Coluna Por Supuesto
Esta semana partiu Enrique Dussel. Nos deixa sua Filosofia da Libertação, que como ele sustentava, é uma “filosofia pós-moderna, popular, feminista, de juventude, dos oprimidos, dos condenados da terra, condenados do mundo e da história”. Uma filosofia para a liberdade. Aquela liberdade que para o filósofo nunca poderia ser utopia distante, mas realidade próxima.
Dussel nos convidou durante toda sua vida e a través da sua obra a pensar criticamente. Tal é o primeiro passo para um ethos de libertação. Um pensar que foge e ao mesmo tempo repele a “filosofia da dominação”, aquela que é frequentemente estudada pensador a pensador, um a um, e precisamente por isso, pela coerência e sistematicidade metodológica, quando se estuda com calma permite visualizar, entender e logo explicar que as razões que fundamentam o mundo se encontram na ideia prévia de que somos “homens entre homens”.
Desde logo, o que diferenciará um grupo de filósofos dos outros é quem defende e quem rejeita que alguns homens são naturalmente sábios, políticos ou escolhidos pela divindade e outros são naturalmente bárbaros, incapacitados ou servos. Quem se resigna e quem se insurge em uma realidade onde a mulher é Eva eterna, submetida ao ius doninativum do varão. E quem termina aplaudindo ou se rebelando com a sentença triste e manipuladora de que: “ao final, Deus quis as coisas assim!”.
Por essa via Dussel chega à “transformação” como sentido da atividade filosófica, alertando sobre a necessidade de pensar dialeticamente o todo, mostrando a ontologia como a ideologia das ideologias, desmascarando os funcionalismos, anunciando a filosofia construída desde a opressão, superando as críticas do hegelianismo de esquerda, que somente vislumbrou uma parte dos fenômenos ligados a essa opressão.
E nesse legado, Dussel nos ajuda a enxergar e explorar os espaços no quais se concentram as batalhas. É nos espaços periféricos, em seus tempos criativos, que nasce a filosofia. A filosofia da dominação viu ao homem como entidade natural, mas esqueceu de olhar a relação homem-homem no espaço, com profundo conteúdo crítico. A filosofia pré-socrática não foi feita para não dizer, mas tampouco para dizer algo, foi resumida para reconhecer e de imediato admitir que “o escravo é naturalmente um escravo”. Do resto, até Marx, talvez não tenhamos nada que outorgue sentido a nos preocupar pelas primeiras causas de qualquer fenômeno, seja ele da natureza, do espírito ou da sociedade.
A universalidade do seu pensamento parece-nos terá a rara virtude hoje em dia de permanecer sempre contemporâneo, porque se conecta com os espaços geopolíticos e os tempos da violência e da reedificação. Como, onde, para que fazer filosofia? Não é a mesma coisa nascer no Polo Norte, em Chiapas ou em Nova Iorque, diz com clareza. E para ele a filosofia surge analiticamente, dentro de um marco político e dialético positivo que deve abrir o largo mundo da realidade das nações, das classes e das pessoas, em tempos e espaços.
Não deve haver outra saída para entender as complexidades das épocas, porque se observamos pelo retrovisor da história, antes do ergo cogito existe o ergo conquisto, o eu escravizo, o eu venço. Os três últimos se converteram no fundamento prático do primeiro, que domina e subjuga cultural, política e economicamente o homem da periferia. É este homem que precisa se libertar, porque na filosofia do centro o discurso nada lhe esclarece. Pelo contrário, o discurso hegemónico lhe apresenta uma realidade única e uma possibilidade exclusiva. Nele, o ser humano periférico não pensa, é considerado o nada, o sem sentido, o bárbaro, o não-ser. Pronto para ser explotado, reduzido: é beduíno, africano, caribenho, latino-americano, ameríndio, negro, e é inculto, preguiçoso e perigoso.
O eu conquisto dominou América; o eu escravizo a África. O eu venço justificou as guerras na Índia e na China, em Coreia e Vietnam. É a partir destes eu que aparece o pensamento cartesiano de eu cogito. Na verdade, um Homo homini lupes, travestido da inocência do eu cogito. Esse eu cogito que passa por Spinoza, por Kant e Hegel introduzindo, novamente e em continuidade histórica, um saber absoluto e totalizador. No centro de tudo, a representação de que há um único entendimento, que determina o horizonte ontológico, e que dá sentido às razões da dominação.
Por isso Dussel afirma, consciente de que na coerência da sua exposição não cabem ecleticismos:
“O que é Nietzche senão uma apologia do homem conquistador e guerreiro? O que é a fenomenologia e o pensamento existencial senão a descrição de um eu e de um Dasein a partir do qual se abre um mundo, o próprio sempre? O que são todas as escolas críticas ou mesmo as que se lançam à utopia senão a afirmação do mesmo centro como mera possibilidade futura do ‘mesmo’? O que é o estruturalismo senão a afirmação da totalidade, sem solução política económica de real libertação?”
Para o aprendiz da filosofia do Direito, Dussel impacta pela sua autenticidade e verticalidade. Em seu terreno categorial, os homens da periferia foram imolados ao Deus mercantilista, ao Deus das finanças e hoje ao Deus das multinacionais. Essa imolação foi acompanhada da reprodução de uma filosofia para a colonização, cultivada na periferia hispânica em México, Lima, Bogotá e Buenos Aires, o que fez aparecer ao ser humano periférico um seguidor fervoroso de quanta teoria surgisse na Europa.
Tardou-se um pouco por estas bandas para se construir um pensamento que embora não revolucionário fosse pelo menos emancipador. Foi nos tempos em que corajosos colonos se rebelaram e se tornaram independentes da Inglaterra e logo que filhos hispânico-lusitanos acreditaram de boa fé na liberdade, ainda sem enxergar que para Europa emancipar tinha menos custo que manter as condições da subserviência.
A seguir no século XIX e sob hegemonia inglesa, em Oxford e Cambridge o ego cogito foi explicitado e desenhado para se disseminar no mundo periférico e para que os discípulos reproduzissem o imaginário – tão real e concreto – de que o ser periférico não filosofa, ao final, não tem tempo para isso, é dominado, impotente e castrado.
De fato, nada pior que um filósofo colonizado, que desde a periferia se preocupa com o centro, e não com aquilo que acontece ao seu redor. Que renuncia a encontrar as razões das suas misérias. Lumumba, Ghandi ou Nasser, diz Dussel, expressaram um pensamento libertário, mas ainda não uma filosofia para a libertação. Com Fanon já houve um avance importante contra o colonialismo. Porém, no século XX o domínio dos impérios não foi apenas cada vez mais consolidado em termos políticos ou económicos, senão que logo passa também pelo controle dos desejos. Os meios de comunicação foram expandidos reproduzindo mais que uma filosofia uma ideologia do centro que impactará novas e velhas gerações da periferia. A tarefa aumentou em tamanho e dificuldade. Os direitos ficaram cada vez mais opacos, mais difusos e confusos e brigar por eles cada vez uma tarefa mais ingrata e difícil.
Perante todo este quadro exposto generosamente por Dussel, o caminho é uma filosofia de aproximação, de práxis, encurtadora de distâncias porque se trata de uma filosofia construída com “o outro e ao lado do outro”. Portanto, uma cercania de temporalidade não abstrata, senão concretizável e perceptível no espaço de convivência. Como se vê, embora a dureza, nada há de desumano em Dussel, pelo contrário, proclama uma filosofia construída entre seres humanos que se reconhecem como iguais e historicamente submetidos dentro dessa proximidade, que é a raiz da práxis e o começo do entendimento sobre a responsabilidade com relação ao outro.
Esta aproximação, entretanto, se analisa dentro de uma estrutura política funcional, um sistema de sistemas, uma totalidade política cujo povo sendo dominado ou oprimido em realidades como a latino-americana constitui uma parte disfuncional. E por isso povo não é quem faz parte da classe dominante mas o oprimido, que tem a possibilidade sempre de poder apresentar uma alternativa real e nova para a humanidade futura.
No legado valioso de Dussel, a filosofia se justifica pela sua clarividência porque é ali onde reside sua operatividade e seu realismo. E este realismo é o da práxis. Certamente, há muito a ler e aprender do pensamento e reflexões de Dussel. Mas essencialmente, há muito a fazer dentro de uma práxis que não pode ser outra senão para a transformação e a libertação. Por supuesto!
Imagem Ilustrativa do Post: Black filter // Foto de: Osvaldo Gago // Sem alterações
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