Já há casais que fazem festa, com música e felicidade, para comemorar separação. Reúnem família, os melhores amigos, os filhos, se filhos houver, e festejam o fim da convivência. Existe quem se espante, mas é apenas um ritual que o nosso tempo pede. Afinal, pouca gente ainda se dispõe a aceitar que a convivência sobreviva ao amor, e o amor só tem prazo de validade enquanto acontece de acontecer.
Como conviver por obrigação é morar no inferno, as pessoas sensatas saem disso e vão buscar felicidade noutras partes, formando outros pares, fugindo das dores vencidas com novos amores. Pode parecer estranho – não é dos costumes – mas uma convivência não tem que terminar em tragédia, culpas lançadas, desejos de desgraça, rogação de pragas e outras baixarias.
Um bom amor – um amor que se preze – pode acabar em poesia, com as partes mantendo consideração entre si, sentindo saudade dos momentos felizes, dos sonhos sonhados. Por isso, algumas pessoas, ao dissolverem seus vínculos de existência em comum, festejam o que houve de bom, o que se proporcionaram de carinho, de dedicação, e se despedem com a certeza de que valeu a pena. Julgam que aquela vida merece uma festa – e festejam.
Há quem diga que, hoje em dia, os amores são curtos. Tempos de amores líquidos, pensava Bauman, desqualificando a liquidez (de quem, nisso, discordo). Noutros tempos, no mais das vezes, também o foram. Amores longos jamais sobejaram, viveram mais nas relações idealizadas da época romântica (últimas décadas do século XVIII, grande parte do século XIX, com sobras ideológicas perduradouras).
Nisso, de amor, o que mudou foram as mulheres, ou o tanto de violência sobre as mulheres. Nos casamentos antigos, a mulher devia dissolver a personalidade na vontade do marido. Como dizia a tradição, eles (no masculino) eram um só. E acabavam sendo mesmo: o “um só” era o marido, a mulher era ninguém. Isso é (ou deveria ser) passado.
Atualmente, um casamento pede pelo menos três partes equivalentes: ela, ele e a relação. Os três têm vida própria e pedem espaço na convivência. Muitas vidas amorosas não dão certo porque nem mesmo as duas primeiras partes se respeitam. Acasalam-se, gostando-se como são, incluindo, claro, o modo de ser próprio de cada parte, mas, logo, logo querem transformações, investem em despersonalização, em posse, em invasão de privacidade.
As pessoas casam-se sem cordas atadas – os laços são feitos de paixão –, logo depois querem rédeas curtas. Isso, porém, já é assunto velho, coisa sabida e debatida. O que parece que há de novo é a terceira pessoa, que tem vida própria e que se chama relação: são os pactos, os explícitos e os implícitos. Nem sempre se dará conta do que se combinou. O ideal é se recombinar. Ou não. Nos descumpridos também há combinação.
Das três pessoas, a relação é a menos visível, todavia é a mais presente. Ela é um todo que não se alcança, então, não se a submete. Nós a sabemos, mas não a temos sob controle. Ela é por onde há trânsito, não só entre as partes, mas de uma parte pela outra. Nela, cada um se mantém por inteiro, com sua individualidade respeitada, mas convida o outro à sua vida. Ninguém deve satisfação, mas, se alguém contar-se, não cabe julgamento. Claro que assim não é. Só digo que assim poderia ser.
Se na relação não deve haver obrigações confessionais, deveria, contudo, haver uma intimidade que conduzisse a conversas despojadas. Haveria franca honestidade de si, nunca artificiosa falsificada. A relação solicita o reconhecimento de que o meu par é outra pessoa, seja: é independente de mim. Contudo, a outra pessoa que o meu par é e será tem que ser minha cúmplice: eu conto com ela, ela conta comigo.
A minha cara metade, pois, não me pertence, nem eu pertenço a ela. Nem que as partes queiram, não dá. Ela e eu, apenas, damos vida à relação. A relação, a convivência. Convivemos porque queremos. Estamos juntos porque desejamos estar juntos, mais nada. Nós nos gostamos tanto que, se estamos apartados, nos fazemos falta. Se não há falta (desejo é falta; se não há falta, falta desejo), a convivência já morreu.
A relação é uma condição na qual cada parte tem certeza de que é querida, porque conta com que a outra sinceramente diga, se tudo acabar, que tudo acabou. Quando finda, alguém, um dia, tem que dizer que a relação está findada. Então, em justa homenagem, se faz uma festa: homenagem ao tão bom que se foi e ao ainda bom que sempre pode (com alguma saudade) ficar.
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