Coluna Constituição e Democracia
Em resposta às declarações do filho do candidato à Presidência Jair Bolsonaro, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, afirmando que, em eventual impugnação da chapa de seu pai, bastaria um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF), a Ministra Rosa Weber, em entrevista coletiva no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), posicionou-se: “No Brasil, as instituições estão funcionando normalmente, e juiz algum no Brasil, os juízes todos no Brasil honram a toga, se deixa abalar por qualquer manifestação que eventualmente possa ser compreendida como de todo inadequada”.[1] Devemos refletir sobre a adequação da fala da Ministra Presidente do TSE e a realidade subjacente ao processo eleitoral. Para tanto, em primeiro lugar, qual o sentido empregado pela Ministra Rosa Weber quando afirma que, no Brasil, as instituições estariam funcionando? Qual o sentido do funcionamento regular das instituições?
Após trinta anos da redemocratização, faz sentido, ainda mais atualmente, levantarmos tal indagação e refletirmos sobre o funcionamento das instituições em um Estado Democrático de Direito. A ameaça por parte de um parlamentar e, até mesmo, como filho de um dos principais candidatos à Presidência da República, demonstram não só um desapreço às instituições democráticas, mas também expressa algo que está no imaginário popular: a irrelevância do Judiciário e suas altas cortes para a construção de um país e de uma nação.
Basta olharmos para a polarização do processo eleitoral e as disseminações das informações nas plataformas digitais para enxergarmos o quão ainda estamos distantes de erguermos uma democracia consolidada. Mais ainda, o quanto ainda não aprendemos que a consolidação de um Estado Democrático de Direito depende essencialmente de que as instituições estejam consolidadas dentro do papel constitucional que lhes é atribuído.
Embora o STF, em sua história institucional, tenha de fato sofrido intervenção autoritária por parte do Executivo, seja na sua composição, seja na possibilidade de superação das decisões, de certa forma, a própria ameaça de fechamento de tão importante instituição dá dois indicativos: 1) em primeiro lugar, e por óbvio, que o mensageiro da ameaça faz parte de um projeto político sem respeito pela democracia e pelas liberdades públicas; 2) em segundo lugar, o desapreço pelas instituições democráticas indicaria que, de alguma forma, elas teriam falhado e estariam falhando em suas missões.
É um pressuposto fundamental para a existência da democracia que a autonomia pública das cidadãs e cidadãos seja exercida de forma a não sofrer qualquer coação externa. Na verdade, a esfera pública deve permitir o diálogo de diversas narrativas em jogo com o qual cada uma possa se expressar, tolerar a existência de outras e mesmo exercer o poder de convencimento pelo melhor argumento. Essa mesma esfera pública sofreu modificação substancial com o advento da rede mundial de computadores e, posteriormente, com as redes sociais. A circulação das ideias e a divulgação das informações atingiram um patamar de velocidade e um potencial que, em pouco tempo, atinge milhões de pessoas a uma velocidade impressionante.
Ao Poder Judiciário cabe um papel fundamental na garantia do Estado Democrático de Direito. Para permitir o livre exercício da cidadania e dos direitos políticos, deve atuar de forma a garantir a autonomia pública dos cidadãos, inclusive no que tange à liberdade no exercício do voto sendo, portanto, fundamental que intervenha para garantir que as informações públicas tenham um caráter pedagógico, verossímil e não agressivo para os demais cidadãos. Tal papel acentua-se no processo eleitoral, ainda mais quando se tem um processo eleitoral eivado de informações falsas e ataques à honra dos cidadãos e os candidatos que representam os projetos políticos em disputa. A intervenção jurisdicional deve ser realizada de maneira a permitir a lisura do pleito e, sobretudo, a liberdade dos cidadãos.
Neste passo, se, pois, temos trinta anos de uma democratização que caminha sujeita a aprendizados, em parte fundamental isto se deveu à própria consciência de que o Judiciário teria de seu papel fundamental no processo de exercício de cidadania. Em especial, o TSE, nesse percurso de configuração democrática, ateve-se a possibilitar o fluxo do processo eleitoral, seja intervindo quando necessário, seja não atuando para não permitir que o resultado eleitoral fosse influenciado judicialmente, atendendendo a uma lógica não representativa exatamente por não ser atingido pela esfera pública.
Ocorre que a participação do TSE nestas eleições, como indicaremos através da análise dos casos concretos, vem desempenhando uma influência decisiva no processo eleitoral, tendo a capacidade de corroer sua legitimidade. Os dois casos aqui analisados referem-se a decisões do Ministro Luis Felipe Salomão. Demonstraremos a contradição interna e externa desses julgados, tanto no que respeita à necessidade de legitimidade da decisão jurisdicional, quanto no aspecto substancial do papel do Poder Judiciário no processo eleitoral.
Na primeira decisão, datada de 14 de outubro de 2018, a coligação “O Povo Feliz de Novo” (PT/PCdoB/PROS), por meio de seu candidato à Presidente, Fernando Haddad, apresentou representação registrada sob o nº 0601693-34.2018.6.00.0000, com fundamento no art. 58 da Lei 9.504/1997, para que pudesse exercer o direito de resposta em face de Olavo Luiz Pimentel de Carvalho, Twitter Brasil Rede de Informação Ltda. e Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. Em seu fundamento, o pedido leva em conta que o primeiro representado teria postado em suas redes sociais alocadas nas duas representadas uma publicação que, de forma injuriosa, acusava o candidato de ter defendido o incesto em livro de sua autoria.[2] Além do direito de resposta, requereu o candidato à Presidência a retirada dos referidos conteúdos e a aplicação da pena de multa.
Em decisão liminar, o Ministro Luis Felipe Salomão entendeu que a intervenção da Justiça Eleitoral em conteúdo da internet deve ser realizada de forma mais restritiva quanto possível. Na verdade, a decisão se apegou ao art. 33 da Resolução do TSE 23.551/2017, além de considerar que, em que pese a ofensividade da postagem do representado, a postagem seria mero exercício da liberdade de expressão e estaria agasalhada pela liberdade de manifestação do pensamento. Entendeu, pois, que eventual controle do conteúdo na internet deve ser realizado pela própria sociedade civil:
Na espécie, em juízo de cognição sumária, embora a publicação veiculada apresente teor ofensivo ou negativo, exterioriza o pensamento crítico do representado acerca de uma obra de autoria do candidato, de modo que a liberdade de expressão no campo político-eleitoral abrange não só manifestações, opiniões e ideias majoritárias, socialmente aceitas, elogiosas, concordantes ou neutras, mas também aquelas minoritárias, contrárias às crenças estabelecidas, discordantes, críticas e incômodas. Aliás, segundo entendo, o controle sobre quais conteúdos ou nível das críticas veiculadas, se aceitáveis ou não, deve ser realizado pela própria sociedade civil, porquanto a atuação da Justiça Eleitoral no âmbito da Internet, ainda que envolva a honra e reputação dos partidos políticos e candidatos, deve ser minimalista, sob pena de silenciar o discurso dos cidadãos comuns no debate democrático. Nessa toada, à luz do princípio da mínima interferência desta Justiça especializada no debate político-eleitoral, penso que não é o caso de remover liminarmente as publicações hostilizadas, pois não traduzem, em juízo preliminar, nenhuma transgressão comunicativa, violadora de regras eleitorais ou ofensiva a direitos personalíssimos, e estão agasalhadas pelo exercício legítimo da liberdade de expressão, nos moldes do art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal.[3]
Sabemos bem que a democracia se assenta no pluralismo de ideias e opiniões e que cabe à esfera pública disseminar tais ideias e opiniões. De qualquer sorte, a liberdade de manifestação do pensamento encontra aí um papel fundamental. No aspecto da coerência interna da própria decisão, veja-se que o Ministro em um primeiro momento considera, pois, que se trata de conteúdo ofensivo e, em um segundo momento, para fazer valer a não intervenção do Tribunal, aduz que ela não agride direitos personalíssimos.
A incoerência externa se apresenta na relaçã com outra decisão do próprio Ministro. Ela ilustra como o TSE acaba por realizar um papel distante de sua missão constitucional, tornando possível a erosão da democracia que considera imprescindível o correto funcionamento das instituições.
Na representação sob o número 0601776-50.2018.6.00.0000, a coligação “Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos” (PSL/PRTB) e seu candidato à Presidência Jair Messias Bolsonaro apresenta representação por propaganda irregular em face da coligação “O Povo Feliz de Novo” (PT/PCdoB/PROS), impugnando propaganda eleitoral gratuita veiculada na televisão, nos dias 16 e 17 de outubro de 2018, porquanto violado o art. 242 do Código Eleitoral.[4]
A causa de pedir estaria relacionada ao fato de que a coligação representada pretendia veicular propaganda na televisão na qual vinculava o representante à tortura, ao aludir à apologia por ele feita ao torturador Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e demonstrando que seus seguidores estariam espalhando o terror pelo Brasil. Entendeu, portanto, a petição inicial que a referida propaganda estaria em dissonância com o art. 242 do Código Eleitoral,[5] uma vez que estar-se-ia criando um clima de confronto entre os dois principais candidatos.
Na decisão liminar, o Ministro Luis Felipe Salomão entendeu que a propaganda ultrapassou a razoabilidade e infringiu a legislação eleitoral, sob dois fundamentos principais: 1) a propaganda estaria, de fato, incutindo um estado de ânimo capaz de criar um estado emocional que poderia levar à violência; 2) os trechos do filme “Batismo de sangue” são cenas fortes de tortura e, de acordo com a classificação etária do Ministério da Justiça, destina-se à faixa etária para maiores de 14 (catorze) anos de idade e, pois, só poderia ser veiculado após as 21:00 (vinte e uma) horas. Como, entretanto, a legislação eleitoral estabelece o início da propaganda em bloco às 20:30 horas, não seria possível sua veiculação.[6]
Há, portanto, no plano da coerência externa da decisão não só uma incoerência lógica entre a primeira e a segunda decisão, mas também uma incoerência em relação ao significado constitucional da liberdade de expressão.
Sobre a incoerência externa lógica: veja-se que na primeira decisão o Ministro Salomão utiliza-se do fundamento da liberdade de expressão para permitir uma publicação que se afigura não só inverídica e até mesmo fantasiosa, além de agressora da imagem e da honra do próprio candidato. Não é preciso ser nenhum expert para entender que a prática incestuosa agride a honra subjetiva e objetiva do candidato. Na segunda decisão, entretanto, a mesma liberdade de expressão é utilizada para suprimir uma informação que constata um fato evidente e que é, inclusive, objeto de gravação audiovisual. Vale dizer, o candidato Jair Bolsonaro, por diversas vezes, se manifestou favoravelmente à tortura e as práticas realizadas pelos mais diversos agentes estatais que a praticaram durante o regime ditatorial civil-militar de 1964-1985.
Embora tais posicionamentos do candidato sejam públicos, a decisão sustenta a ilegalidade de ligá-lo a tais posicionamentos. Evidentemente, o fundamento é o de que o candidato pode exercer a liberdade de manifestação do pensamento na esfera pública e, não pode, pois, outrem vincular a liberdade de pensamento a suas opiniões. Para tentar, ainda, dar mais segurança a sua decisão, utiliza argumentos de legalidade formal.
De todo modo, a incoerência externa substancial se encontra na ideia equivocada da liberdade de pensamento do Ministro Salomão. Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a liberdade de manifestação do pensamento é a possibilidade que têm os indivíduos e sujeitos de um Estado Democrático de Direito de expressarem publicamente seus projetos, suas ideias, como partes de um projeto político plural que os acolhe e garante, na esfera pública, apresentam um pensamento crítico e social que nos constitui como uma comunidade de livres e iguais. Ora, de outro modo, por óbvio, a liberdade de manifestação do pensamento encontra seus limites no discurso de ódio. Basicamente, os discursos de ódio (hate speech) apresentam uma manifestação de pensamento que busca inferiorizar e menosprezar os projetos de vida, ideias, de sujeitos que buscam conviver igualitariamente em uma sociedade plural.
Parece-nos bem simples entender: a liberdade de manifestação do pensamento só é agasalhada se o conteúdo parte do fundamento de que todos os sujeitos são iguais no projeto político-democrático. O discurso de ódio, obviamente, busca inferiorizar as minorias e, mesmo, negar a igualdade de outros sujeitos.
Evidentemente, é fato notório que a prática de tortura no Brasil foi realizada por agentes estatais que perseguiam os considerados subversivos, isto é, indivíduos que pensavam de forma dissonante. As práticas da tortura e, pois, sua apologia pública, além de constituírem fatos típicos, constituem mesmo um discurso de ódio e não podem ser agasalhadas pela liberdade de expressão. Não se pode desconsiderar que a apologia feita pelo candidato Jair Bolsonaro é ainda mais perniciosa diante do fato de que o Superior Tribunal de Justiça manteve condenação cível em ação declaratória que reconheceu a responsabilidade de Ustra por torturas praticadas na ditadura contra cinco integrantes da família Teles.[7]
Uma vasta bibliografia recente tem procurado identificar causas e contribuições diretas de instituições e agentes específicos para a deterioração de democracias e sistemas constitucionais ao redor do mundo.[8] Países como Estados Unidos, Hungria, Polônia, Filipinas, Turquia, entre outros, vêm enfrentando crescentes ondas autoritárias. Tais diagnósticos podem e devem incluir o papel recente que tribunais e cortes no Brasil têm dado para o fortalecimento de propostas autoritárias e o crescimento da instabilidade institucional.[9]
Post escriptum: quando já havíamos enviado o presente texto para publicação, eis que, no dia 24 de outubro, novamente, o TSE, através de decisão liminar do Min. Luis Felipe Salomão, reitera a decisão proferida anteriormente no sentido de proibir propaganda eleitoral veiculada pelo candidato Fernando Haddad na qual apresenta entrevistas dadas pelo próprio candidato Jair Bolsonaro em que este último afirma ser favorável à tortura. Mais uma vez, os fundamentos são os mesmos: a noção de que a propaganda extrapolou os limites da razoabilidade e de que a peça teria a possibilidade de criar o estado de animosidade no eleitorado. Ao que nos parece, o próprio TSE quer distorcer a realidade – como se fosse possível desdizer o já dito.
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-out-21/video-eduardo-bolsonaro-fechar-stf-prender-ministros, acesso em 21 de outubro de 2018.
[2] Decisão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-tse-haddad-olavo-carvalho.pdf, acesso em 22 de outubro de 2018.
[3] Decisão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-tse-haddad-olavo-carvalho.pdf, acesso em 22 de outubro de 2018.
[4] Decisão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/tse-suspende-liminarmente-propaganda.pdf, acesso em 22 de outubro de 2018.
[5] “Art. 242. A propaganda, qualquer que seja a sua forma ou modalidade, mencionará sempre a legenda partidária e só poderá ser feita em língua nacional, não devendo empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais.”
[6] Decisão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/tse-suspende-liminarmente-propaganda.pdf, acesso em 22 de outubro de 2018.
[7] Disponível em https://www.jota.info/justica/stj-confirma-decisao-que-reconheceu-ustra-torturador-09122014, acesso em 24 de outubro de 2018.
[8] Por exemplo, LEVITSKY, Steven. ZIBBLATT, Daniel. How Democracies Die? New York: Crown Publishing, 2018; RUNCIMAN, David. How Democracies End. New York: Basic Books, 2018; SNYDER, Timothy. The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America. New York: Tim Duggan Books, 2018; SUNSTEIN, Cass. Can it happen here? Authoritarianism in America. Dey Street Books, 2018.
[9] Para uma análise nesse sentido, cf. MEYER, Emílio Peluso Neder. Judges and Courts in Unstable Constitutionalism Regimes: The Brazilian Judiciary Branch’s Political and Authoritarian Character. German Law Journal, v. 19, n. 4, 2018, p. 727-768.
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