Entre o lúdico e o perigo: a quarentena de crianças

24/03/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Quando se é criança

Quando se é criança tudo é mais leve,

ou pelo menos,

deveria ser mais leve.

O olhar é puro,

as bagunças são terríveis,

as gargalhadas incontroláveis.

Por isso me dói na  alma

A criança negada

A criança  violada

A criança infeliz.

Violência e infância são palavras

 que jamais poderiam estar juntas.

Uma é a negação da outra.

A violência aniquila a infância,

A infância é negada pela violência.

Criança e amor

Criança e brincadeiras

Criança e  alegrias

Criança e estudos

Esses são os verdadeiros binômios

para a realização do ser criança

Criança feliz

Tão só e plenamente: criança.

(Josiane Rose Petry Veronese[2])

Tempos difíceis para todos, e de modo mais especial para idosos e crianças, ambas gerações vulneráveis, que estão a exigir mais cuidado e proteção.

Tantas situações podem ser apontadas. Em um primeiro momento uma sensação de euforia, crianças em casa, sem escola e outros compromissos que dela decorrem. O lúdico se instala. As brincadeiras passam a fazer parte de nossas rotinas. O olhar-se, o estar com os familiares. Dar espaço para as manifestações da infância para muito além dos conteúdos sistemáticos de aprendizagem, para uma aprendizagem assistemática de outras necessidades que passam a ser imprescindíveis neste momento, como o cozinhar juntos, o contar histórias, o mostrar e revelar existências.

Mas será que com o decorrer dos dias, será esta a situação de fato?

Crianças demandam muita energia, e o coronavírus  tem impactado até as almas mais serenas. A criança demandará uma “rotina” de atividades, para não ficar entediada, triste com o enclausuramento forçado, o que exigirá uma criatividade de quem está próximo a ela.

Em tempos/modelos nos quais a família delegou o estar e ser criativo para as escolas, saberão pais e mães serem criativos? Complexo!

E some-se a questão dos que não pararam, continuam nas fábricas, supermercados, farmácias, e exigem que os adultos trabalhem, mesmo em home office.  Terão como ser criativos, pacientes, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, numa sociedade que, em grande parte, ainda não reconhece a criança como sujeito de direitos?

Muitos perderão a paciência... o que abre caminho para a violência doméstica em todos os níveis e classes sociais, pois como sabemos, a violência contra crianças não é oriunda ou presente nas classes sociais mais frágeis em termos econômicos, mas em todas.

De fato, pessoas despreparadas para serem pai/mãe, geram.

A paternidade/maternidade impõe muito mais responsabilidades, do que a ilusão de muitos de que é tudo perfeito, um mundo de fadas.

Não restam dúvidas que ser pai/mãe é algo fantástico, mas impõe deveres reais, pois exige uma forma de existir: pensar no outro. Somente a descoberta do amor é capaz de gerar alteridade.

Em tempos de egoísmo absoluto, em que muitos vivem ensimesmados ao extremo, falar de amor, de cuidado, possa soar como algo piegas. O amor nunca foi e nunca será piegas. É o que a nossa humanidade tem de melhor. Pois até mesmo a ciência, por si só, sem amor, perde-se. Que o diga Einstein. A máxima da ciência, a invenção, tem, exatamente, este sentido – gerar padrões/objetos não ensimesmados. Os grandes inventos voltam-se  para o outro em função dos outros.

O amor, portanto, comporta inventividade, ação, não é mero sentimento. O amor exige mentes e músculos. E com crianças, então, até mais músculos!!!

Somente através da compreensão da cultura da proteção, do cuidado, seremos capazes de não repetirmos “modelos” de violência que passaram por gerações. É preciso dar um basta à violência.

Crianças e adolescentes, vítimas de violência (em suas várias formas) por parte de seus pais, ou por aqueles que exercem uma certa autoridade sobre elas, se tornam indefesas, inseguras e com grandes possibilidades de tornarem-se agressoras de seus futuros filhos (repetição de papéis). Pois as punições corporais violentas, torturas, palavras agressivas, consomem seus corpos e encurtam suas vidas, levando-as a um comprometimento psíquico, que deixa feridas abertas que não cicatrizam nem mesmo com o passar dos anos, restando a elas apenas sequelas como desequilíbrios psicológicos, frustrações pessoais e profissionais entre outras[3].

De acordo com Kolb, a criança vítima de maus-tratos poderá ser vítima da ausência de ideais de ego e superego socializados, o que culminará com a sua deficiência  emocional, com isso irá procurar  manter o controle e o domínio dos outros para obter prazer e satisfação  imediata para seus impulsos, não possuindo  consciência crítica de seus atos e não sendo capaz de se colocar no lugar do outro, se satisfazendo com sua conduta hostil e demonstrando poucos sentimentos de culpa ou remorso. Possuem dificuldades para utilizar seus impulsos agressivos de modo aceitável e construtivo. Caracterizam-se, ainda, por serem irritadiços, arrogantes, inflexíveis e egoístas[4].

E o que o Direito tem a dizer?

No âmbito internacional, merece referência a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada, por unanimidade, pela Assembleia das Nações Unidas, em sua sessão de 20 de novembro de 1989. Em seu preâmbulo, lembra os princípios básicos, tais como a liberdade, a justiça e a paz, os quais reconhecem que toda criatura humana  é possuidora de dignidade e de direitos humanos iguais e inalienáveis. De modo que os povos das Nações Unidas, consoante esse entendimento, decidiram priorizar o progresso social, o que implica a elevação do nível de vida dos mesmos.

Esse documento ratifica o que as Nações Unidas proclamaram e acordaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos; determina que toda pessoa, sem qualquer tipo de distinção, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição, possui os direitos enunciados nesses documentos.

Acentua o fato de que as crianças, tendo em vista a sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e proteção especiais; e enfatiza a importância da família, para que a criança desenvolva sua personalidade, num ambiente de felicidade, amor e compreensão.

Ainda, faz entender que a criança deve estar preparada para poder interagir no meio social e para tanto deve ser educada de acordo com os ideais proclamados na Carta das Nações Unidas e, em especial, com dignidade, tolerância, liberdade, igualdade, solidariedade e espírito de paz.

Em consonância com Tânia da Silva Pereira, “a Convenção representa um consenso de que existem alguns direitos básicos universalmente aceitos e que são essenciais para o desenvolvimento completo e harmonioso de uma criança. Representa em definitivo, o instrumento jurídico internacional mais transcendente para a promoção e o exercício dos Direitos da Criança”[5].

A Convenção objetiva, portanto, a modificação e consolidação de padrões existentes, introduzindo uma série de questões do maior interesse, como também, e de acordo com Pereira, “eleva ainda as obrigações políticas e humanitárias das nações para com suas crianças. Comprometera os assinantes da Convenção com padrões sociais, econômicos e legislativos mais altos, obrigando-os a se reportarem à comunidade internacional sobre o bem-estar de suas crianças”[6].

Da Convenção sobre os Direitos da Criança consideramos oportuno, em razão do tema, destacar:

Artigo 19

Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

E desse modo, proclama que a infância tem direito a cuidado e assistência especiais. Reconhece a família como grupo fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem estar de todos seus membros, e em particular das crianças e adolescentes, que devem receber proteção e assistência necessárias para poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade.

No cenário jurídico interno, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988,  dispõe:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente e ao jovem[7], com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Constituição Federal de 1988, portanto, tem essa nova base jurídico-doutrinária, a qual implica que, fundamentalmente, as crianças e adolescentes brasileiros passam a ser sujeitos de direitos. Essa categoria encontra sua expressão mais significativa na própria concepção de Direitos Humanos de Claude Lefort: “o direito a ter direitos”[8], ou seja, da dinâmica dos novos direitos  que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. Desse ponto de partida o sujeito de direitos seria o indivíduo apreendido do ordenamento jurídico com possibilidades de, efetivamente, ser um sujeito-cidadão.

A construção de um novo ordenamento jurídico que se ocupasse seriamente dos direitos da infância e da adolescência era de caráter imprescindível, pois havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de menores, de semi-cidadãos para a de cidadãos e mais, trouxe a grande possibilidade de construirmos o paradigma de sujeitos, em oposição a ideologia e de toda uma práxis que coisificava a infância. Portanto, no âmbito interno, o Estatuto da Criança e do Adolescente ao assegurar em seu art. 1º a proteção integral à criança e ao adolescente, reconheceu como fundamentação doutrinária o artigo 19 da Convenção.[9]

O Estatuto da Criança e do Adolescente teve e continua tendo a relevante função, ao regulamentar o texto constitucional, de fazer com que este último não se constitua em letra morta. Contudo, a mera existência de leis que proclamem os direitos sociais, por si só não conseguem mudar as estruturas, antes há que se conjugar aos direitos uma política pública eficaz, que de fato assegure materialmente os direitos já positivados.

Apreende-se que todos os dispositivos presentes nos textos jurídicos, seja em âmbito internacional, em especial com a Convenção sobre os Direitos da Criança, seja no âmbito interno, com a Constituição Federal de 1988,   bem como na legislação ordinária, sobretudo a Lei 8.069/1990, pretendem a consolidação de um novo modelo social que priorize o desenvolvimento sadio de seus integrantes.

No entanto, a tão difícil realidade que estamos vivendo aponta um novo comportamento que está a exigir de nós adultos o mais sério dos compromissos: pensar e agir em favor das crianças, indicar-lhes o caminho do respeito, da solidariedade, do comprometer-se com o outro. Que seja esta a lição que este tempo amargo imposto pelo coronavírus nos ensine: um mundo melhor é possível se nos reconhecermos e com ele nos comprometermos.

 

O amor e o tempo

O amor perguntou para o tempo,

como se daria a permanência desse sentimento

com o passar dos anos.

Se o amor se fragilizaria,

se sofreria percalços,

frustrações.

O tempo olhou com ternura o amor,

como conhecedor que era

do presente,

do passado

e do futuro,

disse-lhe:

Sim, passarás por tudo isso.

Mas as fragilidades abraçadas

te farão forte,

Os percalços se transformarão

em determinação.

As frustrações compreendidas

te farão valorizar tudo que tens.

O amor sorriu e

de mão dadas com o tempo

colocaram-se a caminho.

(Josiane Rose Petry Veronese[10])

 

 

Notas e Referências

COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente – uma leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006.

KOLB, Lawrence. Psiquiatria clínica. São Paulo: Interamericana, 1990.

LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade, Trad. de Eliane M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

PEREIRA, Tânia da Silva. A Convenção e o Estatuto: um ideal comum de proteção ao ser humano em vias de desenvolvimento. In: PEREIRA, T. S. (coord.).  Estatuto da Criança e do Adolescente: lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.

ONU. Organização das Nações Unidas.  Convenção sobre os Direitos da Criança.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 20 mar. 2020.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Marina em 85 poemas. Florianópolis:  Emais  editora, 2019.

________. Partitura em poemas. Florianópolis: Emais Editora, 2018.

[1] Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, considera-se como “criança” todo ser humano com idade inferior a 18 anos: “Artigo 1- Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em 20 mar. 2020.

[2] VERONESE, Josiane Rose Petry. Partitura em poemas. Florianópolis: Emais Editora, 2018, p. 52.

[3] Os argumentos apresentados neste estudo podem ser melhor aprofundados na obra escrita em co-autoria com COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente – uma leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006,  p. 98.

[4] KOLB, Lawrence. Psiquiatria clínica. São Paulo: Interamericana, 1990.

[5]  PEREIRA, Tânia da Silva. A Convenção e o Estatuto: um ideal comum de proteção ao ser humano em vias de desenvolvimento. In: PEREIRA, T. S. (coord.).  Estatuto da Criança e do Adolescente: lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos,  p. 67.

[6]  PEREIRA, T. S. - Idem, ibidem.

[7] Conforme redação dada pela Emenda Constitucional n. 65, de 2010.

[8]  LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade, Trad. de Eliane M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991,  p. 58.

[9] Essa norma repetiu o que já havia sido inscrito na Declaração Universal dos Direitos da Criança, que no Princípio 9º dispunha: “a criança gozará proteção contra quaisquer forma de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma”.

[10] VERONESE, Josiane Rose Petry. Marina em 85 poemas. Florianópolis:  Emais  editora, 2019,  p. 129.

 

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