Eficiência e direito penal: é possível um diálogo garantista? (Parte 2)

09/09/2016

Por Fillipe Azevedo Rodrigues – 09/09/2016

Leia também a parte 1

Embora contenha isoladamente um valor normativo, a eficiência insere-se em uma unidade jurídica maior, não se constituindo como um fim em si, mas como um meio de promoção do Estado Democrático de Direito. A AED positiva se presta perfeitamente para assimilar e limitar o ímpeto eficientista eventualmente emergido em função da abordagem econômica. Em geral, segundo assevera Jesús-María Silva Sánchez: “os direitos fundamentais, apareceriam, assim, como limite intransponível das considerações de eficiência. No meu entender, esta é a tese mais difundida”.[1]

Isto posto, a abordagem econômica positiva ou descritiva do universo jurídico e social pode ser identificada como a tese mais difundida.

Há, no meio jurídico – em sentido estrito – propostas de racionalização democrática que convergem na direção da Análise Econômica do Direito Penal, ainda que não tenham reconhecido a pertinência da interdisciplinaridade entre Direito e Economia, como instrumento de confirmação das teses.

A teoria do delito funcional redutora de Eugenio Raúl Zaffaroni pode ser apontada como uma proposta de racionalização do Direito Penal, pautada pelos direitos de liberdade e pelos dados da realidade, “sob pena de construir-se conceitos jurídicos perversos”, tal como ocorre nas demais abordagens funcionalistas. Assim, “o direito penal, conforme Zaffaroni, deve ser construído de maneira muito parecida com o direito humanitário”.[2] A aposição da expressão “redutora” possui justamente o condão de limitar o instrumentalismo penal aos princípios democráticos.

Sob a ótica redutora, a principal função extraída do Direito Penal é, segundo Zaffaroni: “ser o direito penal o ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso do estado constitucional de direito”.[3]

Ademais, segundo Luís Augusto Sanzo Brodt, a teoria redutora contribui para, “independentemente de se acatar a teoria agnóstica da pena, fundamentar uma concepção do direito penal também limitadora do poder punitivo.[4]

Vê-se, a partir do trecho transcrito acima, substancial pertinência entre a abordagem econômica e a funcionalidade redutora do Direito Penal, conforme proposto por Zaffaroni, de modo a preservar a unidade democrática do ordenamento jurídico.

A respeito da concepção agnóstica da pena, também presente no sistema redutor, em nada diverge da preocupação da AED na obtenção de estudos empíricos de Economia do Crime que respaldem a eficiência punitiva da sanção penal, sobretudo nos aspectos de dissuasão preventiva e reparação do dano causado pelo ato ilícito.

A teoria funcional redutora perfilha-se certamente com a Teoria Econômica do Crime, desenvolvida pioneiramente por Gary Becker, na qual há evidente preocupação com a repercussão dos incentivos para delinquência, existentes no mundo real. Assim, se o problema é eminentemente social, conforme apontam tanto Zaffaroni[5] como Becker,[6] não há viabilidade em interferir na política criminal em função dos custos financeiros e da restrição de liberdades derivados. A política pública deve sair do campo jurídico-penal para o campo socioeconômico.

Outras duas propostas de racionalização, atinentes sobretudo ao processo de expansão do Direito Penal, são as defendidas por Winfried Hassemer[7] e Jesús-María Silva Sánchez,[8] respectivamente: (i) a criação de um Direito de Intervenção, a ser destacado da atual tipificação criminal dos novos riscos; e (ii) o dimensionamento de um Direito Penal de duas velocidades.

Ambos já foram descritos neste trabalho, adotando-se a linha metodológica proposta por Sánchez. Porém, ressalte-se que pouco diferem em substância.

Assim, tanto o Direito Penal Clássico de Hassemer quanto o Direito Penal da primeira velocidade de Sánchez, pautados pela racionalização, expandir-se-ão na direção das demandas sociais cuja proteção lhe seja própria efetivamente, de modo a respeitar o princípio da subsidiariedade. Em sendo assim, aquilo que foi protegido eficientemente por outro ramo jurídico, nunca deverá ser acolhido na esfera penal.

A preocupação com as sanções penais está presente também na obra de ambos os autores. De modo que é possível concluir o seguinte: para o que for estritamente necessária a tutela penal, empreender-se-á um processo de racionalização distinto, haja vista que a problemática não reside na expansão do Direito Penal em si mesma, mas na expansão das ineficientes penas de privação de liberdade. Em tal expansão punitiva, cabe a racionalização da AED a fim de combatê-la.

O que restar de expansão no Direito de Intervenção ou no Direito Penal da primeira velocidade atenderá aos direitos de liberdade e aos princípios constitucionais pertinentes. A finalidade será otimizar um modelo sancionador democrático e eficiente, visando à dissuasão e à ressocialização punitiva, sem utilizar-se da privação de liberdade como principal recurso.

Para tais abordagens, tornam-se pertinentes do mesmo modo as formulações teóricas da Economia do Crime, tal como também desenvolvidas por Erling Eide.[9]

Todavia, o modelo repressor, cada vez mais adotado, aproxima-se do que, segundo Manuel Cancio Meliá, é denominado de Direito Penal do Inimigo[10] ou, para Jesús-María Silva Sánchez, Direito Penal de terceira velocidade.[11]

Atribui-se a criação do conceito dessa nova dimensão de expansão criminal ao penalista alemão Günther Jakobs,[12] que identificou três elementos bases do processo de criminalização de delitos socioeconômicos, sobretudo aqueles praticados por organizações criminosas e terroristas. São eles: (i) avanço da punibilidade prospectiva, ou seja a criminalização do perigo abstrato, mera conduta e até mesmo da simples cogitação praeter criminis, ao contrário da teoria clássica que exige a lesividade antecedente para a resposta do processamento penal; (ii) penas desproporcionalmente elevadas, destituídas de qualquer função preventiva, reacendendo as premissas da vingança pública; e (iii) relativização e supressão de liberdades e garantias processuais de caráter individual.[13]

Diferentemente da concepção redutora de Zaffaroni e das abordagens liberais de Hassemer e Sánchez, a função do Direito Penal do Inimigo é identificar e tratar o delinquente típico dessa dimensão como um adversário do ordenamento jurídico.[14]

Jakobs parte da premissa de que níveis de punibilidade e de relativização de garantias são legítimos na medida da gravidade do delito para a segurança do Estado de Direito.[15]

A ideia do inimigo, portanto, atribui ao Direito Penal a função protetora do ordenamento jurídico, em razão da seguinte lógica: a proteção do Estado de Direito e de seu ordenamento antecede a proteção dos direitos de liberdade, pois, sem aquele não se poderiam exigir estes.

Para o autor, eventuais vulnerações de direitos humanos, depois de um processo legislativo de criminalização, mostram traços próprios do Direito Penal do Inimigo sem serem por eles considerados ilegítimos. O hiperpunitivismo do inimigo claramente delimitado e destinado à proteção de direitos humanos e do próprio Estado seria, portanto, legítimo.[16]

Assim, autorizar a máxima amplitude do poder punitivo estatal para combater organizações criminosas narcotraficantes, por exemplo, estaria devidamente justificado em função dos danos causados aos direitos humanos e, consequentemente, a toda sociedade pelo mercado ilícito de tóxicos.

Em que pesem tais argumentos, os mecanismos eficientes de redução do tráfico de drogas não estão e nem nunca estiveram no Direito Penal em princípio. Assim restou demonstrado pela Economia do Crime ser mais bem sucedidas intervenções de políticas públicas sociais em conjunto com novas políticas de repressão, amparadas por parâmetros de racionalidade e com a abertura devida para a abordagem econômica de mercado. Tais políticas de repressão, conforme analisado, não prescindem das liberdades e garantias individuais do Estado Democrático de Direito. Afinal, foram propostas justamente dentro de sua moldura constitucional.

A AED positiva, ao analisar a eficiência do Direito Penal do Inimigo no caso das organizações narcotraficantes, fornece relevantes subsídios para ponderação dos direitos fundamentais em prol dos princípios constitucionais da intervenção mínima, proporcionalidade e legalidade, preservando-se as garantias legais decorrentes da ampla defesa e do contraditório, por exemplo.[17]

Observou-se, portanto, a partir da abordagem econômica, a maior proteção dos seguintes princípios constitucionais do Direito Penal: legalidade, proporcionalidade, intervenção mínima e, ainda mais importante, dignidade da pessoa humana.

Conforme se extrai das palavras de Alberto Jorge C. de Barros Lima, cumpre empreender uma intervenção racional mínima no Direito Penal. A resposta penalógica privativa de liberdade, ao menos aquelas de média e longa duração, deve servir somente à tutela dos bens jurídicos mais importantes.[18]

Na linha do que foi exposto, a eficiência econômica como norma jurídica constitucional fortalece o Estado Democrático de Direito e concilia direitos de liberdade (protegido pela garantia da intervenção racional mínima) e direitos sociais, econômicos e difusos, a exemplo da garantia de uma segurança pública eficiente e humanitária.


Notas e Referências:

[1] SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Barueri: Manole, 2004, p. 65.

[2] BRODT, Luís Augusto Sanzo. O direito penal sob a perspectiva funcional redutora de eugenio raul zaffaroni. In: Revista brasileira de estudos políticos, n.° 101, p. 97-136, 2010, p. 100.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alli. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Renavan, 2003, p. 40.

[4] BRODT, Luís Augusto Sanzo. O direito penal sob a perspectiva funcional redutora de eugenio raul zaffaroni. In: Revista brasileira de estudos políticos, n.° 101, p. 97-136, 2010, p. 132.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alli. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Renavan, 2003, p. 156-157.

[6] BECKER, Gary Stanley. Crime and punishment: an economic approach. In: Journal of political economy: Essays in the economics of crime and punishment, National Bureau of Economic Research, p. 169-217, 2001, p. 177. Disponível em: <http://www.jstor.org/discover/10.2307/1830482?uid=3737664&uid=2&uid=4&sid=21101968867553>. Acesso em: 30 de abril de 2013.

[7] HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direito Penal. Trad. de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. In: Revista síntese de direito penal e processual penal, n.º 18, p. 144-157, 2003.

[8] SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos de política criminal nas sociedades pós-industriais. 2 ed. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

[9] EIDE, Erling. Economics of crime behavior. In: BOUCKAERT, Boudewijn; GEEST, Gerrit de. Encyclopedia of law & economics, n.º 8100, p. 345-389, 1999. Disponível em: <http://encyclo.findlaw.com/8100book.pdf>. Acesso em: 30 de abril de 2013.

[10] MELIÁ, Manuel Cancio. De nuevo: “derecho penal del enemigo?. In: STRECK, Lenio Luiz (org.). Direito Penal em Tempos de Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 27.

[11] SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos de política criminal nas sociedades pós-industriais. 2 ed. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 193-197.

[12] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho penal del inimigo. Madri: Civitas, 2003, p. 55-56.

[13] Ver: MELIÁ, Manuel Cancio. De nuevo: “derecho penal del enemigo?. In: STRECK, Lenio Luiz (org.). Direito Penal em Tempos de Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 27.

[14] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho penal del inimigo. Madri: Civitas, 2003, p. 48.

[15] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho penal del inimigo. Madri: Civitas, 2003, p. 47.

[16] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho penal del inimigo. Madri: Civitas, 2003, p. 56.

[17] Frise-se, por oportuno, que há juseconomistas que defendem o abolicionismo criminal com relação ao mercado de entorpecentes, pois argumentam ser a medida menos onerosa socialmente para o Estado e para os cidadãos. (POSNER, Richard A. Economic analysis of law. Nova Iorque: Aspen Publishers, 2010, p. 307-309).

[18] LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 72.


Fillipe Azevedo RodriguesFillipe Azevedo Rodrigues é Advogado na QBB Advocacia, Conselheiro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio Grande do Norte e Professor da Universidade Potiguar, Natal – RN. Mestre em Direito constitucional pela UFRN e Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal. Autor do Livro “Análise Econômica da Expansão do Direito Penal” pela Editora Del Rey, Belo Horizonte.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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