Entre a biologia e a cultura: o caso do Direito (Parte 3)

04/05/2018

Para saber quién gobierna sobre ti simplemente investiga a quién no te esté permitido criticar”.

Voltaire

 

A posta em comum e a acumulação dos descobrimentos ao longo do tempo, assim como o estabelecimento de convenções e regras para coordenar desejos, interesses e necessidades muitas vezes enfrentados, fizeram possível o surgimento entre os seres humanos do fenômeno que chamamos “cultura”. E esta cadeia causal contínua que vai da biologia à cultura, passando pela psicologia, converte a (tradicional) divisão fundamental entre as ciências e as humanidades em algo completamente obsoleto e inócuo.

Nada obstante, não são poucos os que continuam a construir relatos, teorias ou ideais jurídicos sem sequer comprovar que a natureza, o significado das ideias e os argumentos que manipulam sejam possíveis, ou se percebam como possíveis, para seres como os sapiens. Apesar disso, direi que não há que ser tão duro e/ou incomplacente com esse conhecido tipo agonizante de jurista que, invocando desde «el más allá» uma laia de inteligência pura e relutando em manter-se ao dia com os desenvolvimentos científicos pertinentes, não deixa, com nosso consentimento, de recorrer a todo um conjunto de conjecturas elaboradas para dar as explicações mais “verossímeis” que não passam de certezas introspectivas e/ou a contorcionismos linguísticos injustificados que fragmentam e dissimulam a realidade das coisas, escravizando todo pensamento em uma forma de conhecimento estéril.

Se buscamos a realidade, sejamos realistas: Que levante a mão aquele que ainda se surpreende com o fato de que aprender “cálculos trabalhistas” não continua sendo mais importante que ter alguma noção (ainda que mínima) dos aspectos evolutivos e neurológicos que se consideram agora decisivos para entender em que consiste nossa cognição, nossa intuição, nossa percepção, nossa racionalidade, nossa memória, nossos instintos e predisposições, as avaliações contidas nas emoções, a necessidade de conquistar prestígio social e de pertencer a um grupo, a predisposição para pensar nas (ou “ler” a) mentes dos demais, a tendência a cooperar, a razoar em termos de contrato social, etc...etc.? Ninguém?!

Um Direito à medida deveria abrir espaço a um novo paradigma naturalista, materialista[1] e interdisciplinar[2], posicionar-se frente a natureza e a função do Direito com relação ao ser humano em continuidade com o reino animal, plenamente inserido no mundo natural e cultural do vivo; isto é, deixar de considerar a espécie humana exclusivamente como um templo cultural, uma «tabula rasa» na qual se pode escrever qualquer coisa e que alberga um conjunto de valores intrínsecos, eternos e/ou sagrados. 

 

NOTAS

[1] Para um materialismo dessa natureza é nossa estrutura genética, especialmente a neuronal, a que determina, em última instância, o que essencialmente somos. É interacionista, por outro lado, no sentido de que embora conceda um espaço considerável ao meio cultural e à educação, tende a conceber que dito espaço, ainda que crucial, é relativamente secundário frente ao peso específico que no ser humano tem a naturalidade. Este novo argumento para uma perspectiva materialista da natureza humana representa um reto ao conhecimento jurídico e com ele um ataque aos tradicionais sistemas de crenças produzidos pelo modelo standard das ciências sociais que diz que tudo é cultura e nega por completo qualquer papel à biologia.

[2] Na atualidade, a adoção de um modelo vertical de integração conceitual entre as ciências do comportamento proposto por Jerome Barkow passou a ser um imperativo contra a ameaça ou o contágio dos erros produzidos pelo desconhecimento e um alerta de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral e epistêmica de nossos argumentos. A ideia básica consiste em propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento sejam mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido nas ciências naturais, ou seja, uma explicação verticalmente integrada dos fenômenos. Nas palavras de Barkow, essas explicações (“verticalmente integradas”) que, em ciências humanas, são simultaneamente cruciais e raras, querem significar que o que é exigido é sempre um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise e que sejam todas mutuamente compatíveis. A integração vertical, portanto, não exige que digam todos as mesmas coisas, mas que digam coisas compatíveis entre si e com outras áreas de conhecimento, ou que, pelo menos, tornem explícitas as incompatibilidades.

 

 

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