Coluna Por Supuesto
No domingo 2 de outubro a sociedade brasileira se pronunciará sobre quem deve conduzir o Executivo federal. Também haverá eleições para os legislativos da União – Câmara dos Deputados e Senado Federal – e os executivos e legislativos nos Estados membros da federação.
Para quem olha de fora, o processo eleitoral brasileiro é impressionante em termos numéricos: a) trata-se de um eleitorado de 156,4 milhões de pessoas; b) há quase 2 milhões de candidatos no país; c) são 496.512 seções eleitorais e 93.758 locais de votação; d) há 577.000 urnas eletrônicas. Trata-se, de fato, do quarto maior processo eleitoral do planeta.
Entretanto, se estes dados são importantes para entender a dimensão e grandeza do processo, em termos jurídico-constitucionais a questão que adquire maior relevância não só para o Brasil, mas para o conjunto dos povos do continente, é a preocupação com a estabilidade política e as balizas do Estado democrático construído em 1988. Esse ambiente tem sido provocado pela quantidade de impropérios e ameaças patrocinadas ou afirmadas pelo Executivo e membros do legislativo, dirigidas a expor que poderia haver um desconhecimento do resultado das urnas, em caso de existir uma “fraude” que só interessa, até pelas pesquisas, ao próprio governo.
A informação sobre o processo eleitoral, as pesquisas e os debates, dominam o cenário. A dúvida sobre as inconsistências do processo a partir da insegurança do sistema de urnas eletrônicas é um fantasma inventado cada vez menos plausível, derrotado pela história eleitoral, pela ciência e a tecnologia, mas fundamentalmente pelo ânimo democrático que paira e torna ridícula a manifestação chamando ao desconhecimento do resultado. Fica exposta aquela visão autoritária e à margem do ordenamento jurídico de quem age pressupondo o que não inexiste, para cultuar saídas fora dos rumos da participação popular.
Nesse contexto, há alguns dias, o crítico de cinema Inácio Araujo lembrava de uma formulação do capitão Salgueiro Maia para definir a situação do salazarismo em Portugal em 25 de abril de 1974. “Existem diversos tipos de Estado. O Estado liberal, o Estado social-democrata, o Estado Socialista. Mas nenhum deles é pior do estado a que chegamos”.
No Brasil, a questão sobre como explicar a chegada a esta quadra tão delicada da história e, sobretudo, como expor com tranquilidade e consistência que neste 2 de outubro a sociedade tem uma chance de reverter a disposição dos atores governamentais e reincorporar-se ao caminho de efetividade da Constituição, é tarefa urgente.
O professor Dieter Grimm leciona que é comum a todos os Estados constitucionais o fato de a Constituição visar à vinculação da política, e que a política, frequentemente, perceba essas vinculações como perturbadoras. Provavelmente, diz o professor alemão, não será encontrado nenhum Estado constitucional no qual a política não tente, ao menos ocasionalmente, ignorar as vinculações do direito constitucional ou instrumentalizar a Constituição para alcançar seus objetivos. [1]
Contudo, no Brasil não podemos falar neste último período de tentativas de instrumentalização, senão de uma aposta política por setores que se apoderaram do Executivo, para descaracterizar o conteúdo da Carta, impor uma lógica de atuação contrária, subvertendo seus valores.
Não há como esquecer que o que seja uma Constituição, neste caso a Constituição de 1988, é fruto de uma decisão política. As opções constitucionais são opções conscientes e amarram ou devem amarrar à política que fica subordinada ao Direito. É contra essa vinculação que se insubordinou, porque não convinha a seus propósitos e formas de conceber a relação entre Estado, economia, cultura, sociedade e cidadania, o grupo instalado na presidência e na administração pública federal. Esse grupo encontrou, desde logo, um ambiente propício a sua reprodução quando se alimentou a ideia, em vários setores elitistas e dominantes contrariados por políticas emergentes de efetividade constitucional, de que o direito em vigor não teria mais a dizer, dando-se início a uma confrontação que colocou ao Supremo Tribunal Federal, no seu papel de guardião da Constituição, em alerta permanente.
No começo, se algo destoou foi a ascensão à Chefia do Executivo Federal de alguém que considera possuir autorização para abrir as comportas da má educação, da grosseria, da humilhação que tem como alvo as mulheres, as minorias, os profissionais do jornalismo e os grupos mais vulnerabilizados pela crise estrutural do próprio sistema. Neste momento, ad portas da eleição, o presidente se diz arrependido de algumas das suas piores manifestações: “Dei uma aloprada. Aloprei. Perdi a linha. Aí eu me arrependo” afirmou recentemente (Ver Folha de SP. 13.09. 22, p. A7).
Porém, as questões (in) constitucionais se alastraram a ponto de existir hoje, e com controles ainda fracos, um autêntico ecossistema conformado por estruturas que atuam em redes e que cumprem um papel que agride o conteúdo jurídico do direito à informação, em particular à informação verdadeira, ao transmitir falsidades sobre pesquisas eleitorais, sugerir a ausência de garantias para o direito ao voto e instar uma resposta popular senão ganha o candidato de suas preferências. O tema obrigou ao Supremo Tribunal Federal a criar o “Programa de Combate à Desinformação” lançado em maio deste ano.
Neste ponto é bom lembrar que na ADPF 572, cujo relator foi o Ministro Edson Fachin, o STF determinou a constitucionalidade da Portaria GP nº 69 de março de 2019, expedida com fundamento no artigo 43 de seu Regimento Interno, que autorizou o inquérito 4,781 ante ameaças de fechamento da própria Corte, de morte e prisão dos seus membros. Ressalte-se que a partir desse momento, procurou-se, em campanha assistida de camarote, criar precedentes de desobediências às decisões do Tribunal, colocando-se em risco o sistema jurídico pautado pela constitucionalidade, a legalidade e a naturalidade do juízo. Se tratava, no caso, de ameaças concretas à independência do Supremo. O propósito, que ainda se visualiza, é coagir os Ministros, sob a ideia da utilização dos direitos fundamentais de expressão e de comunicação jornalística.
Sempre me pareceu acertado o posicionamento do STF no sentido de que não é preciso, como se cogitou pelos autores da ADPF, que as ameaças à Corte ocorressem dentro da sua sede e que envolvessem pessoas sujeitas à sua autoridade e jurisdição. A interpretação acanhada de se tratar exclusivamente de poder de polícia interna corporis e de ser o STF um ente despersonalizado não vingou e, continuo a dizer, com razão, porque há motivos de sobra para inferir em sadia hermenêutica, que as ameaças ao STF, na qualidade de ente decisivo em termos de defesa da Constituição, sobrepassam essa visão. A abrangência e amplitude das competências decorrem, incluso, do fato de que no direito constitucional o princípio da separação entre direito e política se expressa principalmente na independência do juiz. [2]
Entretanto, muito embora a decisão, não houve qualquer manifestação ou abstenção de atores comprometidos com práticas de desinformação, fake news e ameaças para não recair em tais condutas. Ainda ontem, a 3 dias da eleição, o presidente candidato continuou manifestando palavras no mínimo desrespeitosas contra Ministro do Supremo que hoje preside o Tribunal Superior Eleitoral. A questão continua sendo clara, achincalhar, semear dúvidas sobre a lisura do processo. A separação de funções, os freios e contrapesos, a unidade da Constituição, não permite, em momento algum e por nenhuma interpretação, que o Executivo se dirija a outro órgão de tamanha importância, no meio de uma conjuntura como a atual, para coibir ou transmitir uma mensagem desestabilizadora sobre o processo eleitoral ao mundo e à sociedade. Isso é, ainda, uma violação ao compromisso ante o Congresso exposto no artigo 78 da Constituição, que acarreta possível enquadramento em crime de responsabilidade, incluso porque nesta eleição não se sabe ainda quando um candidato é presidente ou simplesmente candidato e vice-versa.
Não vamos entrar em todos os detalhes que temos comentado em outras oportunidades nesta mesma coluna. Mas, chama a atenção e não vamos nos furtar de algo simples, grave e chocante e que consiste na intenção deliberada de mentir para angariar votos, especialmente quando a mentira toca a Constituição sobre um aspecto que temos falado em salas de aulas durante um bom tempo. A génese do chamado Auxílio Brasil, bem como da antiga Bolsa Família é o artigo 3º da Constituição, que nos marcos de uma Constituição dirigente determina o compromisso do Estado social com a redução da pobreza e da marginalidade. Esse compromisso do Estado com as necessidades públicas motivou a autores como Fournier e Questiaux no seu Traité du Social a sustentar a intervenção pública através da regulamentação das atividades privadas, da transferência direta de renda e a produção e distribuição de bens e serviços gratuitos aos mais necessitados.
O governo foi desde o começo contrário a qualquer transferência direta. Foi obrigado a falar em Auxílio Emergencial, logo estabelecido pela Lei 13.982 de 2020, e não admitia valores acima de 200 reais. O valor final, ainda precário de 600 reais foi determinado não pelo Executivo, mas pelo Legislativo, logo de vários debates. E sobre o ponto com toda razão lembra Rodrigo Zeidan, economista da UFRJ, que o governo acabou com o auxílio semanas antes da disponibilidade das vacinas. Esse é outro ponto doloroso de abordar, porque implica o descaso do governo com o direito à vida e à saúde dentro dos marcos do Estado Social. A compra oportuna das vacinas, como tem sido amplamente exposto, poderia ter poupado vidas.
O Estado social morre na imprevisibilidade, e com isso as intenções constitucionais. “Ser pobre, (diz Zeidan) não é só receber pouco, mas também conviver com a alta volatilidade de rendimentos: um dia se consegue fazer bico, no outro não. Assim, políticas sociais devem sempre, se possível, gerar previsibilidade, o que é o oposto de como age o governo, que não sabe valores, calendário ou condições para a principal política de transferência de renda da sociedade.”. [3]
Não é apenas pelo charlatanismo ou pela má educação; não é apenas pelos ataques verbais. Mas é também por tudo isso. E é contra o negacionismo, pela necessidade de deixar atrás os atentados ao Estado Social de Direito, de construir um modelo democrático mais firme, deliberativo e participativo, de afastar o autoritarismo, de estabelecer um rumo constitucional sólido, que o Brasil deve comparecer às urnas eletrônicas. É questão de avançar constitucionalizando a vida com direitos para todos que são um dever do Estado, por supuesto!.
Notas e Referências
[1] Constituição e política. BH. Del Rey. 2006. P. XLI
[2] Dieter Grimm. Ob. Cit. P. 13.
[3] Folha de SP. 3 de setembro de 2022. P. A29.
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