Dois pais, quatro avós, oito bisavós, dezesseis trisavós, trinta e dois tetravós, sessenta e quatro pentavós, cento e vinte e oito hexavós, duzentos e cinquenta e seis heptavós, quinhentos e doze octavós, mil e vinte e quatro eneavós, dois mil e quarenta e oito decavós.
Regrida onze gerações e você encontrará quatro mil e noventa e seis antepassados seus em fase de acasalamento e procriação. Se considerarmos que as pessoas se reproduziam usualmente com menos de dezoito anos, tudo isso cabe em breves dois séculos.
Quer dizer, ao tempo em que Pedro de Alcântara Bragança e Bourbon (Pedro I) declarava a Independência da Pátria amada, duas mil e quinhentas relações sexuais aconteciam, propiciando a possibilidade de seu nascimento futuro.
Possibilidade, só. Vista a coisa de hoje para o passado, com você já posto\a sobre o mundo, parece que o Universo conspirou para o seu nascimento. Estimada a coisa de lá para cá, você estava na ordem do acaso.
Leve em conta, agora, que o volume médio de ejaculação de um homem é de três centímetros cúbicos, que cada centímetro desses contém quinze milhões de espermatozoides, e você compreenderá que sua chance era uma em cento e doze bilhões e quinhentos milhões.
É dizer: considerando apenas duzentos anos, para cada chance de nascer em nosso tempo há cento e doze bilhões quatrocentos e noventa e nove milhões novecentos e noventa e nove mil e noventa e nove chances de não nascer.
Há quem goste de haver sido sorteado\a com o resultar nascido\a ao fim da linha das gerações anteriores. Sabidamente, há quem não goste. Queremos que todos gostem. Bobagem. Há quem não goste e tem o direito de não gostar.
Já houve quem processou pais e mães por haver nascido; em um caso, além de indenização pelo incômodo de viver, o sujeito quer que seus progenitores arquem com os custos da sobrevivência. Há movimento organizado que combate novos nascimentos (antinatalistas). Há filme sobre o assunto.
De coisa natural – nem se sabia como acontecia a gravidez –, a tema chegou, como tudo que resvala no interesse público deve mesmo chegar, ao patamar da consideração política. É que beiramos oito bilhões de terráqueos e ultrapassamos a biocapacidade do planeta.
De fato, cabe preocupação: lá no Grito do Ipiranga a Terra contava com um bilhão de habitantes (duzentos mil anos depois de a Humanidade se humanizar). Agora nós estamos nos adicionando um bilhão de habitantes a cada dúzia de anos. Complicado, não?
Cá, no Brasil, naquele tempo, éramos, segundo Laurentino Gomes, quatro milhões e meio de habitantes, contando-se oitocentos mil indígenas, um milhão de brancos, um milhão e duzentos mil africanos e descendentes escravizados e um milhão e meio de grupos decorrentes da miscigenação.
A essa complexidade rácica somaram-se, no primeiro quartel do século vinte, imigrantes, fazendo-nos um mosaico de gente invadida (indígenas), sequestrada (africanos), ludibriada (portugueses, espanhóis, italianos, alemães, japoneses, sírios, libaneses). Hoje o mundo está aqui.
Nossa história é violenta, grande parte de quem veio foi recebida com preconceito, em certos momentos algumas etnias foram levadas a campos de concentração. Nós não somos tão legais como nos declaramos ser.
Essa complexidade toda incide, claro, sobre a chance de nascer. Exemplo: uma japonesa e um japonês seguramente se encontrarão no Japão, porém, fora do Brasil, dificilmente um japonês e uma indígena gerarão filho\as. Na contramão da probabilidade, você nasceu desses encontros.
Tento dizer que não somos necessidade, somos contingência (ocorremos como evento de mero acaso, sem precisão, pois poderia simplesmente não ter se efetuado o nosso nascimento.
Contudo, se você nasceu, sobrou posto\a no mundo, está comprometido\a. Estando no mundo, estamos implicado\as na estada. A contingência me produz ao tempo mesmo em que meus atos, mais ou menos, produzem contingências.
É questão inescapável. Ou me comprometo ativamente por meus atos, ou me comprometo passivamente pelo ato de escolher não atuar (Sartre, condenação à liberdade: a não escolha é a escolha de não escolher).
Você nasceu de uma improbabilidade matemática, mas está aí. Tenha compostura. No Brasil, estamos implicado\as com a conjuntura brasileira. Tempos de ódio, os que vivemos (para quem age), ou que nos são dados a viver (para quem se furta ao ato).
O ódio circulante produz alto índice de adversidade; a vida sobra menos prazerosa. A odiosidade que nos alcança a todos, hoje, vem menos das nossas tristes condições de desigualdade do que de discursos oriundos de poderosos lugares de fala.
Nossa desigualdade gera uma espécie de guerra civil por sobrevivência, sobretudo nas grandes cidades. Nossos discursos de ódio produzem uma guerra ideológica do pior tipo: aquela sem suporte argumentativo.
Pois é: eleições. Escolha contra a naturalização das injustiças, invista um ato em quem se compromete com o apaziguamento social. Faça campanha e vote, se ninguém lhe parecer bom\a o bastante, no\a menos ruim. Menos ruim não para você, mas para o Brasil.
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