É importante o modo como os juízes decidem os casos? - Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza

22/11/2017

Dworkin, em sua obra O Império do Direito, no capítulo intitulado “O que é o Direito?”, afirma “é importante o modo como os juízes decidem os casos”. No Brasil também aumenta a preocupação no que diz respeito ao modo como os juízes decidem os casos, sobretudo o modo como os Ministros do STF decidem os casos e, especialmente, aqueles com maior dissenso político e moral por parte da comunidade.

O tema, além disso, ganha relevância em face do modelo adotado no novo Código de Processo Civil que, em diversos artigos, estabelece mecanismos de precedentes ou instrumentos que trazem a ideia de uniformização de jurisprudência, buscando garantir uma maior coerência entre as decisões dos Tribunais inferiores em relação aos precedentes dos Tribunais superiores, bem como uma maior coerência entre as decisões do mesmo tribunal, como estabelecem os artigos 311, II; 489; 496, §4; 926; 927; 988; 1042, aproximando o processo civil ao sistema do common law.

Os precedentes[1], que eram reconhecidos até pouco tempo atrás como fontes secundárias do Direito, passam a ter importância para a compreensão do que é o Direito e isso ganha ainda mais relevância quando enfrentamos o significado de direitos fundamentais abstratos contidos no texto constitucional. Os casos difíceis, aparentemente ainda não decididos pelos Tribunais e igualmente sem soluções claras a respeito de seus limites e conteúdos são justamente aqueles sobre os quais parece haver maior liberdade para os julgadores, como se houvesse uma lacuna no Direito que lhes permitisse então criar o direito no caso concreto.

Tal pensamento depende da resposta à pergunta: “O que é o direito?”. Se entendemos o Direito apenas como normas positivadas em documentos escritos, por certo que nos casos difíceis daríamos uma carta branca aos juízes para que criassem o Direito como se não tivessem qualquer compromisso com o passado.

Entretanto, é justamente o contrário o que se pretende defender no presente ensaio, não um sistema de precedentes casuísticos como se, a cada novo caso difícil, tivéssemos necessariamente um novo caso a analisar, como se o Direito não tivesse ainda respostas para o mesmo. E não estou falando em casos repetitivos. Estou, de fato, questionando o que se está a decidir num determinado caso e se, indo para a questão mais abstrata do caso, de fato esta questão já não foi decidida pelo Tribunal Constitucional e, portanto, se o STF para manter uma coerência, integridade e estabilidade não precisaria, também, manter a coerência em relação aos princípios abstratos que fundamentaram o caso anterior.

Isto é justamente o que estabelece a doutrina ampla do stare decisis, ou de precedentes,  que se fundamenta no fato de que a coerência entre as decisões garante a coerência do sistema na sua totalidade.[2] Ou seja, as máximas do direito criariam uma relação lógica e coerente de sistema [3], buscando-se uma perfeita trama de coerência das coisas, uma série de regras e princípios organizados “do mais amplo e mais genérico, por muitos graus de descida, como num pedigree ou genealogia, ao mais especial e particular”, com todas as partes da estrutura “combinadas como se possuíssem uma consanguinidade ou concordância natural””.

Proposições jurídicas devem ser vistas como parte de uma estrutura maior de princípios jurídicos abstratos, e proposições específicas e abstratas que sejam similares devem ser organizadas da mais ampla e geral à mais especial e particular com todas as partes combinadas entre si como se houvesse uma espécie de concordância natural entre elas. A coerência deve, desse modo, ser vista não apenas em cada regra do direito, mas em todo seu sistema.

Destarte, como exemplo, poderíamos enfrentar a ADI 4966, ajuizada pelo Partido Social Cristão (PSC) para questionar a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que obriga cartórios de todo o País a habilitar, celebrar casamento civil ou converter união estável de pessoas do mesmo sexo em casamento. O principal argumento para declarar a inconstitucionalidade da Resolução 175, de 14 de maio de 2013, é de que o CNJ teria invadido competência constitucional do Poder Legislativo para discutir e votar a matéria. De plano, deveria a Corte enfrentar o que de fato se está decidindo no “novo” caso.

Trata-se apenas de invasão de competências e, portanto, caso de inconstitucionalidade formal? Houve de fato criação do direito ao casamento homoafetivo via Resolução do CNJ, que não teria legitimidade e competência para legislar a respeito? Ou, diversamente, o CNJ apenas regulamentou as atividades do cartório no âmbito de sua competência e regulamentou aquilo que estava implícito ou explícito na ratio decidendi da decisão da ADPF 132 e da ADI 4.277? Qual sua ratio decidendi? Quais os princípios mais abstratos que lhe serviram de fundamento e que, portanto, podem fundamentar casos futuros?

Sem enfrentar detalhadamente o inteiro teor dos votos dos Ministros, que compõem a decisão do STF a respeito, e o problema da ausência de uma única decisão da Corte, causada, principalmente pelo modelo de deliberação pública e decisão seriatim adotada pelo STF que dificulta tanto que a Corte chegue a uma única decisão e, consequentemente, a uma única ratio, mas também dificulta a aplicação de seus precedentes pelas Cortes inferiores, ainda assim, é possível facilmente apresentar os princípios mais abstratos, utilizados para fundamentar referida decisão.

Do voto do Ministro Ayres Britto, relator do Caso, é possível, já na ementa destacar a proteção dos princípios da igualdade e da liberdade. Defende o Ministro a liberdade para dispor da própria sexualidade como direito fundamental que decorre da autonomia de vontade, direito à intimidade e à vida privada. Do mesmo modo, a igualdade foi reconhecida ao se entender que “o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fato de desigualação jurídica”, como também reconhece a “isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família”, também reconhece que a “Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo”.

Os votos divergentes em relação à ratio foram minoritários e destacados, inclusive na ementa. Os Ministros Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso divergiram para firmar o entendimento de que não seria possível enquadrar a união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas, reconhecendo uma nova forma de entidade familiar.

Entretanto, como esta divergência foi minoritária, defendo que o STF já garantiu igualdade e liberdade aos casais homoafetivos para constituírem igual família a ser protegida pela Constituição e, saindo agora do campo abstrato para o caso concreto, a consequência lógica é reconhecer igual e livre direito ao casamento heteroafetivo. Os casais homoafetivos devem ser livres para escolher se a sua família deve ou não ser constituída pelo casamento ou não, isto é decorrência lógica do reconhecimento de seus direitos à liberdade e à igualdade.

Portanto, para manter a coerência com os fundamentos mais abstratos do que o próprio STF já decidiu, o caso em tela pode ser enfrentado não como criação de direito pela Resolução do Conselho Nacional de Justiça, mas apenas regulamentação do direito à igualdade e liberdade já reconhecido pelo próprio STF quando do julgamento da ADPF 132[4] e ADI 4277.

Desta forma, não se trata de coerência apenas com a decisão judicial precedente, mas coerência com os princípios que a fundamentaram[5]. Ou seja, em que pese não ser necessária uma adesão estrita ao passado, a coerência com o conjunto de princípios que representa a moralidade política da comunidade implicará que todos sejam tratados com igual consideração e respeito nas decisões.

 

[1] Para aprofundar o tema, consultar: BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança Jurídica: Fundamentos e Possibilidades para a Jurisdição Constitucional Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014. 

[2] “Given that (or so far as) we are here dealing with societies characterized by an adherence to the ideology and the practice of “rational” legal order in the sense proposed by Max Weber (1967), we can indeed say that coherence in interpretation of particular provisions over many cases, and interpretative practices aimed at securing an overall coherence of the legal system, are absolutely fundamental to them. Coherence in both senses is of the very essence of rational legal order, just as it is definitive for the idea of a rational legal discourse. It is not surprising that, in all the systems studied, the value of coherence of law is one key element in the locally understood rationale for the practice of treating precedent as binding in whatever is the particular sense or senses locally ascribed to its bindingness (or, more generally, its normative force). This is understandable as an independent rationale for precedent, rooted in the very character of the rational argumentation essential for rational legal order” (BANKOWSKI, 1997, p. 487).

[3] WALTERS (2008,p. 364-365). Nesse sentido: “The principles within particular departments of law, said Dodderidge, should demonstrate “coherency”(“local” coherence Dworkin would say); but Ramist method, if followed to its end, would leave not Just “every title of the Law” but “the whole body thereof”in “a perfect shape”. Common law method should, He Said, permit one to see “a perfect plot of the coherence of things”, a series of rules and principles arranged “from the most ample and highest Generall, by many degrees of descent, as in a Pedigree or Genealogie, to the lowest special and particular”, with all of the structure’s parts “combined together as it were in a consanguinity of blood and concordancied of nature”. “

[4] Neste sentido confira-se Voto do Ministro Carlos Ayres Britto, Relator das Ações. STF – ADPF 132– Rel. Ministro Ayres Britto – DJ 14.10.2011. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em 14.11.2017.

[5] “Coerência aqui significa, por certo, coerência na aplicação do princípio que se tomou por base, e não apenas na aplicação da regra específica anunciada em nome desse princípio”. DWORKIN, Ronald. 2005. p. 139

Referências bibliográficas

BANKOWSKI, Zenon; et al. Rationales for Precedent. In: Mac CORMICK, Neil; SUMMER, Robert S. (Ed.). Interpreting Precedents: a comparative study. Ashgate: Hants, 1997.

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança Jurídica: Fundamentos e Possibilidades para a Jurisdição Constitucional Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_____. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WALTERS, Mark D. Legal Humanism and Law-as-integrity. Cambridge Law Journal 67 (2) July 2008.

 

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