Entre a Moqueca Capixaba e o desvio de função legitimado pelo Estado: o problema da investigação conduzida pela Polícia Militar - Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos

23/07/2016

No artigo anterior, fizemos um tour pelos encantos e desencantos do Maranhão, contrastando a riqueza cultural do lugar com o descompromisso aos direitos fundamentais pelos órgãos públicos. Trata-se de uma realidade que aflige inúmeros Estados da Federação, como se regramentos constitucionais e convencionais pudessem ser interpretados ao sabor do "jeitinho brasileiro".

Neste artigo, continuamos a nossa caminhada e, após sairmos do nordeste, aterrissamos no Espírito Santo, terra da única e legítima moqueca (como dizia o jornalista e escritor Cacau Monjardim, "Moqueca, só capixaba. O resto é peixada"), dos encantos de Pedra Azul e Santa Tereza, de sítios históricos, como o Convento da Penha (um dos santuários religiosos mais antigos do Brasil que, do alto do Morro da Penha, abençoa todo o Estado) e do charme irresistível de sua capital, Vitória. As belezas de Vitória, inclusive, são refletidas nas músicas de algumas bandas dessa terra, regidas por uma mistura de congo e reggae:

(Macucos - Além do Mar)

Já é quase noite por toda cidade E tudo é tão lindo no céu prateado de néon Sem rumo e sem lugar vagando eu vou Rei poeta e sonhador Em busca da felicidade

Da mesma forma que no Maranhão, a riqueza do Espírito Santo contrasta com o desrespeito aos direitos fundamentais, muitas vezes legitimado pelos órgãos que deveriam combatê-lo. É como se a lesão a direitos fundamentais deixasse de existir quando o Estado concordasse com tal lesão e a legitimasse!

Falamos das investigações conduzidas pela Polícia Militar, do cumprimento de medidas cautelares por essa instituição (busca e apreensão, interceptação telefônica, e outras) e do constante embate com a Polícia Civil no tocante à presidência de procedimentos envolvendo confrontos entre militares e civis (possíveis homicídios consumados ou tentados cometidos por policiais militares contra civis, no que geralmente se intitula "auto de resistência" ou "resistência seguida de morte").

O cenário é de caos e completo desrespeito às normas constitucionais.

Poderíamos falar da orientação formalizada no Boletim Informativo nº 13/2005, do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Espírito Santo (“Assim, além do juiz e das partes, tal medida [busca e apreensão] poderá ser provocada pela autoridade policial, por meio de representação dirigida ao juiz, sendo ilegal a iniciativa de buscas e apreensão por parte da PM, salvo nos casos de crimes militares. Assim, visando solucionar o vício de iniciativa, poderá o Ministério Público encampar o pedido, requerendo ao juiz a sua decretação.”), o qual refutou a iniciativa da busca e apreensão pela Polícia Militar, mas que autorizou - pasmem! - a execução de tal medida cautelar pelos militares, contrariando o art. 144 da Constituição Federal que atribui às Polícias Civis e Federal a função de Polícia Judiciária. Ora, não seria o Ministério Público o legitimador da usurpação da função da Polícia Civil pela Polícia Militar, usurpação essa que deveria o próprio Ministério Público combater?

Poderíamos falar da Resolução Conjunta nº 1/2014, publicada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo, revogada em 2015, mas que perdurou tempo o suficiente para contribuir para a majoração da tensão entre Polícia Civil e Polícia Militar. A mencionada resolução atribuía à Polícia Militar a presidência de inquéritos policiais, envolvendo confrontos armados com possível homicídio doloso consumado ou tentado, vetando, inclusive, o recolhimento das armas envolvidas no fato, pela Polícia Civil, a fim de que fossem periciadas. Em terra capixaba, resolução estadual é capaz de ter mais efetividade do que uma resolução federal, no caso a Resolução nº 08, de 21 de dezembro de 2012, editada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a qual consolida um procedimento para a atuação da Polícia Civil nos mencionados crimes, de modo a afastar qualquer atividade da Polícia Militar.[1]

Poderíamos falar da regulamentação feita por alguns Batalhões da Polícia Militar em solo capixaba, que regulam internamente um procedimento para a lavratura de termo circunstanciado. Como se agentes de autoridade pudessem, para utilizar o termo de Helio Tornaghi,[2] arvorar-se na condição de Autoridades Policiais, com fundamento em resolução interna da corporação, contrariando a Constituição Federal, a legislação pátria e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Não aprofundaremos, de forma pormenorizada, cada uma das questões supra mencionadas, o que fazemos na nossa obra Delegado de Polícia em Ação: Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito. Por hora, vale uma análise ampla da triste situação.

Em muitos casos, como no Espírito Santo, essa transferência incontrolada de atribuições à Policia Militar é fomentada por um Poder Executivo inerte (devidamente legitimado pelo Ministério Público, Poder Judiciária e OAB), que renuncia a estruturação e a qualificação dos profissionais da Polícia Civil. No entanto, mesmo nesses casos, a possibilidade de a Polícia Militar investigar crimes de pessoas civis, não só se mostra flagrantemente inconstitucional, como também dificulta o trabalho da Polícia Civil, por existir uma concorrência de informações decorrentes da investigação sem um diálogo entre as instituições.

Quando a Policia Militar investiga e representa por medidas cautelares (interceptação telefônica, busca e apreensão, e outras), funções exclusivas de Polícia Judiciária, pratica o crime de usurpação de função pública (art. 328 do CP) e deixa de prestar com a máxima eficiência o seu dever constitucional, como prevê o art. 144, § 5º, da Constituição Federal: “Às policias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.

Não se trata de uma disputa de forças, mas, tão somente, de delinear as atribuições das respectivas polícias, a fim de agilizar as investigações e possibilitar à Polícia Militar dedicar-se exclusivamente ao seu munus constitucional, qual seja, o policiamento ostensivo, garantindo, assim, a preservação da ordem pública. Afinal, não mais vivemos uma ditadura, na qual era possível trabalharmos com a condução de investigação de civis por militares. A Ditadura nos ensinou muitas coisas, entre elas o fato de que investigação criminal de civil e instituição militar não poderem estar na mesma frase.

Ao seguir essa linha de pensamento, o STF entendeu, na ADI 3614,[3] que o desempenho por subtenentes ou sargentos de atividade típica de Polícia Judiciária configura desvio de função, caracterizando violação direta ao art. 144 da Constituição Federal. Cita-se ainda o RE 720617,[4] no qual o STF, ao fazer referência à ADI 3614, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar. Insere-se, nesse contexto, o cumprimento de mandados de busca e apreensão, a interceptação telefônica e outros atos de natureza investigativa.

Como nós temos que aprender a viver (ou melhor, conviver!) com a realidade que nos é dada, resta-nos somente lutar por uma melhora nos cenários apresentados (alguns até já foram resolvidos); nesse meio tempo, devemos compreender que é a luta diária pelos direitos fundamentais que nos faz integrante deste sonho chamado Estado Democrático de Direito. Afinal, a canção (e a luta) não pode parar...

(Macucos - Haverá)

Haverá uma canção em cada gesto, em cada olhar Pelos caminhos dessa vida sempre haverá Uma canção nos dedos longos de algum rapaz que agente vê

É por isso que, entre a mencionada postura do Estado e atuação investigativa da Polícia Militar, escolheremos a Moqueca Capixaba todas as vezes, prato que evidencia o perfeito equilíbrio entre o sabor, a tradição e a cultura, devidamente servido na panela de barro!!! Se fecharmos os olhos é possível, inclusive, sentir o cheirinho desta iguaria...


Notas e Referências:

[1] Sobre o tema, conferir, ainda, artigo de Bruno Taufner Zanotti. O Delegado de Polícia e a ilicitude dos atos que fundamentam um possível APFD: o caso do cumprimento de mandado de busca e apreensão pela Polícia Militar. Disponível em: <http://pensodireito.com.br/03/index.php/component/k2/item/42-o-delegado-de-pol%C3%ADcia-e-a-ilicitude-dos-atos-que-fundamentam-um-poss%C3%ADvel-apfd-o-caso-do-cumprimento-de-mandado-de-busca-e-apreens%C3%A3o-pela-pol%C3%ADcia-militar>. Acesso em: 20/7/2016.

[2] TORNAGHI, Hélio Bastos. Conceito de autoridade policial. Disponível em: < http://www.adpf.org.br>. Acesso em: 10 ago. 2012.

[3] ADI 3614, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 20/09/2007.

[4] RE 702617, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 28/08/2012.

SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de Polícia em Ação: teoria e prática no Estado Democrático de Direito. 4ª ed. Rev. ampl. atual. Salvador: JusPodivm, 2016.

TORNAGHI, Hélio Bastos. Conceito de autoridade policial. Disponível em: < http://www.adpf.org.br>. Acesso em: 10 ago. 2012.

ZANOTTI, Bruno Taufner. O Delegado de Polícia e a ilicitude dos atos que fundamentam um possível APFD: o caso do cumprimento de mandado de busca e apreensão pela Polícia Militar. Disponível em: <http://pensodireito.com.br/03/index.php/component/k2/item/42-o-delegado-de-pol%C3%ADcia-e-a-ilicitude-dos-atos-que-fundamentam-um-poss%C3%ADvel-apfd-o-caso-do-cumprimento-de-mandado-de-busca-e-apreens%C3%A3o-pela-pol%C3%ADcia-militar>. Acesso em: 20/7/2016.


Imagem Ilustrativa do Post: Moqueca capixaba // Foto de: Gláucia Góes // Sem alterações

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