Enunciados do CNJ sobre saúde pública (Parte V) – Por Clenio Jair Schulze

04/04/2016

Leia também a Parte I, a Parte II, a Parte III e a Parte IV.

Neste texto são apresentados comentários aos últimos Enunciados sobre saúde pública aprovados na II Jornada de Direito à Saúde do Conselho Nacional de Justiça (maio de 2015).

Nos artigos anteriores também foram comentados os Enunciados sobre saúde pública da I Jornada de Direito à Saúde do Conselho Nacional de Justiça (maio de 2014). 

ENUNCIADO N.º 53

Mesmo quando já efetuado o bloqueio de numerário por ordem judicial, pelo princípio da economicidade, deve ser facultada a aquisição imediata do produto por instituição pública ou privada vinculada ao SUS, observado o preço máximo de venda ao governo – PMVG, estabelecido pela CMED.

Comentário: O bloqueio de verba pública para cumprimento de decisão judicial que determina o fornecimento de medicamentos é posição autorizada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ[1]. O presente enunciado prevê que deve-se priorizar a aquisição de fármacos por entes (públicos ou privados) que possuem vínculos com o SUS. A finalidade é permitir que o valor seja o mais baixo possível, propondo-se como teto as cifras estabelecidas pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial responsável por regular o mercado e fixar critérios para a definição e o ajuste de preços. 

ENUNCIADO N.º 54

Havendo valores depositados em conta judicial, a liberação do numerário deve ocorrer de forma gradual mediante comprovação da necessidade de continuidade do tratamento postulado, evitando-se a liberação única do montante integral.

Comentário: Muitas vezes o ente demandado (União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou operadoras de plano de saúde) não possuem condições de adquirir o medicamento ou produto determinado na decisão judicial. Neste caso, é comum haver o depósito em conta vinculada ao processo do valor correspondente, a fim de demonstrar a boa-fé e evitar sanções por parte do Juízo. O enunciado sugere que os juízes do Brasil tenham cautela na liberação dos valores, especialmente porque muitos dos beneficiados são pessoas de baixa renda e que poderiam, em determinados casos, desviar a quantia para outra finalidade, distinta de fixada no processo judicial. Além disso, como os tratamentos são geralmente prolongados, é importante que haja liberação gradual da cifra, de modo a permitir a sua conclusão.

ENUNCIADO N.º 55

O levantamento de valores para o cumprimento de medidas liminares nos processos depende da assinatura de termo de responsabilidade e prestação de contas periódica.

Comentário: Em razão da posição que autoriza o bloqueio e/ou depósito de valores para cumprimento de decisões relativas ao direito à saúde (ver comentários ao Enunciado 54), os juízes precisam de cautela para evitar utilização indevida dos recursos. Assim, sugere-se que o destinatário dos valores assine termo de responsabilidade - cujo descumprimento pode ensejar a responsabilidade civil e/ou criminal - e preste contas periodicamente sobre os gastos realizados. 

ENUNCIADO N.º 56

Havendo depósito judicial por falta de tempo hábil para aquisição do medicamento ou produto com procedimento licitatório pelo poder público, antes de liberar o numerário é prudente, sempre que possível, que se exija da parte a apresentação prévia de três orçamentos.

Comentário: Muitas vezes os juízes do Brasil proferem decisões baseadas na tutela de urgência, fixando 24h, 48h ou 72h para aquisição de medicamentos importados, experimentais, etc. A despeito da aparente impossibilidade fática para cumprimento da ordem judicial - em razão da inviabilidade de importar-se produtos em poucas horas ou da dificuldade de contratação por dispensa de licitação no mesmo curto período de tempo - os demandados (União, Estado, Distrito Federal, Municípios e operadoras de plano de saúde) depositam o valor correspondente ao produto postulado na via judicial, a fim de demonstrar a boa-fé. Nesta hipótese, o Juízo não pode liberar os valores sem qualquer condição. O Enunciado propõe a exigência de três orçamentos, como forma de controlar, ainda que superficialmente, o custo aproximado da tecnologia (medicamento, produto, etc). 

ENUNCIADO N.º 57

Em processo judicial no qual se pleiteia o fornecimento de medicamento, produto ou procedimento, é recomendável verificar se a questão foi apreciada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC.

Comentário: A CONITEC - criada pela Lei nº 12.401 de 28 de abril de 2011 e regulamentada pelo Decreto n° 7.646 de 21 de dezembro de 2011 - é órgão cujo papel principal é assessorar o Ministério da Saúde - MS nas atribuições de incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, bem como na constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas - PCDT.

Considerando o alto volume de processos judiciais sobre direito à saúde, a Comissão passou a elaborar fichas técnicas sobre os medicamentos e produtos mais judicializados, apresentando informações sobre eficácia, eficiência, efetividade e custo benefício das tecnologias[2].

Além disso, a CONITEC mantém canal aberto com todos os Juízes do Brasil permitindo consultas sobre qualquer produto ou tecnologia. Os pedidos podem ser encaminhados pelo email conitec@saude.gov.br. Assim, os magistrados podem fundamentar as decisões a partir da Medicina Baseada em Evidências - MBE[3] e não apenas em teses jurídicas, geralmente insuficientes para a resolução dos conflitos sobre direito à saúde[4].

ENUNCIADO N.º 58

Quando houver prescrição de medicamento, produto, órteses, próteses ou procedimentos que não constem em lista (RENAME/RENASES) ou protocolo do SUS, recomenda-se a notificação judicial do médico prescritor, para que preste esclarecimentos sobre a pertinência e necessidade da prescrição, bem como para firmar declaração de eventual conflito de interesse.

Comentário: O enunciado materializa a limitação do ato médico[5]. Com efeito, há médicos que não aplicam a Medicina Baseada em Evidências - MBE e acabam prescrevendo tecnologias (medicamentos, produtos, etc) sem comprovação da eficácia, eficiência, efetividade e custo benefício. Assim, a finalidade do enunciado é que os juízes do Brasil controlem tais profissionais, responsáveis pela judicialização indevida. Além dos esclarecimentos que justificaram a prescrição, o médico também deverá demonstrar que não possui conflito de interesse (com o laboratório, fornecedor da prótese, etc).

ENUNCIADO N.º 59

As demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, devem estar fundadas na Medicina Baseada em Evidências.

Comentário: Duas são as teses, basicamente, que fundamentam as decisões judiciais sobre o direito à saúde. A primeira admite que a teoria jurídica é suficiente para resolver os conflitos. A segunda, materializada neste enunciado, enuncia que além da teoria jurídica, também devem ser adotados conceitos da medicina e de outras áreas da saúde. Este entendimento é o mais adequado para a resolução das demandas de saúde - também chamadas de demandas policêntricas, pois envolvem várias ciências e vários fatores não jurídicos que influenciam os casos -, porquanto a teoria jurídica não é autossuficiente. Vale dizer, o direito também é baseado em evidências científicas. E estas evidências são extraídas da área da saúde[6].

ENUNCIADO N.º 60

A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento.

Comentário: O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça entendem que na judicialização da saúde se aplica a regra da responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios, razão pela todos podem ser demandados na via judicial, isoladamente ou em litisconsórcio passivo. Contudo, já há divisão administrativa das atribuições dos aludidos entes da Federação, especialmente à luz da Lei 8080/90. Desta forma, o Enunciado permite que os juízes determinem que a obrigação de fazer fixada na decisão judicial seja cumprida por um ente específico, desde que ele seja responsável administrativamente pela obrigação de fazer. Por exemplo, cabe à União assumir as ações que envolvem a média e alta complexidade em saúde. Nesta hipótese, não seria recomendável fixar a atribuição ao Município ou a Estado, mas à União. Isso evita a relação conflituosa entre os entes públicos, já que não tem existido a necessária cooperação, especialmente no que se refere ao ressarcimento.


Notas e Referências:

[1] PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO DE MEDIDA NECESSÁRIA À EFETIVAÇÃO DA TUTELA ESPECÍFICA OU À OBTENÇÃO DO RESULTADO PRÁTICO EQUIVALENTE. ART. 461, § 5o. DO CPC. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE CONFERIDA AO JULGADOR, DE OFÍCIO OU A REQUERIMENTO DA PARTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. ACÓRDÃO SUBMETIDO AO RITO DO ART. 543-C DO CPC E DA RESOLUÇÃO 08/2008 DO STJ. 1.   Tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação. 2.   Recurso Especial provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 08/2008 do STJ. (STJ, REsp 1069810/RS, Relator Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, j. 23/10/2013, DJe 06/11/2013)

[2] http://conitec.gov.br/index.php/direito-e-saude

[3] SCHULZE, Clenio Jair. Medicina Baseada em Evidências. Revista Empório do Direito, Florianópolis, 11/01/2016. Disponível em http://emporiododireito.com.br/medicina-baseada-em-evidencias-por-clenio-jair-schulze/ Acesso em: 03 abr. 2016.

[4] SCHULZE, Clenio Jair. Direito Baseado em Evidências – DBE. Revista Empório do Direito, Florianópolis, 11/01/2016. Disponível em http://emporiododireito.com.br/direito-baseado-em-evidencias/ Acesso em: 03 abr. 2016

[5] SCHULZE, Clenio Jair. Limites ao ato médico. Revista Empório do Direito, Florianópolis, 11/01/2016. Disponível em http://emporiododireito.com.br/limites-ao-ato-medico-por-clenio-jair-schulze/ Acesso em: 03 abr. 2016

[6] SCHULZE, Clenio Jair. Direito baseado em evidências. Revista Empório do Direito, Florianópolis, 11/01/2016. Disponível em http://emporiododireito.com.br/direito-baseado-em-evidencias/ Acesso em: 03 abr. 2016


 

Imagem Ilustrativa do Post: Flu vaccinations make their way to U.S. Army in Europe // Foto de: U.S. Army Corps of Engineers Europe District // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/europedistrict/4092914530

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura