Não suportava mais, se continuasse assim seria mais um número nas estatísticas. Na semana anterior dirigia, calor infernal, correria. O ar condicionado do carro quebrara. Abrira a janela, apenas dois dedos. O engarrafamento perto da delegacia não deteve o assaltante de atacá-la. Pela fresta projetou a faca. Lamina no pescoço. Seus olhos se encontraram, tão desesperados quanto os dela. Ordenou que lhe passasse a carteira, tateando a entregou .
Paralisada, não conseguia ordenar os pés nos pedais enquanto buzinas disparavam em frenesí. O senhor da banca correu ao seu encontro e a parabenizou:
-Fez bem em não reagir. Dias atrás roubaram um rapaz perto daqui. Reagiu, não chegou vivo ao hospital. Jovens, se julgam imortais.
Trêmula dirigiu até a casa. Lá desabou envolta em medo e ódio. Medo da morte, ódio do homem.
Na véspera, outro “incidente”. Fora ao banco no shopping, acreditava ser mais seguro. Estacionara na entrada. Um homem, no carona de um carro preto, atravessou a pista atirando. Três disparos. Jogou-se ao chão, cobriu a cabeça, uma voz a gritar a despertou do transe:
- Minha filha, matou minha filha...
Ao lado, uma mulher abraçava uma menina de vestido florido. No pezinho uma sandália surrada. Botão vermelho desabrochou no peito mudo. Avistou o outro chinelo, atordoada o agarrou e entregou à senhora .
Observara os olhos da menina perdidos no infinito, enquanto o tumulto crescia. Nada mais. Saiu, ligou a ignição e partiu.
...
Trancou-se em casa, mergulhou no chuveiro desejava que a água arranca-se a violência impregnada nos poros. Lágrimas perdidas. Podia ter sido ela a morrer.
O noticiário narrara o crime. Traficante em fuga atirara matando uma criança. Em poucos dias esqueceriam tudo, “fatalidade” não dava ibope. Chacinas, assassinatos com requintes cruéis, esses eram os preferidos da mídia.
O velho porteiro do condomínio costuma dizer: naquela cidade, só Deus garantia a volta à casa.
- Este bairro é tranquilo. No meu circulamos só até escurecer, depois ninguém está seguro. A polícia só aparece prá cobrar a parte deles. E, se “os meninos” não pagam, matam meia dúzia a cada batida, que nem mosca. Ultimamente, estão “em dia” com a polícia, e nós, em paz.
O governo corrupto, a sociedade individualista conduziram o país à miséria e à guerra velada. Na “pátria amada” a vida não valia mais nada. Não queria ser a próxima vítima.
Morava sozinha. Não se casara, tampouco tivera filhos. Amigos, contava nos dedos. Apaixonada pela profissão se tornara uma excelente tradutora de francês.
Jovem, estudara em Nantes. Lembrava-se dos passeios à noite, das pontes a margem do rio Loire, das ruas e praças tranquilas, da segurança.
Os pais morreram num acidente de automóvel, motivo que a fez retornar à cidade natal. Atada a lembranças, construíra a vida ali. Dinheiro não lhe faltava, poderia viver no exterior mas perdera a garra para reiniciar a própria história.
Vivia na casa herdada, em belo condomínio; salas amplas, escritório, no piso superior, suítes, varandas. Do quarto avistava a entrada do terreno. A morada também possuía um porão onde o passado ficara aprisionado em fotos, roupas e cartas.
Começava a pensar; o único meio de sobreviver naquela cidade seria não pôr mais os pés na rua. Compraria o necessário a distância, continuaria a trabalhar em casa. Pela internet gerenciaria dinheiro, pagamentos. Poderia até convidar algum amigo para visitá-la. Achariam estranha sua atitude... não, Horus, era companhia suficiente.
O sistema de segurança do condomínio garantia resguardo contra a violência urbana.
...
Passara um mês entre cômodos e paredes.
O porteiro preocupado interfonava de vez em quando. Estranhava o fato de Gisela não sair de casa. Cada dia parecia mais impaciente. Da última vez dissera ao velho que não a incomodasse antes de desligar.
Sentia-se outra. Comprara uma luneta, viajar entre as estrelas a acalmava.
...
Outra semana insone. O vinho não causava mais torpor. Começava a atrasar a entrega dos trabalhos.
Relia um livro sem conseguir se concentrar. Escurecia, o tiritar do vento entre as frestas da janela não cessava. O interfone tocou. Devia ser o rapaz do restaurante. Atendeu. Mudo. Ligou para a portaria. Nada.
Através da luneta avistou a entrada. O porteiro gesticulava com um rapaz em um veículo preto. Outro homem no carona sacou uma arma e o fuzilou. O carro acelerou condomínio à dentro.
Reconheceu imediatamente o traficante que matara a menina no shopping. Seria possível?
Apavorada pegou o celular, pensou na polícia. Descarregado. Trancou portas, apagou luzes. Por trás da cortina da sala examinava a rua. Na residência da frente, nem sinal de vida. O veículo freou na entrada da sua casa. Correu para a cozinha, fugiria pelos fundos. Impossível, o pavor a imobilizara.
Novamente tocou o interfone. Agarrou o aparelho, a voz tranquila do porteiro anunciava, o entregador chegara.
- Você está vivo?! O homem do automóvel ..
- Nenhum carro passou aqui nas últimas horas. Esta tudo sob controle. A senhora está bem? Precisa de algo?
- Não, obrigada.
- O rapaz do restaurante chegou. Pode fazer a entrega?
- Desligou.
O que estava acontecendo?! Tinha certeza do que vira. Apavorada fixou o olhar na rua. Não havia automóvel algum em frente a casa. Horus, do sofá, a observava intrigado.
Sentia-se estranha. Precisava controlar-se.
A campanhia tocou. Cautelosa aproximou-se ao olho mágico. Do outro lado viu o assaltante que a atacara no trânsito. A faca em punho reluzia sob a luz .
Grito esganado, suava frio, coração na boca, espreitou outra vez pelo visor. Ninguém. Tremula, sentou-se no sofá. Horus pulou na poltrona irritado.
Percebeu, alguém a forçar a maçaneta, correu para a porta da cozinha. Viu o reflexo do vulto no vidro. Não estava louca. Era real!
Tinha que escapar, fugir de algum modo. Aterrorizada correu ao porão, trancou-se por dentro.
Apenas silêncio envolvendo o tempo. Breu preenchendo o espaço, permaneceu com o corpo colado na parede gélida. Ninguém a encontraria ali. Não sairia nunca mais!
Envolta pela escuridão começou a notar um ruído afiado, dilacerante, crescente. Unhas arranhavam o outro lado da porta. Horus, implorava por ela. O desespero não a permitia abrir. Encarcerada no pior dos pesadelos.
....
Gisela acordou atônita no quarto. Horus, ronronava feliz. Parecia saber, era dia de mudança. Em algumas horas estariam livres, embarcariam para outra vida, Nantes os esperava.
Foto do arquivo pessoal da Autora.