Enunciados do CNJ sobre saúde pública (Parte I) – Por Clenio Jair Schulze

22/02/2016

Leia também a Parte II, a Parte III, a Parte IV e a Parte V.

Os enunciados possuem uma importância muito grande para o sistema jurídico, pois: (1) permitem esclarecer dúvidas interpretativas sobre determinados preceitos normativos; (2) auxiliam na supressão de omissões normativas; (3) é um produto interdisciplinar, contemplando opiniões de várias áreas das ciências (jurídica, médica, entre outras); (4) permite a abertura do sistema jurídico, a partir de adoção de conceitos inerentes a outras ciências; (5) não é vinculativo - cogente - mas permite a reflexão sobre temas e fomenta a atuação legislativa e normativa.

Com este propósito, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ já realizou duas Jornadas de Direito à Saúde, uma em 2014 e outra em 2015, cujo objeto foi o debate, a votação e a aprovação de enunciados sobre: (1) saúde pública; (2) saúde suplementar e (3) biodireito.

O principal destaque das Jornadas de Direito à Saúde foi a ampla discussão e debate dos temas por atores do sistema de Justiça (juízes, membros do Ministérios Públicos, advogados, procuradores, defensores, entre outros), atores do sistema de Saúde (gestores, médicos, farmacêuticos, etc) e a sociedade civil. Em decorrência disso foram produzidas acaloradas discussões que legitimaram a aprovação de 19 enunciados na I Jornada[1] e 16 enunciados na II Jornada[2], todos sobre de saúde pública, além dos enunciados sobre saúde suplementar e biodireito.

O presente texto tem por finalidade apresentar comentários a alguns enunciados sobre a saúde pública.

ENUNCIADO N.º 1

Nas demandas em tutela individual para internação de pacientes psiquiátricos e/ou com problemas de álcool, crack e outras drogas, quando deferida a obrigação de fazer contra o poder público para garantia de cuidado integral em saúde mental (de acordo com o laudo médico e/ou projeto terapêutico elaborado por profissionais de saúde mental do SUS), não é recomendável a determinação a priori de internação psiquiátrica, tendo em vista inclusive o risco de institucionalização de pacientes por longos períodos.

Comentário: É cada vez mais comum encontrar-se decisões judiciais determinando a internação compulsória. A finalidade do enunciado é evitar que esta medida seja adotada como primeira opção, porquanto o sistema preconiza a desinstitucionalização.

ENUNCIADO N.º 2

Concedidas medidas judiciais de prestação continuativa, em medida liminar ou definitiva, é necessária a renovação periódica do relatório médico, no prazo legal ou naquele fixado pelo julgador como razoável, considerada a natureza da enfermidade, de acordo com a legislação sanitária, sob pena de perda de eficácia da medida.

Comentário: O propósito do enunciado é permitir que o juiz e, principalmente, os entes demandados, acompanhem o quadro clínico do autor da ação judicial. Há muitos processos em que foi concedida da tutela de urgência, com a entrega contínua do medicamento mas sem o seu uso pelo usuário, em razão de ulterior indicação do médico assistente, causando perda do produto ou vencimento da sua validade e, por conseguinte, desperdício de verba pública.

ENUNCIADO N.º 3

Recomenda-se ao autor da ação, a busca preliminar sobre disponibilidade do atendimento, evitando-se a judicialização desnecessária.

Comentário: O Poder Judiciário somente deve atuar quando houver uma negativa administrativa - ou demora abusa no atendimento administrativo. Ou seja, não cabe ao magistrado a atuação per saltum, já o seu papel é o controle/revisão dos atos administrativos e não a substituição à administração. Por isso o aludido enunciado indica que o cidadão deve buscar o tratamento, produto ou medicamento no local adequado - hospital, dispensário, posto de saúde, etc - evitando-se o ajuizamento de ações judiciais sem o interesse processual, que exige a necessidade de intervenção do Judiciário.

ENUNCIADO N.º 4

Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são elementos organizadores da prestação farmacêutica, e não limitadores. Assim, no caso concreto, quando todas as alternativas terapêuticas previstas no respectivo PCDT já tiverem sido esgotadas ou forem inviáveis ao quadro clínico do paciente usuário do SUS, pelo princípio do art. 198, III, da CF, pode ser determinado judicialmente o fornecimento, pelo Sistema Único de Saúde, do fármaco não protocolizado.

Comentário: A Medicina Baseada em Evidências MBE é o melhor instrumento para identificar a eficácia, a eficiência, a segurança e o custo-efetividade de produtos e medicamentos. Os PCDTs são instrumentos construídos a partir da MBE, além das decisões da Conitec, Cochrane, ANS, Anvisa, etc. Desta forma, à luz do princípio da integralidade, que norteia a relação médico-sujeito, é recomendável que sejam utilizadas as medidas já adotadas no SUS para, apenas na hipótese de insucesso, cogitar-se a indicação de tratamento não incorporado no SUS.

ENUNCIADO N.º 5

Deve-se evitar o processamento, pelos juizados, dos processos nos quais se requer medicamentos não registrados pela Anvisa, off label e experimentais, ou ainda internação compulsória, quando, pela complexidade do assunto, o respectivo julgamento depender de dilação probatória incompatível com o rito do juizado.

Comentário: A parte inicial do enunciado colide com a finalidade dos Juizados Especiais, que é desburocratizar o processo judicial e permitir à população o acesso à Justiça sem o patrocínio de advogado e ver uma solução mais rápida à sua demanda, conforme constam das Leis 9099 e 10259. Assim, poderia, de início, haver uma colidência do aludido enunciado com as referidas leis. Contudo, é possível, em determinadas circunstâncias, que a rito ordinário permita a análise e a resolução mais adequada das demandas de saúde, tal como acontece nos casos de tratamentos experimentais, no exterior, entre outros.

ENUNCIADO N.º 6

A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei.

Comentário: É padrão mundial adotar a Medicina Baseada em Evidências - MBE[3], que permite encontrar o tratamento mais eficaz, mais eficiente e mais seguro para as diversas patologias. Por esta razão, a incorporação de novas tecnologias exige a análise cuidadosa de todos estes aspectos. Destes estudos, são criados Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas - PCDTs, as decisões e notas técnicas da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias - CONITEC, da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, do Conselho Federal de Medicina - CFM, do Instituto Cochrane, entre outras entidades.

Em razão da necessidades de robustos estudos[4] é que o aludido enunciado preconiza evitar decisões judiciais para fornecimento de remédios e tratamentos ainda não avaliados.

A parte final do enunciado ressalva a possibilidade de concessão de medicamento não incorporado quando houver previsão legal. Mas não há preceito normativo autorizando. Pelo contrario. A Lei 8.080/90 exige que na incorporação de novas tecnologias no SUS sejam observadas “as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso” (art. 19-Q, § 2º, I).

Por fim, é inegável que a dinâmica da vida tem levado os juízes do Brasil a deparar-se com situações inusitadas, especialmente nos casos de doenças raras e outras patologias. E nestas circunstâncias, acaba-se, muitas vezes, proferindo-se decisão judicial favorável ao cidadão à luz da teoria dos direitos fundamentais. O enunciado não impede isso, apenas exige maior cautela na análise destes tipos de demandas.

ENUNCIADO N.º 7

Sem prejuízo dos casos urgentes, visando respeitar as competências do SUS definidas em lei para o atendimento universal às demandas do setor de saúde, recomenda-se nas demandas contra o poder público nas quais se pleiteia dispensação de medicamentos ou tratamentos para o câncer, caso atendidos por médicos particulares, que os juízes determinem a inclusão no cadastro, o acompanhamento e o tratamento junto a uma unidade CACON/UNACON.

Comentário: O enunciado foi discutido e aprovado porque há muitos processos judiciais em que o autor não acessou o SUS, iniciando tratamento direto na via particular e depois ingressou judicialmente em face dos entes públicos (União, Estado e Município). Assim, é razoável que o autor da ação seja cadastrado nas unidades do CACON/UNACON, a fim de avaliar a situação do tratamento e também porque geralmente são órgãos constituídos por profissionais de área médica altamente qualificados. Enfim, porque esta é a porta de entrada, ou seja, o caminho natural de acesso à saúde pública.


Notas e Referências:

[1] Brasil. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude/i-jornada-de-direito-da-saude. Acesso em 18/02/2016.

[2] Brasil. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Disponível em http://www.cnj.jus.br/eventos-campanhas/evento/133-ii-jornada-de-direito-a-saude. Acesso em 18/02/2016.

[3] MBE "consiste numa técnica específica para atestar com o maior grau de certeza a eficiência, efetividades e segurança de produtos, tratamentos, medicamentos e exames que foram objeto de diversos estudos científicos, de modo que os verdadeiros progressos das pesquisas médicas sejam transpostos para a prática" (NETO, João Pedro Gebran e SCHULZE, Clenio Jair. Direito à Saúde. Análise à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2015).

[4]  - O caso da substância química fosfoetanolamina ilustra bem este ponto.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Flu vaccinations make their way to U.S. Army in Europe // Foto de: U.S. Army Corps of Engineers Europe District // Sem alterações

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