É DEVER DO ESTADO FORNECER A DOCUMENTAÇÃO NECESSÁRIA À IMPLEMENTAÇÃO DA DECISÃO DO HC COLETIVO 143.641 DO STF    

10/11/2018

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus Coletivo “para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2o do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências”, sendo tal ordem estendida “a todas as demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional”.

Em 24 de outubro de 2018, diante das grandes dificuldades relatadas pelas entidades com atuação na questão carcerária feminina para a plena implementação da ordem concedida, o Ministro Ricardo Lewandowski determinou “a abertura do prazo de 15 dias para manifestação de todos os interessados, incluindo a Defensoria Pública da União, as Defensorias Públicas Estaduais e os demais amici curiae, sobre medidas apropriadas para efetivação da ordem concedida neste habeas corpus coletivo”.

Na esteira deste debate, o presente artigo buscará demonstrar que é o próprio Estado o responsável por acostar aos autos a documentação idônea a demonstrar a qualidade de mãe ou gestante (art. 318, parágrafo único), e que este pedido deve ser feito expressamente ao STF pelo impetrante e pelos intervenientes no âmbito do Habeas Corpus coletivo 143.64, que pode se dar com base em dois argumentos: (i) a existência de previsão legal expressa no Código de Processo Penal, interpretado a partir da Constituição; e (ii) a partir da aplicação supletiva do Código de Processo Civil, a determinação da distribuição dinâmica da prova em razão da impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprir o encargo.

Inicialmente, não obstante a demonstração da gestação, da condição de mãe de filho menor de 12 anos ou com deficiência do filho seja necessária à analise do pedido de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, que deve se fazer por provas idôneas, tais provas exigíveis pelo juiz devem respeitar a dignidade e integridade da mãe e do filho, bem assim, não se converterem em provas diabólicas ou diligências impossíveis de serem realizadas pela pessoa encarcerada.

Primeiramente, embora o CPP não imponha claramente à autoridade policial e à gestão prisional o dever de colher os documentos necessários à análise do pleito de substituição, é essencial apresentá-los ao juízo o quanto antes, especialmente antes da audiência de custódia, e por esta razão, o STF deve fixar de forma expressa esse dever, indicando claramente a quem cabe dele se desincumbir.

Verifica-se que é múnus atribuído à autoridade policial informar no auto de prisão em flagrante se a pessoa presa possui filhos. Determinação esta incluída pelo Estatuto da Primeira Infância, a lei  Lei nº 13.257/2016:

Art. 6o  Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

(...)

X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa.  

 

Este comando fora replicado em outras fases do processo:

 

Art. 185. (…) § 10.  Do interrogatório deverá constar a informação sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa

 

Art. 304 (…) § 4o  Da lavratura do auto de prisão em flagrante deverá constar a informação sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa.

 

Por outro lado, é no âmbito dos autos de prisão em flagrante, e em geral dos inquéritos policiais, que a atuação das autoridades policiais é imprescindível para a colheita dos elementos de informações necessários à analise do julgador das situações a ele apresentadas.

 

Art. 13.  Incumbirá ainda à autoridade policial:

I - fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos;

II -  realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público;

 

Perceba-se que a realização de diligências e a colheita de tais elementos informativos, por óbvio, não deve se dar apenas no sentido de fundamentar a representação pela prisão preventiva ou a denúncia manejada pela acusação, ou seja, não deve se dirigir unicamente em relação à materialidade e indício suficiente de autoria para fulcrar a decisão pertinente, mas também para colher as informações idôneas específicas que também possam trazer uma situação jurídica de vantagem para a pessoa custodiada, como o cabimento da substituição de eventual preventiva por domiciliar, por exemplo.

Tanto é verdade, que a edição da lei que trata da primeira infância, e incluiu todas as anteriormente citadas alterações na legislação processual penal, foi impulsionada pelo interesse público. E não poderia ser diferente, pois tais alterações são a concretização dos comandos constitucionais protetores da infância e da adolescência.

Afinal, a atuação da polícia deve se dar em prol dos pilares democráticos e de proteção social, pois a colheita de elementos para sustentar a acusação é de interesse público tanto quanto a colheita das informações que possibilitam que a mulher possa resguardar sua gestação ou permanecer na companhia de seus filhos em casa em razão da aplicação da prisão domiciliar. Especialmente em se tratando de proteção de crianças e adolescentes:

 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.       

 

Em segundo lugar, como acréscimo ao argumento anterior, o Supremo Tribunal Federal não pode fechar os olhos e compreender diante das dificuldades reais de a mulher custodiada apresentar provas contundentes de sua gestação ou condição de mãe, dificuldade esta estendida aos seus representantes judiciais e à própria família, e , ainda, com a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova, a partir de uma interpretação que harmoniza a aplicação do art. 373, § 1º do Código de Processo Civil com o art. 156 do Código de Processo Penal, através do art. 3º deste último, que permite uma  interpretação extensiva e aplicação analógica.

 

No caso concreto analisado no HC coletivo 143.641, o STF deve perceber que a produção de determinadas provas é impossível ou mesmo extremamente difícil - conforme já narrado pelas entidades intervenientes no writ - pela mulher custodiada, que se trata, em razão mesmo da prisão, de pessoa submetida a restrições e vulnerabilidades processuais1:

I. a limitação lógica de locomoção para obter a documentação;

II. dificuldade ou completa ausência de contato com familiares;

III. as próprias famílias submetidas a inúmeras vulnerabilidade (econômicas, geográficas, culturais, sociais, etc).

IV. dificuldade de mobilizar recursos para sua defesa;

V. ausência quase total de contato com o mundo exterior;

VI. ausência de contato com o advogado ou defensor público no momento inicial da prisão, e pelo menos até a audiência de custódia;

VII. Dificuldade de o o advogado ou defensor público obter a documentação perante as instituições públicas ou detentora de cadastros públicos, por ausência de poder de requisição.

 

Como dito, tanto a autoridade policial quanto o Ministério Público tem o poder de requisitar – ordem direta imperativa, cuja legitimidade está consolidada doutrinária e jurisprudencialmente - o fornecimento de informações, enquanto que ao custodiado e seus representantes processuais (advogado particular ou defensor público) cabe tão somente o poder de requerer – portanto sem caráter impositivo – as informações, inclusive junto à autoridade policial, que pode negar sem maiores tumultos:

Art. 14.  O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

 

Assim, o STF, ante a constatação destes obstáculos praticamente intransponíveis para a obtenção célere da documentação, e ante a possibilidade real de as autoridades policiais e administrativas, bem assim o Ministério Público, de obterem estas informações rápida e diretamente, há a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova,como forma de equilibrar as relações jurídicas, a partir da aplicação supletiva da Legislação Processual Civil, por força do art. 3º do Código de Processo Penal que a permite:

 

Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

 

Não obstante se referindo à aplicação subsidiária, cuja distinção nos referimos adiante, o posicionamento unânime da jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, também reconhece a possibilidade de aplicação de normas processuais civis à processualística penal:

 

“Considerada a falta de previsão legal específica, tem-se a incidência do artigo 297 do Código de Processo Civil, com aplicação subsidiária viabilizada pelo artigo 3º do Código de Processo Penal, a revelar o poder geral de cautela, visando evitar a ocorrência de dano irreparável ou insuficiência de providências diversas.” (STF HC MC 151800).

 

“1. Não ofende o princípio da colegialidade a prolação de decisão monocrática pelo Ministro Relator, a teor do disposto no art. 544, § 4º, II, alínea "b", do Código de Processo Civel, c/c art. 3º, do Código de Processo Penal.” (STJ AgRg no AREsp 644505).

 

Faz-se necessário distinguir a aplicação supletiva de normas, que é a hipótese incidente no caso em análise, da aplicação subsidiária. “Será caso de aplicação subsidiária quando 1) houver lacuna, ou seja, ausência de regramento específico; e 2) as normas do Novo CPC se mostrem compatíveis”. A aplicação supletiva tem lugar “quando do disciplinamento incompleto ou deficiente norma processual penal.

Assim, diante do disciplinamento lacônico sobre a distribuição do ônus da prova inserido no art. 156 do Código de Processo Penal, de que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, e partindo do fundamento constitucional de que “aos litigantes e acusados em geral será assegurado o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, conclui-se que a aplicação supletiva das normas insertas no Novo Código de Processo Civil é medida imprescindível à consecução do comando constitucional.

De fato, o Novo CPC, em seu  art. 373, § 1º, prevê não uma distribuição estática do ônus da prova, mas a adoção da denominada teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova ou distribuição flexível, que possibilita ao julgador, diante de situações peculiares, uma melhor distribuição do ônus da prova.

 

Art. 373.  O ônus da prova incumbe:

(...)

§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

 

Diante neste contexto, o Supremo Tribunal Federal deve atribuir a responsabilidade de obtenção da documentação não à pessoa presa e submetida a estas inúmeras dificuldades, mas ao próprio Estado, que é, na maioria esmagadora das vezes, o produtor, o detentor e o guardião dos documentos correspondentes a estas informações (cartórios de registro civil, escolas, cadastro do Bolsa Família, etc), e deve fazê-lo no primeiro momento possível, qual seja, no momento da prisão da gestante ou da mãe, quanto esta informa a condição à autoridade policial, que deve de pronto se desincumbir de seu dever de fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos, ou, em momentos posteriores, à gestão penitenciária, ao Ministério Público, especialmente quando discordar do pedido fundado em “ausência de provas”.

Assim, é medida inadiável que o impetrante e os intervenientes requeiram ao STF a determinação às autoridades policiais que procedam imediatamente após a prisão de pessoa que afirme estar grávida ou ser mãe de crianças ou de filhos deficientes, com as diligências necessárias à obtenção da prova idônea desta condição de mãe ou gestante, diligenciando por documentos e informações junto às entidades públicas ou privadas, como forma eficaz de atender à determinação inserida na decisão definitiva do HC 143.641 e lograr suprir falhas estruturais de acesso à Justiça da população presa”.

 

 

Notas e Referências

¹ ROCHA, Jorge Bheron. Citação por edital no processo penal: uma leitura a partir das disposições do CPC/15. In Jota. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/citacao-por-edital-no-processo-penal-21062018#sdfootnote3sym>. Acesso em 05.11.2018.

² ROCHA, Jorge Bheron. Sistemas Processuais: A questão da aplicação supletiva e subsidiária do art. 15 do Novo CPC. In O Novo Código de Processo Civil e a perspectiva da Defensoria Pública. Roger, Franklyn (org) Juspodivm: Salvador. 2017.

 

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