Coluna Vozes-Mulher / Coordenadora Paola Dumont
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
INTERTEXTO - Bertolt Brecht
O texto supra fala por si. Quando estudamos História, é comum nos depararmos com as seguintes perguntas: “como foi que deixaram isso acontecer?” Como pode um ser humano agir desta forma com outro, com base em uma suposta superioridade étnica, financeira, de sexualidade. Olhamos para trás, exemplos não faltam.
- Na peça de teatro denominada “Unwanted”, a atriz Dorothée Munyaneza narra, de forma intensa e sofrida, relatos de mulheres vítimas de sucessivos estupros ocorridos durante o genocídio de 1994 em Ruanda, como arma de guerra. Narrativas que vão desde a introdução de pedaços de pau na vagina de meninas de dez, onze anos - que acabavam, muitas vezes, engravidando de seus algozes, e tendo que lidar, até os dias de hoje, com diversas DSTs, predominantemente a AIDs -, além de choques elétricos, dentre diversas outras formas de tortura, deixam os espectadores com o estômago se contorcendo durante todo o espetáculo. Pergunta-se: como isso pôde acontecer? Como deixaram isso acontecer? Conviviam em Ruanda algumas tribos, umas voltadas à agricultura, outras à pecuária, que tinham conflitos entre si, mas, nada que se comparasse com a matança generalizada havida após a colonização de Ruanda pela Alemanha, e posteriormente pela Bélgica. O conflito interno era interessante para os colonizadores, para fins de manutenção do poder. Mas, como proceder à manutenção do conflito junto àquelas tribos que habitavam o país, para que permanecessem em guerra? Superioridade racial. Não falha nunca junto aos desavisados, principalmente aqueles que já têm, em si, uma semente fascista precisando somente de algo ou alguém para germiná-la. No caso de Ruanda, com forte apoio da Igreja Católica, a Bélgica incutiu na mentalidade das pessoas de etnia tutsi – que foram escolhidas para ocupar cargos de administração local – a superioridade étnica, eis que eram eles os que tinham traços mais próximos dos europeus – tinham o nariz mais fino e a pele menos escura, embora ainda negra. Os tutsis tinham traços mais aristocráticos e menos rústicos que os hutus. Assim, questões políticas e de dominação europeia que foram instituídas pelo colonizador, mas permaneceram mascaradas pela suposta superioridade étnica dos tutsis em detrimento dos hutus – a conveniência do discurso racista – geraram, posteriormente, a reação hutu que ocasionou o genocídio de 1994, que deixou incontáveis vítimas e uma herança triste de guerra em Ruanda[1].
- No livro História Geral do Brasil, mostra-se de forma clara o contexto do país que permitiu a instauração do golpe militar que inseriu o país em duas décadas de ditadura. Após o governo de Juscelino Kubitschek, foi eleito Jânio Quadros, tendo como vice João Goulart. Àquela época, havia rumores de que este simpatizava com o comunismo, o que fez com que Jânio tentasse articular um golpe, com apoio do Congresso Nacional, para que tivesse amplos e ditatoriais poderes para governar. Decidiu, com isso, informar sua renúncia, a fim de que o Congresso, temeroso pela assunção de Jango ao cargo de Presidente, instituísse o comunismo no Brasil. Contudo, a renúncia foi aceita, tornando-se, Goulart, o novo presidente do Brasil. A seguir, a fim de tornar o presidente decorativo, aprovou-se uma emenda instituindo o parlamentarismo no país. Todavia, a seguir, temendo que, mesmo com o parlamentarismo, Goulart significasse um retorno ao populismo, os militares optaram por dar um golpe à democracia e assumir o poder em 1964, a pretexto de extinguir a ameaça do comunismo no país. Foram anos sombrios no país, nos quais várias pessoas foram capturadas, torturadas e mortas. Muitas famílias ainda sentem não terem tido a oportunidade de enterrar parentes queridos, desaparecidos na ditadura.
- A derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial instaurou verdadeiro caos no país, sobretudo após a assinatura do humilhante Tratado de Versalhes, que impunha uma séria de condições, tanto de abdicações territoriais, quanto de ordem indenizatória. Nesse contexto caótico, ascendeu no país a figura de Adolf Hitler, que, com um discurso nacionalista, antissemita e ditatorial, ganhou apoio dos cidadãos alemães, que acreditavam que ele podia reerguer o país. Acreditava-se na necessidade de unir a Alemanha, sobretudo considerando a possibilidade de existência de um inimigo interno, não alemão, que não ajudava a agregar o que sobrava do país no pós-guerra. O discurso de ódio a todo aquele que fosse diferente vingou entre os alemães, que se achavam superiores e não queriam a presença de não alemães em seu território. Nesse contexto, ganhou força o discurso purista, por meio do qual os alemães podiam se considerar uma raça superior, além de culpar o diferente tanto pela derrota alemã quanto pela dificuldade de reestruturação do país após a guerra. Daí, surgiram terríveis atrocidades contra os judeus e outros, sistematicamente enviados a campos de concentração, onde, após muita tortura, acabavam por morrer.
Das narrativas acima, verifica-se que o autoritarismo como um todo tem muito a ver com uma ideia de superioridade propagada por seus adeptos, aliada à existência de um perigo comum, muitas vezes hipotético, que unifica a sociedade em seu combate, custe o que custar.
O que tem o Brasil de 2018 a ver com tudo isso?
Temos um candidato à presidência da República que concentra, em si, todos os preconceitos possíveis em face das minorias políticas existentes no país. Ele ataca, com a mesma facilidade com que se faz uma piada sobre um jogo de futebol, negros, índios, mulheres, homossexuais. Exalta torturadores publicamente (conduta esta que é, inclusive, tipificada como crime). Fala em conter a ameaça comunista (é de uma falta de criatividade e de timing histórico...) e armar o “cidadão de bem” para combater o inimigo.
Em um país em que os negros são o maior alvo da seletividade do sistema penal[2], além de serem as principais vítimas de morte violenta[3], em que os índices de violência doméstica são absurdos e alarmantes (sendo o Brasil o 5º país em que mais se matam mulheres, conforme o último Mapa da Violência, realizado em 2015[4]), e no qual estas têm muito menos direitos que homens, e que lidera o ranking dos países em que mais se matam LGBTs no mundo, apoiar um candidato como esse é sintomático de que vamos mal em termos de Democracia.
Não podemos dizer que todos aqueles que compactuam com as ideias desse candidato sejam fascistas. Mas, soa um pouco contraditória a adesão ao candidato em questão, considerando que a justificativa de grande parte de seus eleitores é a falta de opções - pois não mais suportam um governo de esquerda, intervencionista, que os onera ao tutelar os mais pobres – quando há diversos outros candidatos concorrendo ao cargo de Presidente, alguns deles declaradamente liberais e qualificados para sustentar os seus discursos de direita, sobretudo na economia.
Reinaldo Azevedo, escritor historicamente ovacionado pela direita brasileira, adequadamente afirmou:
Não é o liberalismo de Bolsonaro que seduz porque este, a rigor, não existe. A sua trajetória o prova. É a mobilização da besta do preconceito e do rancor instalada no fundo de algumas consciências.
Menciona, a seguir, outros candidatos de viés inegavelmente liberal, que poderiam ser opções de voto, e conclui:
O Bolsonaro que atrai essas camadas de que falo é justamente o ILIBERAL, o reacionário, o do discurso fascistoide, o que alimenta a impressionante rede de ódio montada da Internet para xingar, intimidar, desmoralizar, enquadrar e demonizar pessoas que discordam dessa adorável visão de mundo[5].
Esse discurso de intolerância não pode ser admitido. O fascismo é assim. Vai nascendo aos poucos, florescendo, fazendo algozes e, na mesma medida, criando vítimas. Sempre há um inimigo comum a ser atacado: a ameaça comunista (golpe militar de 1964, no Brasil), o negro que é mais negro que o outro (como em Ruanda), o branco que é menos alvo que o outro (como na Alemanha fascista de Hitler). Quando vemos, as pessoas já estão matando as outras pelo simples fato de possuírem características que não lhes foi dado decidir se queriam ter, mas, das quais, não podem se livrar (ascendência, orientação sexual, cor da pele, gênero, etc.).
Como proceder, então? A única saída possível é a Democracia. É saber conviver com o diferente e respeitá-lo. Porque é fácil sustentar um discurso de opressão quando a vítima está do outro lado do front. Mas, e quando o fascismo bater à nossa porta e não tivermos feito nada sobre isso? E quando o homossexual morto é nosso filho? E quanto a mulher que perdeu o emprego “porque engravida” é nossa irmã? E quando o negro que é confundido com o autor de um delito é alvejado pelo “cidadão de bem” armado é a gente mesmo? Quem vai colocar limite no fascismo?
O ideal seria que tivéssemos empatia e conseguíssemos compreender a dor do outro (já que, por mais que tentemos, nunca conseguiremos saber a real dor de uma opressão sem, de fato, senti-la), mas, em não sendo possível, seria interessante que garantíssemos a dignidade do outro, porque isso é, em alguma medida, garantir a nossa própria dignidade.
Nunca é demais lembrar: "Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. (Edmund Burke)
Notas e Referências
[1] Sobre o tema, interessantíssimo o livro “Uma Temporada de Facões: Relatos do Genocídio em Ruanda”, de Jean Hatzfeld.
[2] No Brasi, 64% dos presos são negros, vide https://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-brasil-64-dos-presos-sao-negros.
[3] Dados obtidos no Atlas da Violência de 2017, publicado pelo IPEA. Vide: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253 .
[4] Vide: https://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2015_mulheres.php .
[5] Vide: https://www3.redetv.uol.com.br/blog/reinaldo/e-o-liberalismo-de-bolsonaro-que-seduz-parte-dos-ricos-e-universitarios-nao-e-odio-a-pobre-e-a-diferenca-existem-os-candidatos-liberais/ .
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