Chamavam-no de Lira, o que não derivava da denominação que sua mãe escolhera, Armindo, tampouco da profissão de pintor, que aprendeu pintando. Também ele não sabia explicar por que lhe haviam dado esse apelido, mas adotou-o bem. Aliás, gostava dele, e o nome oficial, só o confessava com um sorriso irônico nos lábios, e se lhe o perguntassem.
Era cabo-eleitoral de um vereador amigo meu. Tinha prestígio com uma turma de usos e costumes pouco estimáveis. Morava no Varzão, bairro não identificado nos mapas da prefeitura, depreciativamente chamado de Varzão Cagado. Também acho chulo, mas era dessa maneira que se referiam a ele os detratores do lugar, ou algum residente desavisado.
Acompanhado do seu político, foi me consultar. Fora abordado pela viatura e reagiu: cidadão pacato e do seu tipo não tinha que sofrer revista. Levou um tapa. Queria saber se podia processar o policial. Tendo prova do ocorrido, podia. Expliquei-lhe que podia processar o policial e outros policiais que, vendo a agressão, nada fizeram, assim como o Estado.
Tinha prova e estava injuriado, mas isso era tudo: desejava estar ciente dos seus direitos; não queria processo. Acabava sobrando para o mais fraco, e o mais fraco era ele. Só queria ter certeza de que estava em suas mãos levar ou não o covarde às barras do Tribunal. Questão de dignidade, não de vingança. Um homem dorme com orgulho, não com raiva.
Agradecido, convidou-me para um churrasco. De costela, rim e coração. De bebida, cachaça, que bebeu pouca, em respeito à visita. Boa conversa, ficamos bons amigos. Livrei o Lira muitas vezes da cadeia. A última, por questão de briga feia com a mulher. Ela fumara umas pedras; ele, já tendo bebido, nem sabia o tanto que cheirou. Foi o que o dinheiro deu.
Ora sim, ora não, viviam juntos, mas era condenado a pagar pensão. Atraso, discussão, escândalo. Vias de fato. As agressões eram levíssimas e vinham de parte a parte, mas foi difícil a negociação. Era uma delegada, tomou as dores, e não soltava o “elemento” sem o pagamento da pensão. Sem isso, seria lavrado o flagrante, e o juiz que decidisse.
Avalizei as parcelas; a primeira, eu paguei. O Lira era esperto e contava histórias. Também era bêbado e drogado. Morreu com 40 anos, tuberculoso e com cirrose, em poucos dias de hospital. Seus amigos telefonaram, queriam uma coroa de flores. Estava em viagem, mas autorizei a despesa e ditei os escritos: “A turma gosta de ti”. Era o que a turma queria dizer.
A Lu era cunhada do Lira. Conheci-a com 12 anos, jogando vôlei com uma bola velha e feia, no meio da rua. Dei-lhe uma nova e cheia de cores. Um dia a vi mulher bonita de 17. Eu estava no bar do Varzão, conversava e compreendia o mundo pelo outro lado. Ela passou. Chamada, atendeu gentil. Olhou curiosa, ficou calada, foi-se acanhada na primeira ocasião.
Agora, sem mais, me apareceu. Atendi à porta e titubeei. Mas era ela. Queria orientação, alguma conversa sobre estudar, sobre trabalhar, sobre sua situação. Não, eu não tinha que lhe arranjar emprego, só queria trocar ideias com alguém que ajudasse a esclarecer. O escolhido era eu. Conversamos. Gostei e ela também gostou. Nos demos bem.
São coisas que não entendo. De onde virá a condição de sensibilidade e de gênio que alcança tão poucas pessoas? A Lu do Varzão, cunhada do Lira, do meio da rua, frentista em posto, ajudante de pedreiro, aos poucos se foi mostrando, trazendo o que escrevia. Escrevia com jeito. Frequentava livros, via filmes, tinha intimidade com muito do que importa.
Não lhe atraíam crenças em religião. Dormia tarde, para ler em paz. Cursaria literatura. Gostava de homens e de mulheres. Falava delicado e bem. Então, do nada, não voltou mais. Indaguei. Fi-la saber que indagava. Soube que se fora à música. Negou-me retorno aos constrangidos recados de querer vê-la. Mesmo assim vou procurá-la. Vale a pena ir atrás.
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