Coluna Por Supuesto
Há variadas análises no campo do Direito Internacional, a meu ver a maioria delas justas, sobre o que atualmente acontece em Gaza. Regularmente se introduz o tema expondo que o artigo 51 da Carta da ONU postula o direito à legítima defesa individual ou coletiva, em caso de ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tome as medidas necessárias para a manutenção da paz. Contudo, a questão nunca é tão singela: se o Conselho, órgão onde basta a oposição de um dos membros com poder de veto para não chegar a um acordo sobre tais medidas, não consegue arquitetar uma fórmula de paz, então a legítima defesa pode se tornar praticamente indefinida, prolongando-se no tempo com consequências trágicas. E quando a assimetria militar se torna evidente, como atualmente acontece, diga-se com todas as letras: é preciso frear a violência, diminuir as agressões e, como já foi feito na Resolução 814 de 1993, simplesmente a ONU tem o dever de impor a paz, mesmo ante a oposição das forças e, precisamente, pela oposição das forças.
Esse direito de ingerência está juridicamente justificado quando escancaradamente se violenta o direito humanitário e é preciso deter a mão do agressor. Na ação de defesa e ataque, o respeito à vida dos civis é uma premissa consagrada desde Genebra, em 1864, e desde a declaração de São Petersburgo de 1868 que proclamou que os progressos da civilização devem ter como efeito atenuar ao máximo as calamidades da guerra. Igualmente, é claro que se uma das partes impõe um bloqueio à outra há uma violação à proibição dos castigos coletivos a uma população. Finalmente, as evacuações propostas por Israel, dentro de esse contexto de ataques constantes que realiza, mais parecem tentativas de deslocar à população provocando um êxodo forçado de que um interesse autêntico e honesto por salvar vidas civis.
O fato é que o direito à vida está em risco permanente ante os olhos da atónita comunidade internacional, dominada pela estrutura que arquiteta a guerra. Se respira um ar inocultável de tragedia e se percebe uma sensação de impotência ante a trama macabra que envolve a ação militar em curso. Mas, e onde está o Direito Internacional que regula normativamente a realidade? Pelo menos deveria haver um impulso muito mais decidido para absorver as nuances dramáticas dessa situação. O papel de fornecer subsídios para esse impulso é do jurista, e o resultado que deve ser buscado é não tornar o Direito algo inoperante ou inabilitado. A força normativa de tudo um acumulado de convênios internacionais que começaram com o antigo Direito da Guerra, depende de vontades para fazer a paz. Há uma idealização necessária para produzir o texto – a corrente idealista das Relações Internacionais tem um mérito irrefutável -, mas é preciso frieza e condições de possibilidade para efetivar o que consideramos ideal e adequado – aqui a corrente realista de Morgenthau nos alerta sempre de que há tarefas nunca fáceis a serem feitas.
Não há como negar que as gerações pós segunda Guerra temos uma herança brutal do nazifascismo, dos pogrom e dos genocídios. É uma experiência não vivida, porém uma visão sombria. Devo reconhecer que tenho amigos e colegas do campo do direito que justificam a narrativa desvairada de que na verdade, antes de 1945 o que acontecia é que um grupo de assassinos loucos e cruéis ordenaram matar vítimas inocentes e invadir países para se enriquecer, sob pretexto de serem superiores.
Ontem e hoje essa visão, na melhor das hipóteses, convida a assistir, torcer, lamentar, ficar agoniados e ao final, em um apelo de inconformismo, posicionar-se para que acabem os sofrimentos. Poder-se -ia tratar de uma tímida tentativa de salvar a moralidade envergonhada de uma humanidade com reservas democráticas, não fosse porque, felizmente, à distância, há uma reação nas ruas em favor da paz e do cesse das agressões. A virtude da mobilização é que além de ter um peso transformador, nos ajuda a voltar a casa admitindo que temos chances porque a desumanização não tomo conta do contexto da coexistência.
Dentro da intelectualidade, nas horas mais dramáticas há sempre o refúgio confortável de dizer que “é preciso se manter longe do objeto de estudo”, o que deve, em tese, conduzir a uma suposta neutralidade. Esse olhar tem limites, quando nos torna sujeitos não longe, senão alheios à realidade, o que facilmente serve, as mais das vezes, para justificar a ação dos agressores. E esse distanciamento com ares de cientificidade permanentemente legitimado foi o que permitiu que fatos como o holocausto passassem a ser entendidos como a vitimização exclusiva de um povo, e não como uma brutal agressão contra tudo e contra todos.
Como diz Baumann nas suas reflexões pós conversas com Janina, sua esposa sobrevivente à perseguição, o nazifascismo já foi apresentado na versão de “loucura momentânea em um contexto de sanidade (...) sedimentou-se com frequência na mente das pessoas que essa foi uma tragedia ocorrida com os judeus, de modo que, no que concerne a todos os demais, eram chamados a lamentar, a ter compaixão, talvez a se desculpar, mas não a muito mais que isso”. (Holocausto. P. 10)
O holocausto, entretanto, se explica por razões que vão muito além da banalidade das loucuras de um ou de outro. O nazifascismo é historicamente a fase mais acabada da degeneração do Estado construído pelo liberalismo e tomado pelos setores mais reacionários que buscam sua sobrevivência na crise sistémica. Uma resposta autárquica, corporativa, violenta, concentradora da produção, da riqueza e do poder, ante o levantamento das classes menos favorecidas, com um componente nacionalista imprescindível para uma expansão controladora do sistema internacional, que elimina resistências populares, civis e democráticas (Bobbio: Dicionário de Política, Pp. 804 e seg.).
A derrota do nazifascismo também foi a vitória de um direito internacional que nas novas condições para seu desenvolvimento durante a Guerra Fria, não se resignou a ser o instrumento legitimador da estruturação e perpetuação de uma dinâmica de poder. Por isso nasceram valiosos documentos que hoje são utilizados diretamente para pleitear direitos. Também, por isso, nunca é possível uma leitura asséptica do direito internacional, que esqueça fatores de poder. No caso de Gaza, não se pode negar que há uma unidade a ser levada em conta para trabalhar pela máxima efetividade dos direitos humanos, entre a arquitetura jurídica do Direito Humanitário, do Direito Internacional dos Direitos humanos e do Direito dos Refugiados, e essa dinâmica das relações internacionais de poder, que obstaculiza, dificulta e nega tais direitos. É a compreensão da unidade dos contrários, na interpretação jurídica sobre os limites e alcances dos textos normativos, perante cada situação concreta, o que permite construir saídas construtivas aos dilemas mais complexos.
Mas frisemos, no que se refere ao que acontece dolorosamente em Gaza, isso implica repensar o direito internacional, a partir da análise do que se verifica em uma região marcada por um passado e um presente de neocolonialismo, alvo de intenções geopolíticas pelos antigos e novos centros imperiais. Em tudo isso, o fator “neocolonialismo” tem de ser analisado com rigor. É parte de um projeto de poder que utiliza a expansão territorial, a conquista, a administração e o controle populacional, que corresponde a uma ideologia a través da qual se justifica esse controle, para submeter povos inteiros ou grupos sociais definidos arbitrariamente como alvos de submissão social e política, por considerá-los “atrasados”, “selvagens”, “animais” ou porque são indignos de ocupar esse território porque são “donos ilegítimos”, como diz Gartrell.
Os acontecimentos de Gaza não são casuais, nem fruto de loucuras de uns quantos, como tampouco foi casual o nazifascismo. Não se trata de fatos alheios ao desenvolvimento da história porque não há nada fora da história. Aqui há algo muito além que um conflito só entre Israel e o povo palestino. Já Hanna Arendt nas Origens do Totalitarismo se ocupou de desnudar que há uma consequência lógica da política expansiva imperial política e comercial, em consonância direta com as necessidades dos centros de poder, ligada à solidificação de estados nacionais e a emergência de discursos de superioridade cultural. E isso tem que nos fazer pensar no que está em jogo quando hoje falamos de genocídio e barbárie e de todo um processo que começou em 1948.
Não mais nazifascismo, nem o antigo nem o que hoje pretende se reinventar! A Humanidade foi vitimizada por ele e a Humanidade se solidarizou com o povo judeu, como um dos alvos diretos da massacre. Mas, como diz Bauman, Israel não pode tentar usar sua trágica memória como um certificado de sua legitimidade política, um salvo conduto para suas decisões políticas ou militares passadas, presentes ou futuras e, sobretudo, como pagamento adiantado pelas injustiças que pudesse ou possa, por sua vez, vir a cometer. (Bauman. Idem. P. 11).
Por isso, exigir o cesse do fogo em Gaza e parar a agressão a civis e a campos de refugiados exige um repensar do Direito, do Direito Internacional e mais ainda, uma redefinição da política, o que somente pode vir da comunidade internacional mobilizada a partir de uma nova subjetividade dos seres humanos em favor da paz, que possa produzir um salto de qualidade, como o acontecido em 1945, e seja rediscutida incluso a estrutura do Conselho de Segurança e o processo de tomada de decisões. Um direito internacional global deve-se afirmar na autodeterminação, no direito de todos os povos a constituir uma comunidade política organizada e no compromisso com um projeto de emancipação global da estrutura de poder internacional em cabeça de algumas potencias.
Parar a massacre em Gaza é um imperativo humano, social, político, jurídico. Por supuesto!
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