Não é incomum encontrar processos judiciais em que se pretende do SUS o reembolso ou o ressarcimento por despesas com tratamentos médicos realizados por conta própria.
Ou seja, o cidadão custeia o seu tratamento e depois solicita aos entes públicos a devolução dos valores gastos.
A Lei 8080/90 (art. 19-T) veda ao Sistema Único de Saúde – SUS o pagamento ou reembolso de tratamentos ou medicamentos não autorizados e registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.
Além disso, tem-se entendido que o Estado – SUS – não é segurador universal de todo e qualquer evento danoso ao cidadão. O direito à saúde previsto na Constituição (artigos 6º e 196 a 199) não possui alcance ilimitado, eis que sua incidência pode ser restringida em determinadas situações fáticas, principalmente porque a carta constitucional vigente não confere direitos absolutos aos destinatários do seu texto.
Na I Jornada de Direito à Saúde promovida pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ aprovou-se o enunciado n.º 13, com a seguinte redação: “Nas ações de saúde, que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a, inclusive, identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas. [grifado]”
Vale dizer, o cidadão deve previamente procurar profissional do SUS para avaliar a necessidade do tratamento. A atuação “per saltum” viola o princípio da isonomia, pois o autor do processo judicial estaria, neste caso, a obter preferência não justificada em relação a outros cidadãos, na medida em que apenas aguardaria a indenização/reembolso do Estado.
Importante destacar também que o cenário da judicialização da saúde foi alterado com a edição da Lei 12.401/2011, que criou a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) e passou a estabelecer requisitos para a incorporação de novas tecnologias ao SUS, entre as quais, destacam-se: a) "as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo"; b) "a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível". Tais requisitos estão expressamente previstos no art. 19-Q, §2º, da Lei 8080/90, alterada pela Lei 12.401/11.
Assim, é preciso comprovar que o tratamento ou medicamento que se pretende o reembolso: (a) é o melhor procedimento baseado em evidência científica; (b) é eficaz e eficiente; (c) configura a melhor opção clínica do ponto de vista do custo-benefício relativamente a outros tratamentos.
Não fosse isso, é muito difícil controlar o valor cobrado pelo profissional da área médica contratado pela parte autora do processo judicial. Com efeito, geralmente inexiste a indicação do custo médio do procedimento cuja indenização é pretendida. No mínimo, deveria haver a indicação de três orçamentos para permitir o controle de eficiência do gasto público (já que realizou o procedimento com o fim de cobrar posteriormente do SUS ou do plano de saúde). Ou seja, é difícil existir elementos a permitir o controle de legalidade/eficiência/custo benefício da indicação apontado pelo médico assistente da parte autora.
Em recente decisão, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4 entendeu que não é possível condenar a União, o Estado e/ou o Município ao reembolso dos valores gastos pelo cidadão em tratamento particular. Dois foram os principais fundamentos: “o ressarcimento das despesas médicas realizadas em hospital particular pressupõe a negativa de tratamento na rede pública de saúde ou fato excepcional que justifique o imediato tratamento em estabelecimento privado” e “não se mostra justificável deslocar os parcos recursos da saúde, em virtual risco de direitos sociais de outros tantos, apenas para satisfazer pretensão que, em última análise, tutelará o patrimônio da parte autora”[1].
No mesmo sentido é a posição do Tribunal Regional Federal da 3ª Região – TRF3, que negou o reembolso de valores com base no seguinte entendimento: “Em que pese todo o sofrimento do autor em decorrência da doença (neoplasia maligna da próstata), não há como lhe dar razão, isto porque o SUS não se recusou ao fornecimento do tratamento pretendido, mas sim ao reembolso das despesas que alega ter suportado. Note-se que a intenção do autor não guarda relação com o direito à saúde (fornecimento de tratamento), previsto no artigo 196 da Constituição Federal, e sim com questões de caráter patrimonial” e “não cabe ao Poder Público a imposição de reembolso por tratamento particular, mesmo que não oferecido a tempo e modo pelo SUS, uma vez que o direito à saúde comporta limites, insertos no próprio texto constitucional”[2].
Como se observa, o pedido de reembolso ao SUS por despesas já realizadas em tratamento médico particular não envolve o direito à saúde, mas uma questão patrimonial de natureza individual e que não se compatibiliza, em princípio, com as normas previstas nos artigos 6º, 196 e seguintes da Constituição da República Federativa do Brasil.
Notas e Referências:
[1] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. TRF4 nega reembolso a paciente que realizou cirurgia oferecida pelo SUS em hospital particular. Acesso em 11 dezembro de 2016. Disponível em http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=12506
[2] APELAÇÃO. ADMINISTRATIVO. NEOPLASIA MALIGNA. RESSARCIMENTO PELO PODER PÚBLICO DE TRATAMENTO DE BRAQUITERAPIA COM RECURSOS PRÓPRIOS. INDEVIDO. ARTIGO 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. APELAÇÃO E AGRAVO RETIDO DESPROVIDOS. 1. A questão trazida aos autos refere-se à possibilidade de o Poder Público ser condenado a ressarcir ao autor as despesas com o tratamento particular de braquiterapia. 2. A Constituição Federal confere à saúde o caráter de direito fundamental, atribuindo ao Poder Público a obrigação de promover políticas públicas específicas, nos termos do artigo 196. 3. Como complemento, o texto constitucional instituiu o Sistema Único de Saúde, em seu artigo 198, concretizando assim o compromisso pleno e eficaz do Estado com a promoção da saúde, em todos os seus aspectos, mediante a garantia de acesso a hospitais, tecnologias, tratamentos, equipamentos, terapias, e medicamentos, e tudo o que for necessário à tutela desse direito fundamental. 5. Em que pese todo o sofrimento do autor em decorrência da doença (neoplasia maligna da próstata), não há como lhe dar razão, isto porque o SUS não se recusou ao fornecimento do tratamento pretendido, mas sim ao reembolso das despesas que alega ter suportado. Note-se que a intenção do autor não guarda relação com o direito à saúde (fornecimento de tratamento), previsto no artigo 196 da Constituição Federal, e sim com questões de caráter patrimonial. 6. Ademais, a urgência do tratamento de braquiterapia não fundamenta o pedido de ressarcimento em face do Poder Público, pois há uma lista de pessoas nas mesmas condições em que o autor aguardando atendimento pelo SUS. 7. Cumpre asseverar que, em observância ao princípio da supremacia do interesse público, a Administração Pública tem por objetivo a proteção dos interesses da coletividade em detrimento de interesses de uma minoria, além de pautar-se pelo princípio da legalidade, que, em resumo, limita sua atuação àquilo que é permitido por lei, e de acordo com os meios e formas nela previstos. 8. Não cabe ao Poder Público a imposição de reembolso por tratamento particular, mesmo que não oferecido a tempo e modo pelo SUS, uma vez que o direito à saúde comporta limites, insertos no próprio texto constitucional. 9. Apelação e agravo retido desprovidos. [grifado] (TRF3, APELAÇÃO CÍVEL 1684104, Relator DESEMBARGADOR FEDERAL NELTON DOS SANTOS, TERCEIRA TURMA, e-DJF3 30/09/2016).
Há também a seguinte decisão:
APELAÇÃO. ADMINISTRATIVO. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. RESSARCIMENTO PELO PODER PÚBLICO DE AQUISIÇÃO DE PRÓTESE ORTOPÉDICA COM RECURSOS PRÓPRIOS. INDEVIDO. ARTIGO 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. A questão trazida aos autos refere-se à possibilidade de a União ser condenada a ressarcir ao autor as despesas com a aquisição de prótese ortopédica. 2. A Constituição Federal confere à saúde o caráter de direito fundamental, atribuindo ao Poder Público a obrigação de promover políticas públicas específicas, nos termos do artigo 196. 3. Como complemento, o texto constitucional instituiu o Sistema Único de Saúde, em seu artigo 198, concretizando assim o compromisso pleno e eficaz do Estado com a promoção da saúde, em todos os seus aspectos, mediante a garantia de acesso a hospitais, tecnologias, tratamentos, equipamentos, terapias, e medicamentos, e tudo o que for necessário à tutela desse direito fundamental. 4. O autor foi vítima de um acidente automobilístico do qual resultou a amputação de sua perna esquerda, e adquiriu parceladamente uma prótese ortopédica com recursos próprios, no valor total de R$ 15.000,00 (quinze mil reais). 5. Em que pese todo o sofrimento do autor em decorrência da amputação de um membro e do intuito de retornar à rotina com a maior brevidade, não há como lhe dar razão, isto porque o SUS não se recusou ao fornecimento da prótese, mas sim ao reembolso dos gastos com sua aquisição. Note-se que a intenção do autor não guarda relação com o direito à saúde (prótese), previsto no artigo 196 da Constituição Federal, e sim com questões de caráter patrimonial. 6. A urgência na aquisição da prótese não fundamenta o pedido de ressarcimento em face da União, tendo em vista a existência de outros meios aptos à reinserção do autor à vida social. Ademais, caso o autor houvesse requisitado a prótese ortopédica ao SUS antes de adquiri-la com recursos próprios, faria jus ao seu recebimento de forma gratuita, como devidamente esclarecido pela União. 7. Cumpre asseverar que, em observância ao princípio da supremacia do interesse público, a Administração Pública tem por objetivo a proteção dos interesses da coletividade em detrimento de interesses de uma minoria, além de pautar-se pelo princípio da legalidade, que, em resumo, limita sua atuação àquilo que é permitido por lei, e de acordo com os meios e formas nela previstos. 8. Não cabe ao Poder Público a imposição de reembolso por prótese adquirida de forma particular, mesmo que não oferecida a tempo e modo pelo SUS, uma vez que o direito à saúde comporta limites, insertos no próprio texto constitucional. 9. Por fim, não é possível ao autor alegar desconhecimento da lei para justificar sua conduta, haja vista que, não sabendo como proceder em relação à aquisição gratuita da prótese, deveria ter se cercado da cautela necessária e buscado informações junto ao Poder Público. 10. Apelação desprovida. [grifado] (TRF3, APELAÇÃO CÍVEL 1537710, Relator DESEMBARGADOR FEDERAL NELTON DOS SANTOS, TERCEIRA TURMA, e-DJF3 13/05/2016)
Imagem Ilustrativa do Post: IOM Ebola treatment unit in Grand Cape Mount, Liberia // Foto de: UNMEER // Sem alterações
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