Hodiernamente, muitos acreditam, equivocadamente, que a missão da justiça penal é punir – e talvez seja. Em nome da fúria punitiva, alimentada pela mídia opressiva, insistem em dizer que “o Brasil é o país da impunidade”. Neste diapasão, afirmam, erroneamente, que as leis daqui são extremamente benéficas para com os “criminosos”. Alguns, com viés fascista, repetem insistentemente que “bandido bom é bandido morto”. Há aqueles que, com saudade da ditadura militar, ovacionam a tortura e aclamam os torturadores. Os chamados “homens de bem”, na esteira de Carl Schmitt e Günther Jakobs, elegem seus “inimigos” para satisfazer seus próprios interesses e da maioria de ocasião. Sim, há punitivista para todos os gostos, inclusive os que agem em nome de uma suposta “segurança jurídica” e de um obscuro “princípio da colegialidade”. Em razão da perversa lógica de que “os fins justificam os meios”, rasgam a Constituição da República e atropelam direitos e garantias fundamentais.
É sabido que a história do processo penal está relacionada com o poder mais primitivo: o poder punitivo.
Apesar disso, o processo penal não pode ser visto, em pleno século XXI, conforme ressalta Aury Lopes Jr., como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Como bem alertado pelo citado autor, “há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)”.[1]
Entretanto, conforme observa Afrânio Silva Jardim, “engana-se quem estiver pensando que a elaboração de um novo processo penal pautado em princípios constitucionais claramente democráticos poderá, por si só, resolver ou mesmo deter de um lado a violência dos aparelhos repressivos do Estado, e do outro a crescente criminalidade de nossos dias. A ineficácia, neste particular há muito, já vem sendo demonstrada pelos autores mais críticos da moderna criminologia”. Na verdade, prossegue o eminente processualista, “a questão há de ser examinada e estudada sob outros ângulos, já que o Direito é apenas um dos muitos instrumentos de controle social, talvez o menos eficaz na sociedade complexa em que vivemos, pois vai atuar principalmente após a consumação da agressão aos valores mais aceitos pela comunidade”.[2]
Note-se que no âmbito da democracia material (real), participativa, integradora e solidária, o processo penal não pode ser tomado apenas como instrumento de composição de litígio penal, devendo sim, especialmente, ser um instrumento político de participação, de acordo com o nível de democratização da sociedade. De tal modo, torna-se imprescindível a “coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminho da Constituição, porquanto, institucionalizando a proteção dos mencionados direitos, reconhece-se que somente pela via democrática atingirão sua plena efetividade”. [3]
Contudo, desgraçadamente, a realidade está bem longe do ideal. A realidade tem demonstrado e comprovado que o direito, notadamente o direito penal, como instrumento de poder, tem infligido, preferencialmente e majoritariamente, aos mais vulneráveis toda forma de crueldade concebida pela pena de prisão.
Como é sabido, o sistema penal é seletivo, repressivo e estigmatizante. Basta verificar a “quem são os criminosos” para comprovar a perversidade do sistema penal. E apesar de tudo, há, ainda, os que insistem em dizer, levianamente, que o Brasil com aproximadamente 750 mil presos – terceira maior população carcerária do planeta – é o país da impunidade. População carcerária, que é composta majoritariamente pelos mais vulneráveis: jovens, negros, pobres e com baixa escolaridade.
O criminólogo Juarez Cirino dos Santos com sua visão crítica discorre sobre os objetivos reais (ou latentes), nos quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenômenos da vida social nas sociedades contemporâneas, identificados pelo discurso crítico da teoria criminológica da pena.
Segundo Juarez Cirino, “a política de controle social instituída pelo Direito Penal e implementada pelo Sistema de Justiça Criminal inclui o conjunto do ordenamento jurídico e político do Estado, além de outras instituições da sociedade civil, como a empresa, a família, a escola, a imprensa, a Igreja, os partidos políticos, os sindicatos, os meios de comunicação etc. As formas jurídicas e políticas do Estado e as organizações da sociedade civil convergem na tarefa de instituir e reproduzir uma determinada formação econômico-social histórica, em que os homens se relacionam como integrantes de classes ou de categorias sociais estruturais da sociedade. O Direito Penal e o Sistema de Justiça Criminal constituem, no contexto dessa formação econômico-social, o centro gravitacional do controle social: a pena criminal é o mais rigoroso instrumento de reação oficial contra as violações da ordem social, econômica e política institucionalizada, garantindo todos os sistemas e instituições particulares, bem como a existência e continuidade do próprio sistema social, como um todo”.[4]
Numa sociedade de classes, destaca Nilo Batista, “a política criminal não pode reduzir-se a uma ‘política penal’, limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma ‘política de substitutivos penais’, vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos”. [5]
O direito penal – em razão do seu caráter fragmemtário e subsidirário – não pode, definitivamente, se transformar no principal instrumento de controle social. A utilização da pena criminal para aniquilar os excluídos, os vulneráveis e os elegidos “inimigos” é própria de regimes autoritários e de exceção.
Necessário advertir que o autoritarismo no direito (penal e processual penal) é empregado, notadamente, para combater problemas sociais, entre os quais: desigualdade social, pobreza, subdesenvolvimento e alguns casos de insurgência. Neste viés, quanto mais autoritário é o Estado, mais faz uso da legislação penal como forma de contenção dos problemas sociais.
Assim sendo, mais do que nunca, visando principalmente minimizar os danos causados pelo direito penal - braço repressor e violento do Estado - é que se faz necessário buscar caminhos que levem à maximização das liberdades e a minimização do poder punitivo, bem como, alternativas voltadas para a proteção do individuo e do respeito à dignidade da pessoa humana
No que ser refere ao processo penal, urge que se compreenda, definitivamente, que na concepção do processo penal democrático - único compatível com o Estado Constitucional - a liberdade do acusado, o respeito a sua dignidade, os direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo e de que o respeito a tão proclamada dignidade humana é postulado do Estado democrático de direito.
Notas e Referências
[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2] JARDIM, Afrânio da Silva. Direito processual penal: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
[3] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014.
[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
Imagem Ilustrativa do Post: Sistema Penitenciário Brasileiro 15112012 // Foto de: Marcelo Freixo // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/marcelofreixo/8189106032
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/