petrobrás e, sim, com fraudes na cooperativa que fora administrada pelo sr. Vacari. Esta denúncia, ao que se sabe, ainda não foi apreciada pelo poder judiciário, pois ficou pendente de decisões sobre a competência da recebe-la ou rejeitá-la. Assim, temos uma estranha e vedada litispendência ...

7. Pelas próprias narrativas constantes da denúncia, complicadas e muito pouco claras, não teríamos a figura do concurso material de infrações e, sim, de crimes continuados. Refiro-me às hipóteses em que se diz que tais ou quais condutas teriam sido praticadas várias vezes pelo mesmo autor ou partícipe.

Enfim, está tudo muito nebuloso, inconsistente e absolutamente incorreto e frágil. Isto dizemos mesmo sem um estudo mais aprofundado da malsinada peça acusatória, que ainda não conseguimos ler em toda a sua absurda dimensão.

2 - PARA QUEM NÃO É DA ÁREA JURÍDICA E ACHA QUE O EX-PRESIDENTE LULA TEM QUE PROVAR QUE É INOCENTE, VAI O BREVE TEXTO ABAIXO (resposta a um leitor, com poucas alterações):

O ônus da prova é todo da acusação. Tenho um trabalho neste sentido, no meu livro, escrito há muito tempo atrás.

Note que escrevi este longo texto quando era promotor de justiça no tribunal do júri na capital do ERJ. Na dúvida, sempre opinei pela absolvição dos réus.

Não se pode fazer prova de "fato negativo". Não tenho como provar o que não existiu. É até mesmo uma questão de pura lógica.

Exemplo: como você me prova que não furtou, ao longo deste mês, a minha caneta, o meu chaveiro, o meu livro e meu lápis? Prove, quero ver ... Se não provar, estará condenado com o Lula, pois eu "não teria prova, mas tenho convicção de que você furtou ao menos o meu lápis ..."

3 - ANÁLISE TÉCNICA E RESUMIDA DA DECISÃO DO JUIZ SÉRGIO MORO QUE RECEBEU A DENÚNCIA CONTRA O EX-PRESIDENTE LULA E OUTROS ACUSADOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.

Inicialmente, volto a ressaltar que não tenho nenhum interesse pessoal que me motive a escrever este singelo texto. Não advogo e não conheço os advogados do ex-presidente Lula e dos demais acusados. Minha conduta é impulsionada pelo meu temperamento irrequieto, pela minha constante luta por justiça e pelo fato de ser, por trinta e seis anos, professor de Direito Processual Penal. Até por que, meus alunos vão fazer indagações a respeito de todas estas questões jurídicas ...

Cabe esclarecer, ainda, que não tenho tempo agora para me aprofundar nas questões que vou suscitar abaixo. Por outro lado, vou me ater à parte da decisão que acolheu a imputação feita em face do ex-presidente Lula, que ocupa cerca de 95% da decisão ora examinada. Note-se que, em relação à esposa do ex-presidente, o magistrado se utiliza de apenas um parágrafo, no qual até suscita dúvida sobre o dolo da Dona Marisa ...

Feitas estas considerações preliminares, vamos à análise jurídica da decisão do juiz Sérgio Moro. Entretanto, adiantamos uma assertiva relevante: NÃO ENCONTRAMOS, NESTA DECISÃO, O RECONHECIMENTO DE QUALQUER PROVA, AINDA QUE MÍNIMA, DE UMA CONDUTA ESPECÍFICA DO EX-PRESIDENTE LULA QUE O TORNASSE AUTOR, CO-AUTOR OU PARTÍCIPE DOS CRIMES PRATICADOS PELOS FUNCIONÁRIOS DA PETROBRÁS. TAIS CRIMES SÃO COMISSIVOS E NÃO HÁ PARTICIPAÇÃO POR OMISSÃO EM CRIME COMISSIVOS. SABER DE UM ESQUEMA CRIMINOSO NÃO TRANSFORMA A PESSOA EM PARTÍCIPE DE TODOS OS CRIMES QUE TERCEIROS VENHAM A PRATICAR. ALIÁS, NÃO SE AFIRMOU SEQUER, NA DENÚNCIA E NA DECISÃO JUDICIAL, QUE ESTE ACUSADO SABIA QUE UM OU OUTRO CONTRATO DA PETROBRÁS ERA ILEGAL ...

Para facilitar o nosso entendimento, vamos apresentar os questionamentos em tópicos distintos e objetivos:

1. De há muito vínhamos alertando para a indesejável litispendência, já que a denúncia dos promotores de justiça de São Paulo ainda não tinha sido submetida ao necessário juízo de admissibilidade pelo Poder Judiciário.

Pela primeira vez, ao que saibamos, um juiz rejeitou uma denúncia em autos distintos daqueles onde ela se encontra. Pela primeira vez, vi um juiz disfarçar a decisão de rejeição, ainda que parcial, por meio da seguinte expressão: “deve ela ser devolvida, com a supressão porém de todas as imputações relacionadas ao ex-presidente da república e seus familiares e igualmente em relação a qualquer fato envolvendo o apto. 164-A do condomínio Solaris” (fls 14 da decisão).

Percebe-se que o Dr. Sergio Moro evitou dizer que os promotores de São Paulo acusaram o ex-presidente Lula, neste particular, sem suporte probatório mínimo, até por que, logo adiante, diz que o Ministério Público de São Paulo se equivocou ao vincular o Triplex às fraudes no âmbito da Bancoop.

2. O magistrado esclarece que haveria justa causa para todas as imputações, mas não explicitou o que ele entende por esta categoria jurídica processual. Venho tratando desta controvertida questão em vários trabalhos recentes, que se encontram publicados no site Empório do Direito e na última edição do livro que publiquei, em coautoria com o prof. Pierre Souto Maior Amorim. Ressalte-se, ainda, que o magistrado, a todo momento, confunde duas categorias processuais distintas, confunde ação com processo, numa total falta de técnica.

3. Vale a pena repetir: ciência genérica (não provada) de esquema criminoso não transforma esta pessoa em autor, coautor ou partícipe. É preciso que se tenha prova, ainda que mínima, de alguma ordem específica dada para o autor imediato praticar o crime. Ademais, os diretores e gerentes da Petrobrás sequer são nomeados pelo presidente da república ...

4. Ainda sobre a questão supra, a fls. 5 de sua decisão, o magistrado, após consideração sobre outras condenações por fraudes na Petrobrás, afirma que “questão diferenciada diz respeito ao envolvimento consciente ou não do ex-presidente no esquema criminoso”. Que conduta do Lula caracterizaria este “envolvimento consciente”? Se existe, qual a prova mínima neste sentido? O certo seria verificar e mencionar uma conduta específica de participação direta nos contratos lesivos e individualizados da Petrobrás.

5. Ainda, mais uma vez, sobre esta questão central da existência ou não de conduta de participação dolosa do Lula em face dos contratos, consta da decisão, a fls. 6, a genérica expressão “conhecimento e participação dolosa” ... Indago, participação dolosa através de que ato (conduta) do ex-presidente Lula?

6. Note-se que o magistrado apenas se preocupa com a existência ou não de mera ciência do Lula em relação às fraudes em geral. A fls.11 de sua decisão, isto fica claro quando ele disse que iria individualizar as condutas, mas, na verdade, tudo deduz da suposta circunstância de que o ex-presidente, sendo beneficiário direto das vantagens concedidas pelo grupo OAS, “teria conhecimento de sua origem no esquema criminoso que vitimou a Petrobrás”.

Pergunto novamente apenas para argumentar: ter conhecimento de um “esquema criminoso” transforma a pessoa responsável penalmente por todos os crimes que venham a ser praticados? Alguém pode ser partícipe apenas porque sabe da existência de crimes? E a prova deste conhecimento pode ser deduzida pelo fato de ser o beneficiário de vantagens?

7. Aqui, já não mais vamos debater, em profundidade, a questão do apartamento Triplex de propriedade da OAS. No direito brasileiro, só é proprietário quem tem o seu contrato registrado no Registro Geral de Imóveis. Ademais, em havendo o crime de corrupção passiva, o que não estamos admitindo, a entrega do benefício dele decorrente seria mero exaurimento deste crime. Como se pode considerar ocultação uma eventual transferência de propriedade imobiliária, que pressupõe uma escritura pública e seu registro também público? Diversamente seria se o imóvel fosse simuladamente vendido ou doado a uma interposta pessoa (laranja) das relações do ex-presidente Lula. No caso em tela, nem transferência houve.

8. Ademais, o próprio magistrado reconhece, a fls.8 de sua decisão, que “não foi formalizada a transferência do apartamento 164-A da OAS para eles”. Depois, apenas assevera que o imóvel tinha sido “destinado” ao acusado. Vejam, outrossim, o que está dito na decisão: “há razoáveis indícios de que o imóvel em questão teria sido destinado, ainda em 2009, pela OAS ao ex-presidente e a sua esposa, sem a contraprestação correspondente, remanescendo porém a OAS como formal proprietária e ocultando a real titularidade”. A destinação de um imóvel seria uma reserva em favor do pretendente? Destinação de um imóvel já exige o pagamento de seu preço? Que titularidade é esta sem título????

9. Verifico que o magistrado traz à baila, em sua decisão, o sítio de Atibaia, que não é objeto deste processo ... Aliás, deveria ser, para que amanhã não se faça imputação de outro crime, pois o sítio seria apenas uma parte das benesses em razão dos mesmos contratos ...

10. Com relação ao armazenamento de bens, está dito expressamente que foi o Paulo Okamoto quem providenciou a sua guarda, através das empresas Granero e OAS. Pergunta-se: qual a conduta do Lula que o transformaria em coautor ou partícipe da conduta de outrem neste suposto crime? Constatamos que, em nenhum momento, o magistrado se refere a qualquer conduta do ex-presidente em relação a este armazenamento. Vejam a narrativa de fls. 10.

11. Com relação à esposa do ex-presidente Lula, a fragilidade da acusação é reconhecida pelo próprio juiz. Visitar um apartamento e sugerir reformas para uma eventual compra deste não transforma o visitante em proprietário e não é crime de lavagem de dinheiro. Cabe ressaltar que o casal sequer teve a posse do imóvel, ainda que por um dia. O juiz não disse que fato, demonstrado no inquérito, lhe autorizaria dizer que haveria dolo da D. Marisa. Ao menos, deveria haver prova mínima deste fato. Na verdade, não há prova mínima deste necessário elemento do crime. Sem ele, a conduta é atípica (tipo subjetivo). De forma atécnica, eu diria que é uma “maldade” submeter esta senhora a um processo criminal nestas circunstâncias.

12. Finalmente, mantenho o que tenho sustentado, reiteradamente, em relação à competência da justiça federal, do seu foro e do próprio juízo da 13ª. Vara Federal de Curitiba. Neste sentido, vejam os vários trabalhos que publiquei no site Empório do Direito. Cabe aqui acrescentar mais um argumento, tendo em vista uma assertiva do magistrado: o fato de um réu ser funcionário público federal, no caso, presidente da república, não determina a competência da justiça federal. Ela é fixada pela constituição, tendo em vista o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. A Petrobrás é uma empresa de economia mista, de direito privado. Vale dizer, a competência da justiça federal não é determinada intuito personae. Por outro lado, eventual conexão com outro crime não modifica a competência se não mais houver possibilidade de unidade de processo e julgamento. A prevenção é critério de fixação de competência entre foros ou juízos igualmente competentes. A prevenção não é critério de modificação da competência. Cuidei disso naqueles trabalhos supra referidos.

4 - SERIAM JUSTIFICADAS ESTAS PRISÕES???

Explicação: escrevo este breve texto em situação precária, pois estou em viagem, motivo pelo qual não é mais profundo no aspecto técnico e uma parte dele está em "caixa alta" apenas por erro de digitação.

Como sempre advirto, não sou advogado, não tenho relação com os advogados dos indiciados e não tenho qualquer interesse pessoal no caso. Sou movido pelo culto ao Direito Processual Penal e pelo valor "justiça" e generosidade.

Se isto é fundamentação adequada para a decretação de prisões temporárias, quase todos os indiciados no Brasil podem ser presos amanhã...

Aqui, não discuto a existência ou não de prova dos crimes mencionados na denúncia e de sua autoria ou participação. A questão que cuido neste momento é outra, qual seja: a imprescindibilidade ou não da prisão temporária, como exige expressamente a lei específica. Vale dizer, fatos supostamente delituosos pretéritos, por si só, autorizariam presumir que seus agentes, provavelmente, irão prejudicas a coleta da prova?

Cabe ressaltar: os fatos são muito antigos e os indiciados estavam soltos por todos este tempo. Se quisessem já teriam, de há muito, escondido as provas que os incriminassem ...

Por outro lado, a complexidade das condutas, ditas delituosas e até mesmo a sua alegada gravidade não significam que existe ameaça à ordem pública. Caso contrário, caberia prender quase todos os investigados que se lhes atribuam conduta grave e "complexa" ...

Note-se que os alegados delitos não são recentes ...

O requisito da ordem pública para decretação da custódia cautelar exige demonstração de fato que autoriza a presunção de que, solto, o indiciado voltará a delinquir ... A liberdade do ex-ministro está colocando a ordem pública em risco ... (periculum libertatis) ???

Como professor associado de Direito Processual Penal da Uerj, jamais poderia dizer aos meus alunos que a fundamentação que vai abaixo é razoavelmente justificável para prender os indiciados, muitos com idade avançada, todos com residência fixa, todos com atividade laborativa lícita, família constituída e bens de raiz em seu domicílio.

Confesso que estou com medo de que tenham perdido o "limite das coisas", de que o direito e o poder judiciário já não sejam mais garantias bastantes da cidadania. Quando surge o medo das instituições do Estado, a democracia já não está mais "valendo a pena", ou melhor, haverá democracia mesmo?

Estou de viagem e fiquei "chocado" com as notícias que recebi da prisão do ex-ministro e de suas circunstâncias. Acho que se está perdendo o afeto, a ternura, a humanidade ... Pode ser que esta afirmação decorra da fragilidade que a idade nos outorga, mas digo, grito, "a situação em nosso país está ficando desesperadora"!

Abaixo, vai a parte da decisão que "fundamenta" a suposta necessidade da prisão dos indiciados (não são sequer acusados, réus ...).

"Visualiza-se, de pronto, dois fundamentos. Risco à investigação e à instrução. Afinal, os crimes foram praticados através de estratagemas sofisticados, com uso de contas secretas no exterior e a produção de documentos falsos, inclusive contratos de prestação de serviços simulados ou superfaturados. A falsificação de documentos para acobertar crimes coloca em risco a integridade da instrução e da investigação, havendo risco da produção de novos documentos falsos para conferir suporte a contratos simulados ou superfaturados. Risco à ordem pública. O contexto não é de envolvimento episódico em crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, mas de atuação profissional, longa e sofisticada, no pagamento de propinas em contratos públicos, com utilização de expedientes de ocultação e dissimulação relativamente complexos, inclusive com o emprego de contas em nome de off-shores no exterior para repasse de propinas, utilização de empresas de fachada e simulação de contratos de prestação de serviços simulados ou superfaturados. Por outro lado, não se pode olvidar a gravidade em concreto dos crimes em apuração, com fundada suspeita de que milhões de reais e dólares foram pagos, por meios fraudulentos sofisticados, como propina a agentes públicos e políticos. Viável, portanto, em princípio, a decretação da prisão preventiva requerida. Entretanto, reputo nesse momento mais apropriada em relação a eles a prisão temporária," (a seguir, segue a decisão, cessando aqui a motivação para as prisões temporais. Antes, o magistrado examina a prova em relação ao "fumus boni iuris", necessário a toda medida cautelar).

5 - AINDA IMPACTADO

Agora falo como um cidadão sensível à dor alheia, exercendo o meu direito de livre expressão.

Não sei se por ter perdido uma querida filha, dias após uma cirurgia sem muita gravidade, não sei se pelo meu temperamento emotivo, se pela minha idade, o fato é que, estando a minha esposa, a minha outra filha ou qualquer um dos meus netos, sendo submetidos a uma cirurgia grave, a polícia só me tiraria do hospital arrastado e algemado, após me bater muito. Não se trata de uma bravata, mas de uma assertiva do "profundo da minha alma".

Que perversidade fizeram com o ex-ministro da fazenda, sr.Guido Mantega. Estamos perdendo o sentido de humanidade, de solidariedade com a dor, desespero e dor alheia.

Fico imaginando a agonia do filho do ex-ministro, que me parece ser um adolescente, ao receber a informação de que seu pai iria ser levado preso para Curitiba, enquanto sua mãe estava se submetendo a uma cirurgia, em decorrência de uma doença gravíssima ...

Fico imaginando a agonia do sr. Mantega, na sede da polícia federal, por várias horas, sem saber da saúde da sua esposa e se iria ser levado preso ou não para outro estado...Tudo isso, talvez, possa até mesmo caracterizar uma violação à dignidade da pessoa humana.

Alguma coisa está errada nisto tudo. Dias sombrios estamos vivendo. O pior é que toda esta virulência se perpetra sob a alegação de estar agasalhada pelo nosso sistema jurídico. Ao menos, nas ditaduras, não há este cinismo.

Como o Ministério Público Federal pode formular um requerimento de prisão preventiva deste ex-ministro, tendo em vista que o suposto crime já estaria consumado há anos e o sr. Guido Mantega estava convivendo em sociedade em total normalidade, com residência fixa, família constituída, atividade laborativa lícita e com bens de raiz em seu domicílio? Que conduta ele praticou, neste interregno, que autorizasse a presunção de que ele iria colocar em risco a ordem pública ou a coleta da prova? Provavelmente, isto valha também para a maioria dos demais presos.

As pessoas voltaram a ter medo das nossa instituições estatais ditas democráticas, pois o Direito não mais as protege ... Tudo muito lamentável.

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Afranio Silva Jardim, uma pessoa em estado de perplexidade ...


Imagem Ilustrativa do Post: SEMINARIO INTERNACIONAL "INTEGRACIÓN Y CONVERGENCIA EN AMÉRICA DEL SUR" // Foto de: Cancillería del Ecuador // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dgcomsoc/15755534217

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