Empatia nos desafios sociais do filme “Eu, Daniel Blake”  

25/10/2020

Kenneth Loach, britânico nascido em 17 de junho de 1936, costuma expressar o realismo social em suas obras. Graduado em direito, logo se direcionou à atuação teatral, televisiva e cinematográfica. Seus filmes são conhecidos por abordarem as dificuldades humanas frente à sociedade de uma forma objetiva e verdadeira, oportunizando aos telespectadores a identificação de vivências alheias, reconhecendo-as em si próprios e, por isso, genuinamente têm a capacidade de fazê-los refletir acerca do comportamento humano. Assim, nota-se a possibilidade de analisar a empatia em suas obras, entre as quais o filme “Eu, Daniel Blake”.

O filme em apreço, drama estreado em 2016, é um exemplo de longa-metragem que retrata uma realidade dificultosa e em muito se assemelha a histórias da vida real. Estas se relacionam a abusos cometidos pelo Estado frente a necessidades dos cidadãos - dessensibilizando-se e distanciando-se do indivíduo. Nesse sentido, há relatos de cidadãos britânicos que presenciaram histórias similares às do filme no que tange ao acesso a direitos sociais, tais como: “Pessoas honestas, incapazes de trabalhar, não merecem ser hostilizadas. Parabéns a Ken Loach pela sensibilidade”, “Minha doença não é visível e ter um filme que descreve exatamente as dificuldades que experienciei e a de outras pessoas, mostra o caos que isto pode causar” ou “É humilhante se submeter ao sistema” (https://theconversation.com).

O enredo aponta para os menos favorecidos e ocorre em Newcastle, Inglaterra, onde trata da luta de Daniel Blake (Dave Johns), viúvo com cerca de 60 (sessenta) anos que, após 40 (quarenta) anos trabalhando como carpinteiro, encontra-se impossibilitado de manter-se em sua vida profissional devido a problemas cardíacos. Com atestado médico que o impede de trabalhar, solicita a concessão do benefício previdenciário. Ocorre que o Estado nega este auxílio e impõe numerosas resistências neste âmbito, concomitante a teorização de que prioriza o bem-estar social. Daniel conhece Katie (Hayley Squires), mãe de duas crianças, que igualmente vivencia dificuldades em obter ajuda estatal que lhe deveria estar assegurada. Eles tornam-se amigos e passam a compartilhar momentos permeados por empatia, os quais referenciam as análises sociais que se seguirão, vinculadas a exposições da obra.

Diversos temas polêmicos são suscitados por meio da reflexão deste filme, os quais circulam por cenários políticos, sociais, econômicos ou dos direitos penal, previdenciário, sociais e humanos. Na interação dos protagonistas em quaisquer destes contextos é visível a solidariedade, a qual se mescla por motivos enraizados em sua classe social e por aqueles impulsionados genuinamente pela empatia. Há que se destacar que este comportamento pode ser facilmente entendido como uma solidariedade de classe, mas que possui, todavia, relações intrínsecas com atitudes empáticas.

Vale explicar que a empatia é uma habilidade que evolui de acordo com as relações interpessoais vividas em contextos emocionais, impactando a cognição e o comportamento de forma a permitir a percepção de sentimentos e a sensibilidade frente a emoções alheias (Decety, 2015, p. 1; Lockwood, 2016, p. 255). Faz parte de um constructo multidimensional no qual as emoções, a cognição e a motivação ao cuidado com o próximo estão unidas a seu conceito.

No que se refere a faceta motivacional da empatia, entende-se pela motivação em cuidar do outro a partir da preocupação com o seu bem-estar (Decety, 2015, p. 3). Dessa forma, ela incentiva, por exemplo, a aproximação entre as pessoas, a execução de atividades sociais e coletivas ou a inibição da agressão, figurando como um dos comportamentos inerentes no desenvolvimento da sociabilidade.

Em consonância, esta motivação promove a conduta altruística e é o resultado do desenvolvimento das facetas emocional e cognitiva da empatia. A faceta emocional compreende o compartilhamento de emoções, a delimitação frente àquelas que pertencem a si ou a outrem e a regulação das mesmas; já a cognitiva, também denominada teoria da mente, aumenta o senso de consciência para ajudar ao próximo e, em conjunto, despertam a motivação ao cuidado interpessoal, a qual é o pivô do comportamento social (Decety, 2015, p. 3).

A ajuda mútua que se evidencia entre as personagens é demonstrada nos primeiros momentos do filme quando Blake, ao aguardar novo atendimento na repartição pública de serviço social, presencia a inflexibilidade dos funcionários diante do atraso de Katie. Blake tenta ajudá-la e solicita a outro cidadão a cessão de sua vez a ela, o que de fato consegue. A esta atitude, um dos vigilantes diz a Blake “isto não é da sua conta” e imediatamente ameaça chamar a polícia, como se estivesse frente a um ato criminoso. Bauman (2010, p. 252) nota a valorização dos britânicos à uma sociedade civilizada e tolerante, contudo, desde que no estrato social haja pessoas brancas, empregadas, financeiramente solventes, jovens e saudáveis (2010, p. 252).

A cena supramencionada alude ao fato de que interações sociais são complexas e dinâmicas e podem rapidamente prover muitas informações sobre ações, intenções, personalidade e objetivos dos participantes envolvidos, a partir das quais as pessoas observam e decidem em quem confiar e com quem aprender (Walbrin, Downing e Koldewyn, 2018, p. 31). Nesse viés, interessante citar que a segurança baseada nas solidariedades sociais - complexo jogo das relações humanas - tem como essência tornar o outro familiar, transformá-lo em alguém pleno e situado no cerne da família (Bauman, 2010, p. 63), condição que passou a orientar a relação dos protagonistas.

A solicitação de Blake para reconsideração de seu auxílio-doença negado tornou-se ainda mais difícil pela impossibilidade de obter esclarecimentos e dar continuidade a seu processo sem o uso da internet. Ele, quem sabia criar formas de aquecer um ambiente ou construir uma casa, não tinha habilidades com formulários online. Mesmo na fase da vida em que se encontrava, destaca-se, após 40 (quarenta) anos de serviços prestados, mas sem mais poder contribuir ao sistema econômico vigente, parecia ter seu conhecimento reduzido ao uso de um mouse e do tempo certo de preenchimento de um formulário. Frente a esta realidade, não é o impacto enobrecedor do trabalho que importa, já que o que se verifica é a tendência em obliterar diferenças individuais, substituir qualificações por uma uniformidade quantificável, nas quais as referências a individualidade, significados pessoais ou motivos, não são fatores necessários (Bauman, 2010, p. 66).

Desse modo, Blake teve que pedir a ajuda de desconhecidos, tal como da funcionária Ann. Esta, ao tentar ajudá-lo a preencher o documento online, foi logo chamada por sua superior hierárquica, a qual disse a Ann “… você não pode fazer isso. Vai abrir precedentes”. Vale ressaltar que, ao perceber a repreensão, Blake se desculpa com Ann, que diz "Eu quem lhe devo desculpas”, demonstrando a impotência humana inserida em um sistema que trata a todos com uma suposta igualdade. Visualiza-se uma situação em que o trabalho implica, na maioria das vezes, em ter um superior a quem obedecer, em pertencer a uma comunidade e a estar sob controle, cujo principal agente é o Estado (Bauman, 2010, p. 67).

China, amigo e vizinho de Blake, é quem concretiza o preenchimento de seu formulário. Importante notar o relato de China sobre a resistência estatal em autorizar e liberar quaisquer benefícios, já que eles (o Estado) “… farão de tudo para dificultar e fazer você desistir. Isto faz parte do sistema. Já vi muitos desistirem”. Observa-se a corroboração desta ideia ao se apontar  que, segundo Bauman (2010, p. 250), o efeito da legislação e da prática previdenciária impede o benefíciário de juntar-se a sociedade de consumo, nada havendo nas instituições previdenciárias que objetive facilitar este reingresso.

É curioso relatar a pesquisa realizada por Darcy Ribeiro sobre as condições de vida das populações urbanas e rurais no Brasil, a qual utilizou como critério um índice de conforto doméstico mensurado pelos bens nos domicílios, e mostrou de que forma a cidade de melhor perfil (Ibirama, SC) alcançou este feito. No caso, sucessivos governos promoveram a integração de sua população - de descendentes de imigrantes alemães - ao sistema produtivo, dando-lhe terras e auxílio econômico, uma vez que o intuito era atrair imigrantes europeus - eliminando deste planejamento os próprios brasileiros (Ribeiro, 2016, p. 163). Constata-se o potencial do governo em excluir de seus programas sociais determinados estratos da população, seja por meio de atos institucionalizados ou não.

Tendo em conta que o sistema expressa, de certo modo, a letra da lei, é relevante anunciar que, para Rousseau (2016, p. 50), as leis representam as condições de associação civil de forma que o povo deve ser o autor das mesmas, pois somente a eles compete regulamentar as normas da sociedade em que vive. Por sua vez, a vontade do povo é direcionada ao bem, no entanto, não é sempre assim que é reconhecida (Rousseau, 2016, p. 51).

Diante das rejeições decorrentes de seus pedidos, Blake picha com spray o prédio do governo com a frase: “Eu, Daniel Blake, exijo uma data para minha apelação antes que eu morra de fome…”, o que logo foi observado por diversas pessoas que comemoraram o feito, muito provavelmente por já terem se deparado com vivências semelhantes. Também, esta atitude chamou a presença dos seguranças do governo, os mesmos que negaram o atendimento a Katie no início do filme. Um deles perguntou “Você não pensou nas consequências?”, representando descaso e ironia. Ao ser levado por policiais à delegacia, a única fala consciente é a de um dos transeuntes que se dirige a eles e alerta-os dizendo “… vocês também vão perder o emprego. Eles (o Estado) estão privatizando tudo”.

Quase ao término do filme, Blake e Katie procuram a ajuda de um advogado, em uma instituição semelhante à Defensoria Pública brasileira. Este foi o primeiro profissional que respeitosamente atendeu à solicitação de Blake e mostrou-se insatisfeito com a sua situação, relatando que “todos estão indignados” e acreditando na concessão de seu benefício, haja vista toda a sua história. Afinal, mesmo que qualquer direito esteja vulnerável a injustiças, jamais poderá sucumbir, uma vez que a sua sobrevivência é a própria luta dos povos, do Estado, das classes e dos indivíduos, a partir das quais foram conquistados todos os direitos da humanidade (Ihering, 2009, p. 23).  Minutos depois Blake sofre outro ataque cardíaco que o leva à morte.

No funeral, Katie relata a luta por direitos a que se submeteu Blake e a busca por sua individualidade, a qual foi perdida pela ausência de sensibilidade do Estado. Ressalta que, diante das dificuldades, sua firmeza moral jamais se perdeu. O que ele desejava era ser tratado como um cidadão, que tinha consciência de seus deveres e necessidade de ter seus direitos acolhidos, “nada mais, nada menos”. Vale ressaltar que, segundo Ihering (2009):

A dor que o homem experimenta, quando é lesado em seu direito, contém o reconhecimento espontâneo, instintivo e violentamente arrancado do que é o seu direito, primeiro para ele indivíduo, em seguida para a sociedade humana.

O filme mostrou a desumanidade na relação da previdência social com os seus beneficiários e a desconfiança com a qual são atendidos, condições explicadas por Bauman (2010, p. 250) devido ao caráter disfuncional da previdência. Rousseau (2016, p. 73) alerta que o governo deve existir para satisfazer as necessidades do povo e não este sacrificar-se diante daquele.

Ademais, o filme expressou a falência do Estado em cuidar de seus cidadãos, os quais, em virtude disso, acabaram por demonstrar condutas desviantes taxadas como crimes, tais como pichar um prédio urbano e, embora tenha se passado na Inglaterra, é possível fazer analogias com a realidade brasileira. Importa ressaltar a esperança trazida pelo enredo ao expor as relações de solidariedade e empatia entre os personagens diante da realidade dificultosa de seus contextos socioeconômicos. Há explícito resgate à crença na humanidade, típico das obras de Kenneth Loach, o qual busca, em que pese o padrão individualista da sociedade, expor uma abordagem que prioriza a reflexão sobre sentimentos e interesses coletivos.

 

Notas e Referências

BAUMAN, Zygmund. Legisladores e intérpretes. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

DECETY, Jean. The neural pathways, development and functions of empathy. Current Opinion, n. 3, pp. 1-6, 2015.

IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2009.

LOCKWOOD, Patricia. The anatomy of empathy: vicarious experience and discords of social cognition. Behavioral Brain Research, n. 311, pp. 255-266, 2016.

PETRIE, Stephanie. We showed I, Daniel Blake to people living with the benefits system: here’s how they reacted. The conversation. Estados Unidos, 17 fev. 2017. Disponível em: <https://theconversation.com/we-showed-i-daniel-blake-to-people-living-with-the-benefits-system-heres-how-they-reacted-73153> Acesso em: 09 de setembro de 2019.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

WALBRIN, Jon; DOWNING, Paul; KOLDEWYN, Kami. Neural responses to visually observed social interactions. Neuropsychologia, n.112, pp. 31-39, 2018.

 

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