Entre tantos dissensos políticos e ideológicos, o momento presente tem demonstrado uma conjuntura democrática desde o emergir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, consoante ao que se confere na Lei Maior, assegura Direitos e Garantias Fundamentais a todo o Cidadão, seja nato ou naturalizado.
A Sociedade brasileira, a partir da promulgação de seu texto constitucional, expressa uma nova conquista democrática. Passado o turbulento período ditatorial regado a práticas de tortura somando-se à anulação dos direitos políticos do povo, bem como às censuras culturais limitando o trabalho dos radialistas, repreendendo textos, livros e músicas, além de cercear conteúdos televisivos e prender indivíduos injustificadamente, os filhos deste solo estariam, pois, libertos de um contexto sombrio sem sinal algum de Democracia, em que pese o desenvolvimento econômico ocorrido.
Como circunstância de sua trajetória de vida pessoal e profissional, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ao qual se manifesta todas as homenagens, participou ativamente da luta contra a Ditadura Militar, seja enquanto estudante do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina ou exercendo atividade jornalística no período em que necessitou tomar distância da instituição, mesmo que de modo temporário.
Foi a partir de sua construção intelectual que Cancellier edificou sua postura profissional agregando significados para além de sua vivência. A sua notada integridade, acompanhando seu porte modesto, dizem as companhias próximas, tornava virtuoso seu caminho. Os pesados fatos históricos jamais serviram de subterfúgio para evadir-se de qualquer embate ou divergência emergidos em sua jornada. Bem ao oposto, desde o início da vida adulta tomou por bem lutar munido de seus dignos ideais dentro de uma perspectiva coletiva de modo a apoiar e estimular melhores condições políticas, sociais e econômicas.
Estabelecida a rota acadêmica a contar de seu retorno, em 1996, nos bancos universitários, Cancellier graduou-se em Direito pela UFSC, mesma Universidade em que concluiu seu Mestrado e seu Doutorado. A partir da Graduação, seria este o mesmo local, além de sua residência particular, que encontraria uma das suas maiores paixões, tendo a sorte de tê-la como seu ofício.
A partir desse cenário, conduziu sua trajetória acadêmica e de carreira, circunscrito à Universidade Federal de Santa Catarina. Em seu traquejo universitário, considerou lançar-se candidato à Reitoria da instituição. Ao realiza-la, sob o lema “A UFSC pode mais”, logrou êxito, indo ao encontro de sua realização profissional.
Cancellier – o Cau - poderia desenvolver a sua gestão de modo integral, não fosse um infortúnio levando ao cabo todo seu vigor pela administração da Universidade profanando seu nome enquanto dirigente da instituição, o que o marcaria para sempre.
De súbito, anunciavam nas mídias locais e nacionais que o Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina havia sido preso por suspeita de movimentar R$ 80 milhões de reais destinados a programa de ensino à distância, acusando-o de obstrução à justiça. A informação era referente à investigação “Operação Ouvidos Moucos”, comandada pela Polícia Federal.
A partir desse desastroso fato, interesses midiáticos se estabeleceram contra a imagem do Reitor em propagar um processo penal espetacularizado (CASARA, 2016), favorecendo a disseminação do senso comum injurioso da população que desconhece a Lei e estimulando julgamentos precoces a respeito de sua integridade profissional e até mesmo pessoal.
Na verdade, o que se observa como consequência dessa Operação Policial – muito similar, aliás, aos feitos da Inquisição Espanhola ou da época de perseguição às Bruxas em Salem – não é a atuação do Estado Democrático Constitucional, no qual assegura a presunção de inocência, bem como a ampla defesa e contraditório. A face do Estado Pós-Democrático[i] é a antítese do Estado de Direito, pois o eixo de execução das suas atividades não é a proteção às pessoas, mas do interesse mercantil. Sem a atuação de defesa intransigente aos direitos e garantias previstos na Constituição, todos os atos institucionais estarão sob os arbítrios de quem exerce o poder[ii], seja o público e/ou o privado.
Uma das medidas determinadas em desfavor à Cancellier foi a de ser impedido de permanecer na Universidade, recinto onde era sua segunda casa, devido não somente à proximidade física de sua residência, como também pela intensidade e dedicação com as quais a conduzia e a ela empregava estando imerso nela a maior parte de seu tempo diário.
Para “Cau”, a restrição imposta significou a maior das ofensas à sua reputação, sempre orientada pelo seu caráter pacifista. Ecoa pelo imaginário social, no entanto, que ele simplesmente o fez, ocorreu ‘de fato’ o desvio, pensaram alguns. Não existe, para quem de fora observa, princípios e normas a serem seguidos à risca.
E “Cau”, arremessado à Ágora, não tivera chance: foi arrematado pela injusta exposição ao público, desamparado por um discurso jornalístico agressivo sem ter tido chance de investigação adequada. Foi refém de um constrangimento (nada) democrático (ROSA & JR, 2015), motivado pelo qual pôs fim a si mesmo em 02 de outubro de 2017.
À mídia não se importa com as premissas do Estado Democrático Constitucional. O processo penal posto não pode ser, na visão jornalística como se contemplou, um fenômeno de contenção da violência, da vingança privada. Ao contrário, deve-se incitá-la, pois esse é o único caminho para se efetivar a necessária Justiça[iii]. Diante desse cenário, retorna-se aos tempos em que “Cau” lutava contra o período da Ditadura. As suas memórias daquele tempo agora são aplicadas contra si. Nem a Constituição Federal de 1988 conseguiu mitigar a violência institucional contra a sua pessoa. Iniquidades de um lado, garantias e direitos fundamentais para outro. Esse é um abismo ainda instransponível para quem defende as prerrogativas constitucionais contra a voracidade dos justiceiros travestidos de agentes públicos.
Dividindo a responsabilidade da fatídica distopia jurídica com o comportamento jornalístico que culminou no suicídio de Cancellier, propõe-se uma tomada de consciência por parte dos Profissionais do Direito pelo instrumento cívico do Ensino Jurídico.
Deve-se, nesse momento, realizar uma pequena pausa, quase como a epoché fenomenológica[iv], para se entender a função social da Educação e, de modo mais especifico, do Ensino Jurídico. Nem a Educação, tampouco o Ensino Jurídico, são capazes de sensibilizar as pessoas, fazê-las compreender o significado subterrâneo, profundo, das relações humanas, bem como das relações das pessoas com o mundo. A abertura dialógica proposta pela Educação por meio do Ensino Jurídico somente existe na medida em que cada um se permite caminhar pelas suas sendas tortuosas, pouco pragmáticas e sem que haja qualquer indício de que ao final do caminho as perguntas serão respondidas e as angustias cessem. Essa ingenuidade leva à decepção. Se essa situação ocorrer, quem sabe, o caminho da Educação e de um outro Direito apreçam no horizonte.
A propositura da prisão do “Cau” nasce pela arbitrariedade jurídica que foi articulada e assinada por um agente estatal. O seu encarceramento foi ilegal e desnecessário. Outras atitudes, como o seu constrangimento em revista íntima, evidenciam o desamparo constitucional e a pouca sensibilidade – especialmente jurídica – de todos os envolvidos nessa operação em nome do rigor legal contra a corrupção.
Ademais, ao que concerne ao campo da deontologia jornalística, propulsora desta calamidade, verifica-se o quão corrompida encontra-se as suas atitudes. O seu desprezo pela ética é apenas uma constatação nessa era do exibicionismo, do espetáculo midiático penal. A figura amplamente conhecida de “Cau” foi reduzida à desonra, pois impulsionada pelos meios de comunicação que desconhecem a importância de sua função social.
No entanto, para se ater à proposição deste escrito, atem-se à importância do Ensino Jurídico, que se compreende, latu sensu, como um instrumento capaz de amenizar os efeitos e prevenir futuras demonstrações semelhantes desta ilegalidade manifesta em termos de processo penal do espetáculo e afronta à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e seu Estado Democrático de Direito instituído.
Desde quando adentrou à UFSC, Cancellier tinha o ambiente como reduto do seu pensamento crítico, tanto que participava de movimentos estudantis, reconhecendo o âmbito acadêmico jurídico como o espaço propício para estímulo da Consciência Jurídica e Sensibilidade Jurídica (AQUINO, 2016).
Não é segredo para os juristas que o ensino, em considerável parte do país – já em situações esporádicas de fechamento de faculdades devido, mormente, ao seu excesso contingencial – é fundamentado na perspectiva do Direito Objetivo – por óbvio, resguardada sua relevância – haja vista ser o Direito Objetivo, quando decomposto em sua significação, a normatividade que legitima o Direito Subjetivo.
No entanto, qual é o alcance e significado dessa objetividade? A norma jurídica vale para todos? Não seriam os “manuais simplificadores” – lidos como Bíblias nos Cursos de Direito – míopes com relação à complexidade das interações humanas neste século XXI? O encarceramento e morte de “Cau” é apenas consequência dessa ilusão vital jurídica alimentada ano após ano de se ter poder e exercê-lo na forma profissional desejada. Warat[v] tinha razão: os juristas somente sabem ouvir a magnitude de suas certezas habituais; é uma classe profissional onfaloscópica[vi], incapaz de aliar uma racionalidade lógica a outra mais sensível.
Inobstante um livro espesso reunindo normas de forma compilada, chamadas de leis secas, disciplina o estudante à mecanização do sistema legal. Isto é, tudo é possível sistematizar de modo prontificado. O conhecimento torna-se verdadeiro deserto, um horizonte raso, como se fosse possível enxergar a superfície do mar, mas ignorar a sua profundidade. Esse é o equívoco perpétuo dos Profissionais do Direito.
Há questões de ordem mais significativas que reivindicam do acadêmico uma coragem de sair do pensamento silogístico, dicotômico. É necessário que se transcenda essa operacionalização racional da engrenagem jurídica e processual e progrida seus esforços intelectuais sob a orientação vital das propedêuticas. Essa fatídica atribulação ocorrida com o Reitor da UFSC torna latente a necessidade do estudante de, já na Graduação, estimular a reflexão crítica a despeito não somente da óbvia transgressão constitucional, mas da ausência da percepção jurídica humanista no caso. Da dissociação clara entre Direito Positivo e Direito Objetivo, em que um deveria, em tese, complementar o outro para a efetiva e justa concreção da Experiência Jurídica[vii].
A não tão aberta assimilação do pensamento crítico em sala de aula, muitas vezes, está ligada à cultura manualesca imediatista do Direito. Contudo, a mudar o cenário como proposta de contracultura da arbitrariedade do Estado e a proteger os indivíduos de seus estratagemas, é bem-vinda a conhecida proposta de ensino constitucional nas escolas brasileiras.
Em que pese o preâmbulo constitucional não possuir valor normativo, é inegável ser esse o fio condutor axiológico de todo o aparato legal contido na Carta Magna de 1988. Com princípios anteriormente não vislumbrados, a Constituição Cidadã muito tem a contribuir para a população que dela tomar conhecimento de forma didática e pormenorizada.
O potencial colaborativo da Constituição para com a Sociedade é significativo, dentro do contexto da preservação da Dignidade da Pessoa Humana como maior valor conservado, falha contundente na questão da prisão do Reitor Cancellier. Verificar-se-ia, de forma mais branda e com linguagem jurídica acessível, a relevância deste basilar princípio constitucional, ratificando a Autonomia dos indivíduos em suas vidas, valorizando cada qual em sua individualidade e integrando-os no sistema social de direitos e garantias fundamentais. Assim argumentam Ildete Vale da Silva e Paulo de Tarso Brandão:
Nessa perspectiva, a realidade social instaurada e desejada no texto do preâmbulo da Constituição Brasileira serve como vetor de compreensão à interpretação e aplicação dos direitos individuais e sociais garantidos constitucionalmente pelo Estado, em favor da Sociedade brasileira. Os sentidos irradiados pelo texto do preâmbulo da Constituição Brasileira ajudam a construir uma Sociedade fraterna e, porque é fraterna, é pluralista e sem preconceitos. (VALE DA SILVA & BRANDÃO, 2015)
Partindo do pressuposto que a Sociedade é feita não de pessoas, mas por pessoas (DONATI, Pierpaolo apud VALE DA SILVA; BRANDÃO, 2015), a dinâmica do ensino jurídico opta por compartilhar do espírito Fraterno e Humano nas relações sociais, desde o ponto de partida da Constituição – preâmbulo – até sua aplicação direta ao caso concreto.
De modo a enaltecer valores axiológicos constantes da Constituição Federal de 1988, é possível compreender e resgatar, ao se debruçar na Lei Maior, inúmeros conceitos pluralistas que regem a Sociedade como marca de um novo tempo na história do país, tais como a Liberdade, Segurança, Fraternidade[viii], Bem-estar e a Justiça. Repassar o conhecimento às pessoas, em sentido amplo, funcionaria de maneira a promover uma maior representatividade social com Respeito e Entendimento ao Próximo, minimamente pelo estudo normativo possibilitado.
O debate acerca do Ensino Jurídico, mormente em casos como este infortúnio envolvendo Cancellier de Olivo, faz-se necessário a partir do momento, no âmbito da Graduação em Direito, em que o acadêmico de Direito não permanece silente ante a parcialidades realizadas por agentes públicos que, na maioria dos casos, desrespeitam as regras e princípios da Constituição Federal e provocam a insegurança jurídica nacional. O salutar entendimento de Paulo Freire, em seu Pedagogia da Autonomia, corrobora para o cenário humanista no processo educativo:
A competência técnico científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas. (FREIRE, 1996)
Por esse motivo, surge a necessidade de se vislumbrar a multidisciplinariedade do Ensino Jurídico com novos olhares a ciências afins ao Direito em suas aberturas epistemológicas. Humanizar o Ensino Jurídico não corresponde a minorar a incidência do Direito Positivo, mas revigorar a práxis de suas utopias[ix] e complementá-las de modo a enaltecer o papel da educação jurídica sendo o fator-chave a auxiliar os cidadãos a (re)pensar suas posturas diante do Outro conforme o prisma da Alteridade[x].
Considerar setores da informação como possuindo verdade absoluta diante dos casos antidemocráticos do cotidiano justificados erroneamente como pretexto de garantir a lei e a ordem a qualquer preço é erro crasso do estudante de Direito.
Luiz Carlos Cancellier de Olivo, por consternar-se com violação notória ao mais basilar dos direitos protegidos pela Carta Magna, tirou sua própria vida. Todavia, o exemplo é o que restou e, neste ínterim, de um reconhecido ato político, é cediço que houve todo um encadeamento de atos punitivistas que, como na Ditadura Militar, pela mesma base argumentativa resultou o que ora nos causa desalento.
Uma postura acadêmica que seja propensa à discussão, ao debate construtivo de ideias e saudáveis ideais contribuem à fluidez do debate jurídico com vistas à Sociedade e sua interrelação.
As interlocuções universitárias tem se visto raras em muitas faculdades de Direito e, principalmente, assim (des)motivadas pela febre ideológica de grupos distintos aptos a envolver apenas e tão somente questões eleitorais, em que pese ser absolutamente natural a dicotomia do pensamento político brasileiro (FAORO, 2007).
É preciso abordar esses temas em sala de aula pela inclusão de percepções variadas e, à título de complemento, também do campo da Psicologia, sobre o Suicídio e seus meandros que o identifica. Estudar Psicologia Jurídica e Sociologia – como é o caso de Durkheim na obra “O Suicídio” – sinalizam o começo de uma postura que não se exaure na compreensão das fontes tradicionais do Direito - lei, jurisprudência, costumes -, mas as amplia para se entender o Direito como fenômeno social, por exemplo, a partir da condição humana.
Porquanto a figura docente tem maior responsabilidade ante ao transmitido em sala de aula, que não se esqueça do próprio aluno, o real agente modificador de condutas – pacíficas ou arbitrárias – da Sociedade.
O aluno é o ponto de encontro com a teoria, o questionamento e a aplicação do Direito. Questionar é atividade intrínseca à sua posição intelectual. Nos bancos da Graduação deve o acadêmico tomar consciência de que não compactue com atitudes fascistas amplificadas pela grande mídia nacional.
Cancellier pôs fim ao martírio que o angustiava porque viu triunfar a nulidade. Desesperadamente, depois de tentar se defender, permaneceu silente e incrédulo por ver prosperar a desonra. Ao perceber que crescia em torno de si a injustiça e como se agigantaram os poderes nas mãos dos maus, desanimou-se da virtude e ceifou sua própria vida por ter vergonha de ser honesto.
Questiona-se os papeis tanto dos Professores de Direito como dos Acadêmicos a saber de quais armaduras se revestem para identificar e defender o Estado Democrático de Direito das ilegitimidades praticada pelo Estado. Não há para onde fugir, pertencemos ao mesmo sistema. O jurista contemporâneo necessita lidar – e não ignorar – com estas difíceis problemáticas em que, obrigatoriamente, deverá se comprometer com o Estado, com o Direito, com o Próximo e Consigo.
Quando se observa a execução de um processo penal incompleto que, ao consolidar irracionalmente o senso comum teórico, agrava de modo direto o que o Constituinte estabeleceu como Justiça no introito normativo que rege os Três Poderes da República sendo uma evidente ameaça que se fez diretamente à Cancellier e que vale, a ricochete, para toda a Sociedade.
Com o senso comum teórico da coletividade junta-se a imprensa imediatista, a localizar sob qualquer custo – seja financeiro ou mesmo moral – um “furo”, como se identifica popularmente todo fato de repercussão midiática identificada por profissionais do ramo jornalístico a potencial de impacto da massa coletiva.
Na seara desta perversidade midiática, é válida a lembrança de casos esparsos de autotutela que foram amplamente difundidos pelas mais diversas plataformas de comunicação modernas há não muito tempo, ocorridos os exemplos em incontáveis cantos do país. Percebe-se, nesta conjuntura, quão enraizada está a legitimidade dada pelos ‘cidadãos de bem’ em ‘nome da ordem’ aos canais de telecomunicação brasileiros, produzindo ondas sensacionalistas, tendo como produto a fortificação de condutas discricionárias e ilegítimas acusações.
A racionalidade humana acaba por marcar presença em indagações sem respostas como, por exemplo, em qual ponto a Humanidade de perdeu para que da exposição injusta de alguém seja motivo de espetacularização da tragédia alheia ou a que ponto constitua a alguém algum motivo de interesse. Parece que se perde a noção de que a Pós-Modernidade evidencia o esgotamento de um tempo que apenas considerava como forma de verdade a linguagem da lógica matemática. O pensamento sobre o que é ser humano parece distante desses objetivos cheios de pureza científica. Por esse motivo, os pilares da Democracia e do Estado Democrático de Direito se estremecem com Cancellier.
A luta de “Cau” precisa ser a luta de todos contra os arbítrios de um Estado que não reconhece sua base constitucional. Não há motivo para o acadêmico de Direito, ao observar esse cenário de absoluta indiferença com a vida, ser apenas mero expectador. A ética profissional perpassa pelo mecanismo da linguagem. O dito significa; o não-dito, quiçá, mais ainda.
Por derradeiro, que jamais se torne obsoleta em nossa memória a lembrança de que a Liberdade serviu perigosamente de esteio para instauração do estágio cronológico ditatorial, deixando cicatrizes temerosas e arruinando esperanças de uma Sociedade justa e fraterna. Que os Juristas de toda a época possam estar atentos com as lições que o resguardo de Cancellier nos oportunizou.
Deve-se compreender, perpetuamente, o mundo da vida e sua complexidade, sem reduzi-lo às interpretações simplistas das certezas habituais dos juristas. Deve-se ouvir a pluralidade de sons, estar com as pessoas, ver as imagens, viver as culturas. É necessário lutar pela conquista histórica da democracia constitucional e entender seus movimentos; a sensação de luta pelo Direito precisa ser sentida na epiderme do acadêmico, que amanhã será o próximo Jurista.
Notas e Referências
[i] “Por ‘Pós-Democrático’, na ausência de um termo melhor, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor”. CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. [Edição do Kindle]. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, pos. 192-194.
[ii] “[...] A necessidade de pensar o poder em outros termos que não os estabelecidos no corpo da tradição da filosofia política e da teoria do Estado se pôs, precisamente, pela compreensão crescente das relações de poder sob formas e modos antes nunca imaginados”. BARRETO, Vicente de Paulo. As máscaras do poder. São Leopoldo, (RS): Editora da UNISINOS, 2012, p. 21/22.
[iii] Por esse motivo, a Justiça "[...] é, sim, uma vivência, uma práxis social, da qual somente podemos nos aproximar empiricamente, descrever fenomenologicamente e compreender, pela razão e sensibilidade, os sentidos constitutivos de seu sentido. Sentido este que estará sempre em aberto, dado o seu caráter de provisoriedade e incompletude". DIAS, Maria da Graça dos Santos. A justiça e o imaginário social. Florianópolis: Momento Atual, 2003, p. 112.
[iv] “[...] qualquer um que queira seriamente filosofar, é inevitável iniciar com uma espécie de ‘epoché’ radicalmente cética, que põe em questão o universo de todas as suas convicções anteriores, interdita de antemão qualquer uso das mesmas num juízo, qualquer tomada de decisão sobre sua validade ou não.” HUSSERL, Edmund. A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 61.
[v] WARAT, Luís Alberto. A rua grita Dionísio! direitos humanos de alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Júnior e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 50.
[vi] Essa postura, segundo Maffesoli, significa a caracterização de “[...] nossa intelligentsia: ela contempla o próprio umbigo”. MAFFESOLI, Michel. A república dos bons sentimentos. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2009, p. 18. Grifos originais da obra citada.
[vii] O Direito, como experiência humana, segundo o autor, significa o “[...] complexo de valorações e comportamentos que os homens realizam em seu viver comum, atribuindo-lhes um significado suscetível de qualificação jurídica [...]”. Esse conceito representa a vivencia do Direito, ou seja, a adequação da forma jurídica segundo os valores permeados na vida da Comunidade. REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2. Ed. 4. tir. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 31.
[viii] “A Fraternidade, por muito tempo, restou esquecida, encoberta por valores que pareciam mais essenciais, úteis e imediatos, como a Liberdade a Igualdade. Porém, é por meio da experimentação da Fraternidade e da Solidariedade que a Humanidade criará vínculos, repletos de trocas de conhecimentos e aprendizagens, nos quais será possível se modificar e potencializar suas habilidades, além de aguçar sonhos ainda não realizados, em plenitude. O valor da Fraternidade é um caminho a ser revisitado e (re)experimentado, propiciando, dessa forma, espaços para experiências genuinamente humanas”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; PELLENZ, Mayara; BASTIANI, Ana Cristina Bacega de. Gutta cavat lapidem: reflexões axiológicas e práticas sobre Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana. Erechim, (RS): Deviant, 2016, p. 54.
[ix] “[...] Utopia não é uma Quimera: ela é (imaginariamente) o tempo do processo, ou seja, uma nova realidade cuja essência aparece diretamente na existência”. LACROIX, Jean-Yves. A utopia: um convite à filosofia. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 65.
[x] “[...] A história, relação entre homens, ignora uma posição do Eu em relação ao Outro em que o Outro se mantém transcendente em relação a mim. Se eu não for exterior à história por mim mesmo, encontro em outrem um ponto absoluto, em relação à mim; não fundindo-me com outrem, mas falando com ele”. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 39
AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pós-modernidade. Itajaí: Ed. da UNIVALI, 2016.
AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; PELLENZ, Mayara; BASTIANI, Ana Cristina Bacega de. Gutta cavat lapidem: reflexões axiológicas e práticas sobre Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana. Erechim, (RS): Deviant, 2016.
BARRETO, Vicente de Paulo. As máscaras do poder. São Leopoldo, (RS): Editora da UNISINOS, 2012.
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CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
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WARAT, Luís Alberto. A rua grita Dionísio! Direitos humanos de alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Júnior e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.
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