É possível não ser garantista

02/08/2015

Por Reinaldo Barbosa - 01/08/2015

A manifestação social ocorrida em contrariedade a governos autoritários que violavam direitos fundamentais individuais motivou, em diversos países, a busca pela efetivação de tais direitos. No Brasil, estes movimentos orientados pela redemocratização culminaram no advento da Constituição da República de 1988.

Este cenário de mudança social, materializado pela promulgação da Constituição Cidadã, fomentou a denúncia da incompatibilidade dos novos nortes de garantias fundamentais com os inúmeros dispositivos legais e posicionamentos jurisprudenciais contrários que ainda circundavam o nosso ordenamento jurídico.

Contudo, a mudança que se requeria não era simplesmente de cunho legalista. Douglas Fischer assevera que, nesse contexto, o garantismo pode ser traduzido pela visão do acusado ou réu não como um objeto processual, mas como um sujeito de direitos e, ao mesmo passo, o juiz não deve submeter-se a uma visão positivista da lei, mas, de outra banda, deve aplicá-la sob o prisma das diretrizes constitucionais.[1]

De fato, a Constituição da República consagrou não só direitos e garantias fundamentais. Em que pese a existência e importância de tais conquistas sociais, não se pode olvidar da existência de direitos coletivos e sociais que criam obrigações recíprocas entre os indivíduos.

Konrad Hasse ao refletir sobre a força normativa da constituição – em crítica à teoria desenvolvida por Lassale, para quem a constituição era simples folha de papel –, já asseverava que para sustentar-se num mundo de constante mudança política e social, uma Constituição não pode pautar-se numa estrutura unilateral. De modo diverso, deve buscar o ponto de equilíbrio, considerando, para tanto, parte da estrutura diversa.[2]

Para o autor, direitos fundamentais não subsistem por si sós. Para que uma Constituição tenha força normativa e desenvolva o que o autor chamou de vontade da constituição, esta não pode incorrer no erro de prever somente direitos fundamentais desacompanhados dos deveres.

Nesse viés seria um grande equívoco considerar os direitos individuais fundamentais desgarrados dos demais direitos e deveres assegurados na Constituição da República como se houvesse apenas uma obrigação de não-fazer para o Estado na tutela dos interesses individuais.

Outro ponto que tem sido – ingênua ou tendenciosamente – invertido por quem prega um garantismo desgarrado da sua fonte primária – da obra Direito e Razão, de Luigi Ferrajoli – é a necessidade de racionalização das decisões judiciais.

Tem sido comum a prolação de decisões judiciais que – invocadas como verdadeiros mantras – não se prestam a construir um raciocínio lógico entre a conduta e a incidência ou não da norma penal. Ao invés disso, invocam princípios gerais e abstratos transvestidos da teoria garantista – adaptada.

A esse garantismo de exclusivas garantias individuais, Douglas Fischer chama de “garantismo hiperbólico monocular”[3], justamente por enxergar somente uma das faces de tal doutrina.

Para que seja possível responder ao questionamento proposto, é necessário que se tenha noção, inicialmente, do que é garantismo. Não um garantismo maculado por discursos inflamados e tendenciosos; mas um garantismo tirado da sua fonte.

A responsabilidade penal, para Luigi Ferrajoli, é concebida como o “conjunto das condições normativas exigidas para que uma pessoa seja submetida à pena.”[4]

Para chegar-se a esse crucial momento de aplicação de uma pena, Ferrajoli diz ser necessário considerar dez princípios – axiomas – que derivam dos seguintes termos: delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa. Cada um desses princípios deônticos representa uma condição sem a qual não se pode atribuir responsabilidade penal a alguém.

A utilização dos termos acima identificados origina dez axiomas: “Nulla poena sine crimine, Nullum crimen sine lege, Nulla lex (poenalis) sine necessitate, Nulla necessitas sine injuria, Nulla injuria sine actione, Nulla actio sine culpa, Nulla culpa sine judicio, Nullum judieium sine accusatione, Nulla accusatio sine probatione, Nulla probatio sine defensione.”[5]

Destes axiomas resultam 10 princípios: 1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.

Impende diferenciar, inicialmente, a legalidade em sentido lato da legalidade em sentido estrito. De forma simples, a principal diferença reside no fato de que enquanto aquela orienta o aplicador do direito na subsunção, esta é uma orientação dada ao próprio legislador na atividade de escolha da tutela penal.

A observação de tais princípios não resulta necessariamente na aplicação de uma pena, mas na possibilidade de aplicação. O que se diz é que, pelos fundamentos apresentados pelo próprio direito penal, uma pessoa só pode ser penalmente responsabilizada e ter sobre si incidente uma pena, se cada um destes princípios for observado.

Nesse sentido, Alexandre Morais da Rosa, com a peculiar exatidão, ensina:

"São, assim, prescritivas de regras processuais ideais ao modelo garantista sem que o seu preenchimento in totum obrigue uma sanção; mas o contrário, pois somente com o preenchimento (de to)das implicações deônticas do modelo é que o sistema está autorizado a emitir um juízo condenatório.”[6]

A fixação dos axiomas e dos princípios que deles decorrem é fundamental para que Ferrajoli possa fazer a diferenciação entre o Direito Penal Mínimo e o Direito Penal Máximo.

Para o autor, a observação dos critérios penais e processuais penais é o que caracteriza um Estado de direito. Nesse sentido, assevera:

"O modelo garantista descrito em SG apresenta as dez condições, limites ou proibições que identificamos como garantias do cidadão contra o arbítrio ou o erro penal. Segundo este modelo, não se admite qualquer imposição de pena sem que se produzam a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a necessidade de sua proibição e punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter externo ou material da ação criminosa, a imputabilidade e a culpabilidade do seu autor e, além disso, sua prova empírica produzida por uma acusação perante um juiz imparcial, em um processo público e contraditório em face da defesa e mediante procedimentos legalmente preestabelecidos".[7]

A violação destes direitos e garantias caracteriza um Estado absoluto ou totalitário, no qual não há subordinação à lei tanto no plano existencial quanto no plano processual.

Ferrajoli apresenta o direito penal mínimo como sendo um ideal de racionalidade e certeza, e não somente representado pelo grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos. Na verdade, a racionalidade e certeza da utilização do sistema penal refletem a própria defesa das liberdades individuais e sociais.

A racionalidade está relacionada à previsibilidade das normas penais; enquanto a certeza é o fator que deve acompanhar as decisões. Do elemento certeza derivam conclusões consagradas no nosso ordenamento jurídico como a presunção da inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o ônus da prova sendo da acusação, a absolvição em caso de incerteza dos fatos, e tantos outros que não devem confundir-se com proteção a criminosos – no sentido pejorativo –, mas como vinculação às normas penais e processuais que caracterizam o Estado de Direito.

Em sentido oposto caminha o direito penal máximo. Este, por sua vez, caracteriza-se pela incerteza e imprevisibilidade das normas penais. As decisões são altamente arbitrais e sem racionalismo.

A certeza buscada no direito penal mínimo diferencia-se da perseguida no direito penal máximo basicamente por um ponto: enquanto naquele a certeza consiste no objetivo de que nenhum inocente seja punido, neste a relativização da certeza até admite que algum inocente seja apenado, desde que nenhum culpado fique impune.

Parece mais acertado o primeiro critério de certeza, uma vez que o processo penal não serve para provar a inocência do acusado, mas a sua culpabilidade. Sendo assim, o indivíduo parte de uma presunção de inocência e o processo penal servirá para constatar o contrário. Por isso que, havendo dúvida (ausência de certeza) nesse processo de busca pela culpabilidade, significa dizer que ele não saiu do estado de inocência.

A prisão é, sem dúvida, a máxima do direito penal, uma vez que a liberdade é condição para a efetivação de tantos outros direitos. Aury Lopes Jr faz brilhante digressão sobre o instituto. Segundo o autor, até o final do século XVIII a constrição da liberdade tinha somente função de custódia e tortura enquanto se decidia pelas mutilações, amputações e tantas outras penas bárbaras.[8]

Assevera, ainda, que a prisão canônica passa a buscar na pena o melhoramento do condenado, e não a sua destruição. Todavia, somente no século XVIII surge a privação da liberdade como pena e, no século XIX, como principal delas.

Conclui o referido autor que:

"O Direito Penal nasce não como evolução, senão como negação da vingança, daí por que não há que se falar em “evolução histórica” da pena de prisão. Não se trata de continuidade, senão de descontinuidade. A pena não está justificada pelo fim de vingança, senão pelo de impedir por completo a vingança. No sentido cronológico, a pena substitui a vingança privada, não como evolução, mas como negação, pois a história do Direito Penal e da pena é uma longa luta contra a vingança". (Aury Lopes Jr, 2014. p. 42)

Uma vez que o Estado substitui a vingança privada por uma punição condicionada à prévia observação de diretrizes de natureza penal e processual, inconcebível a tolerância de violações por parte do próprio Estado, como se buscasse reestabelecer a barbárie privada antes praticada.

No mesmo sentido, Cesare Beccaria, já em 1764 afirmava que “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.”[9]

Há, de fato, um número expressivo de pessoas que não são alcançadas pelo direito penal. Pessoas que não se submetem aos três estados definidos por Ferrajoli: delito, processo e pena[10]. Um número considerável chega somente no primeiro estágio – a prática de conduta proibida –, não sendo submetidas ao juízo e, consequentemente, à punição.

Esse dado – que deve ser evitado – é reforçado por políticas criminais de direito penal máximo. Rogério Greco afirma que “quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra.”[11]

Não obstante a existência da cifra negra, há outra falha no sistema penal que deve ser evitada: a punição de pessoas que não passaram pelos dois estágios antecedentes (delito e processo). A existência de pessoas inocentes que são submetidas a punições sem que tenham cometido delitos é tão repugnante quanto a primeira cifra – na verdade, admitindo-se o estágio inicial de inocência do indivíduo, parece ainda mais abominável esta segunda.

A esta segunda cifra, Luigi Ferrajoli chama de cifra da injustiça, à qual pertencem aqueles que são submetidos ao processo – em algumas vezes aplicando medidas privativas de liberdade no curso do processo – e reconhecidos inocentes por sentença absolutória; os que são absolvidos em revisão criminal, depois de serem perseguidos no curso do processo e sendo a eles aplicada uma punição; e, por fim, os números que permanecerão ocultos resultantes de erros do judiciário não reparados.[12]

Feitas todas essas considerações que introduzem e justificam o conceito de garantismo, impende defini-lo para então ser possível a resposta ao problema proposto neste trabalho.

Luigi Ferrajoli apresenta três significados ao garantismo: modelo normativo de direito, teoria jurídica da validade ou da efetividade e filosofia política.

O modelo normativo de direito é caracterizado pela estrita legalidade, típica de um Estado de direito que, num plano epistemológico é caracterizado num sistema de poder mínimo, no plano político expressa ideia de minimizar a violência e maximizar a liberdade e, por fim, sob um aspecto jurídico, esse modelo normativo de direito é caracterizado como um conjunto de vínculos imposto à função punitiva do Estado.

Como teoria jurídica da validade ou da efetividade, o garantismo mantém separação entre o ser e o dever ser. De um lado tem-se os modelos normativos (relacionados ao garantismo) e de outro lado práticas operacionais (relacionados ao antigarantismo).

Nesse sentido, o garantismo opera como

"doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre as leis vigentes, por causa do duplo ponto de vista que a aproximação metodológica aqui delineada comporta seja na sua aplicação seja na sua explicação: o ponto de vista normativo, ou prescritivo, do direito válido e o ponto de vista fático, ou descritivo, do direito efetivo".[13]

Como filosofia política, o garantismo aproxima-se da teoria iluminista de separação entre direito e moral. Neste ponto, o garantismo “requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade.”[14]

Ocorre que à teoria garantista tem sido atribuído um sentido pejorativo. Discursos inflamados de adeptos ao direito penal máximo apregoam o garantismo como sendo vulgarmente vinculado à “defesa de bandidos” – na verdade, trata-se de uma teoria de defesa dos inocentes. O que se quer, como demonstrado acima, é evitar a punição de inocentes. E, certamente, a culpa pela punição de um inocente é demasiadamente maior do que a não punição de um culpado.

O homem é naturalmente livre e para que o Estado legitimamente mude tal presunção, é necessário que sejam observadas regras previamente determinadas por uma construção racional que prescreva se, quando e por que punir, proibir e julgar.

O que se busca é a legalidade e a racionalidade. Desta forma, pelos fundamentos originários da teoria, tem-se que negar a vinculação ao garantismo é negar a vinculação à própria Constituição, uma vez que os princípios que orientam a intervenção punitiva do Estado estão lá definidos. Contudo, se se partir de uma concepção deturpada da teoria, todos os posicionamentos são possíveis!


Notas e Referências:

[1] FISCHER, Douglas (Org.). Garantismo penal integral. Bahia : JusPodivum, 2010. p 26.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira (trad.). A força normativa da constituição, Rio Grande do Sul : Editora, 1991. p. 21.

[3] FISCHER, Douglas (Org.). Garantismo penal integral. Bahia : JusPodivum, 2010. p 26.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 73.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 74-75.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto de processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed., rev. e ampl. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2014. p. 126.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 83.

[8] LOPES Jr, Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo : Saraiva, 2014. p. 25.

[9] Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas. Ridendo Castigat, 2001. p. 71.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 167.

[11] GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. Rio de Janeiro : Impetus, 2014. p. 15.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 168.

[13] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 684.

[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais. p. 685.


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Reinaldo Denis Viana Barbosa é Advogado criminalista e pós-graduando em Direito Penal na Escola do Ministério Público de Santa Catarina.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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