Segundo uma recente pesquisa realizada e divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a desigualdade social e econômica no Brasil fez com que apenas 2,7% das famílias acumulassem 20% do total da renda. A coleta da pesquisa foi realizada nas áreas urbana e rural de todo o país no período de junho de 2017 a julho de 2018. Nossas famílias tiveram uma renda média de R$ 5.426,70. O estudo trouxe informações sobre a composição orçamentária doméstica e a respeito das condições de vida da população, incluindo a percepção subjetiva da qualidade de vida, apontando-se que apenas 1,8 milhão de famílias com renda superior a dez salários mínimos em 2017 receberam 19,9% de todo o valor de rendimentos, seja em salários ou variações patrimoniais. A renda média foi de R$ 40,4 mil entre as famílias. Hipoteticamente, e para mostrar a desigualdade de renda no país, a pesquisa fez uma simulação de como seria a renda brasileira se fosse retirado esse grupo do total de renda. Neste caso, “se apenas os valores recebidos por este grupo fossem repartidos igualmente por todas as famílias brasileiras, o valor médio mensal cairia para R$ 2.942,66, o que equivale a pouco mais da metade da média global."[2]
A pesquisa revelou também que as despesas de consumo — alimentação, habitação e transporte — comprometeram 72,2% dos gastos das famílias brasileiras, mostrando que nas últimas décadas os gastos com alimentação foram caindo em relação a outras despesas que cresceram, como habitação e transporte.
Estes números foram analisados sob os mais variados aspectos, especialmente o econômico e o social; todas as análises — ou quase todas — foram importantes e trouxeram conclusões fundamentais para compreender o Brasil atual e avaliar as perspectivas do nosso país. Nada obstante, ao menos que tenha sido publicado até a data em que foi escrito este texto, não li, nem sequer ouvi, qualquer exame, crítica ou interpretação acerca da pesquisa, desde um ponto de vista jurídico e, mais especialmente, relacionando-a com o nosso sistema de justiça criminal.
Ademais, também não tive conhecimento de algum estudo comparativo entre esta pesquisa do IBGE e o Atlas da Violência 2019, divulgado um pouco antes pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Neste, mostrou-se que em 2017 houve 65.602 homicídios, equivalendo, aproximadamente, a 31,6 mortes para cada cem mil habitantes, tratando-se “do maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país.” Estes números tornam-se ainda mais dramáticos quando se leva em conta “que a violência letal acomete principalmente a população jovem”, sendo que mais da metade (cerca de 59,1%) “do total de óbitos de homens entre 15 a 19 anos são ocasionados por homicídio.” E, ainda mais assustador, foi a constatação de que “a morte prematura de jovens (15 a 29 anos) por homicídio é um fenômeno que tem crescido no Brasil desde a década de 1980”, dando-se “exatamente no momento em que o país passa pela maior transição demográfica de sua história, rumo ao envelhecimento, o que impõe maior gravidade ao fenômeno.”
Nesta segunda pesquisa, mereceu destaque, e não poderia ser de outra maneira, a violência contra os negros, verificando-se “a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições.” Assim, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio foram negros (entre pretos e pardos, conforme critério adotado pelo IBGE), “sendo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0%.” Assim, ao menos proporcionalmente às respectivas populações, “para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.” Constatou-se, portanto, “a continuidade do processo de profunda desigualdade racial no país”, ficando “evidente a necessidade de que políticas públicas de segurança e garantia de direitos devam, necessariamente, levar em conta tais adversidades, para que possam melhor focalizar seu público-alvo, de forma a promover mais segurança aos grupos mais vulneráveis.” Este estudo constata que é preciso enfrentar com “urgência o legado da escravidão, pois somos um país extremamente desigual não apenas economicamente, mas racialmente”, concluindo, com absoluto acerto e incontestável correção, ser “fundamental investimentos na juventude, por meio de políticas focalizadas nos territórios mais vulneráveis socioeconomicamente, de modo a garantir condições de desenvolvimento infanto-juvenil, acesso à educação, cultura e esportes, além de mecanismos para facilitar o ingresso do jovem no mercado de trabalho.”
Entendo que as duas questões — a desigualdade socioeconômica e a violência, urbana e rural — encontram-se intrinsicamente ligadas, e ambas ajudam a explicar a extraordinária população carcerária do Brasil, apenas superada, em números, pelos Estados Unidos e pela China.
E, obviamente, não se trata aqui de uma criminalização da pobreza, muito pelo contrário! Constata-se apenas que, se a seletividade é uma marca característica do próprio sistema penal (desde a sua invenção, como diria Nietzsche[3], e em quase todo o lugar), no Brasil ela se mostra ainda mais visível, e com uma clareza absurda, evidenciada muito especialmente pelo perfil dos que estão sujeitos à punição e aos suplícios (Foucault) em nosso país.
E nós, ao invés de procurarmos soluções a partir de nossas próprias peculiaridades, e desde um ponto de vista de nossa realidade socioeconômica e latino-americana, vamos à procura — muitas vezes como desvairados — de soluções estrangeiras e, como tais, dissociadas de uma existência toda nossa e muito peculiar, particularmente em razão de nossas origens escravocratas, nunca superadas.
A grande maioria de nossos acadêmicos, juristas e “atores” jurídicos, especialmente aqueles que trabalham, teoricamente e na prática, com o direito criminal, ao que parece, vive, trabalha, estuda e pesquisa a partir de uma abstração da realidade brasileira quase que doentia. Freud certamente explicaria este fenômeno, desde uma visão psicanalítica.
Uma pena que seja assim, pois eles esquecem(?) que “ser internacional não é ser universal, e para ser universal não é necessário situar-se nos centros do mundo. Inclusive pode-se ser universal ficando confinado à sua própria língua, isto é, sem ser traduzido. Não se trata de dar as costas à realidade do mundo, mas de pensá-la a partir do que somos, enriquecendo-a universalmente com as nossas ideias; e aceitando ser, desse modo, submetidos a uma crítica universalista e não propriamente europeia ou norte-americana.”[4]
Portanto, que deixemos de fetiches alienígenas e vejamos, a partir de pesquisas sérias e números, que enquanto mantivermos esta estrutura social (Rusche e Kirchheimer), racial e econômica tão desigual, nada mudará, muito menos com uma política de extermínio, sustentada pelo poder político, financiada pelo poder econômico e instrumentalizada pelo poder jurídico.
Notas e Referências
[1] Este texto foi publicado originalmente no Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP (Ano 2, nº. 5, outubro/2019), na coluna “Ponto e Contraponto”.
[2] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/10/04/ibge-27-das-familias-concentram-20-de-toda-a-renda-brasileira.htm, acessado em 04 de outubro de 2019.
[3] Como escreveu Foucault, “quando fala de invenção, Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem. Quando diz invenção é para não dizer origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung.” Assim, por exemplo, dizia o filósofo alemão que a religião não tinha origem, pois ela foi inventada: “em um dado momento, algo aconteceu que fez aparecer a religião. A religião foi fabricada. Ela não existia anteriormente.” Como a poesia também: “um dia alguém teve a ideia bastante curiosa de utilizar um certo número de propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para falar, para impor suas palavras, para estabelecer através de suas palavras uma certa relação de poder sobre os outros. Também a poesia foi inventada ou fabricada.” (FOUCAULT, Michel, “A verdade e as formas jurídicas”, Rio de Janeiro, PUC Rio, 3ª. edição, 2ª. reimpressão, 2005, páginas 14 e 15).
[4] SANTOS, Milton, “O País Distorcido”, São Paulo: Publifolha, 2002, p. 52. Este texto do grande baiano Milton Santos é de 02 de maio de 1999.
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