O Brasil se faz listar entre os países mais violentos do mundo. No diário urbano, nas lonjuras rurais, na vida doméstica, mesmo nos locais de diversão, matamos como se mata em uma guerra civil.
Nós despontamos no número de assassinatos de mulheres. Às mulheres sempre se mataram nesse País. No tempo do patriarcado, pela vontade do patriarca, depois por honra, por amor, por ciúmes de paixão.
A condição de mulher (como a de homem, com as suas diferenças relativas) na sociedade erigida sob a vontade dos homens é uma coisa complexa. A mulher, ideologicamente enganada, conspira contra ela mesma.
Aqui, ideologia como Marx a entendia: a totalidade da consciência social é a dos interesses dos homens, e as mulheres, com desvantagem na relação existente, legitimam e reproduzem o sistema de dominação.
Um exemplo: o ritual religioso de casamento. O que a maioria das mulheres acha “lindo” é a triste estilização do sistema semita de entrega de uma filha pelo chefe de um clã para um homem de outro clã.
Um homem toma a filha e, diante de testemunhas, entrega-a a outro homem, que a assume e se declara com certas obrigações. Se o pai se ausenta, outro homem o representa, jamais a mãe.
A mulher não sabe, mas seu vestido longo é a roupa semita (hoje árabe), seu véu é a burca, seu branco é o do algodão, não o da pureza virginal, seus padrinhos são os negociantes do acordo de clãs.
Mas isso é passado, dirão alguns. Agora é um momento de selar felicidade e festejar com a família. Sim, é, e sempre foi. A expectativa sempre foi de felicidade, e o momento, de festa. Mas a direção foi e é dos homens.
Se afirmações como essas constarem em provas do Enem, serão havidas por doutrinação ideológica, aqui no sentido de marxismo cultural, ou de “fazer a cabeça”. Eu concordaria. E sou a favor de que assim seja.
Que ocorre? Bem, os grupos reacionários querem silêncio sobre valores sociais que os beneficiam. Sobretudo querem silêncio sobre as formas vigentes de composição familiar, em que há hierarquia com proeminência dos homens.
Por que querem que assim seja? Porque a estruturação dos liames domésticos advém de comandos ideológicos (aqui, marxismo cultural) bíblicos milenares nos quais os reacionários acreditam e os quais praticam.
Seja: não reagem contra Simone de Beauvoir na prova do Enem por mal, mas por bem. O bem (ideologicamente compreendido) deles. Não é que sejam contra outros costumes, mas porque são favoráveis aos costumes vigentes.
Quando Simone diz que uma mulher não nasce mulher, mas se forma mulher devido aos valores que lhe são incutidos, ensina que mulher é produção histórica, e não a auxiliar obediente que a divindade fabricou para os homens.
A gritaria contra o conteúdo da prova foi forte, a causa é importante, mas seus elementos são simples: para um reacionário, os valores da família são sagrados, o papel da mulher está definido. Ponto.
Não se encontram políticos conservadores (no sentido de Edmund Burke) bradando contra a doutrinação havida. O alarido é das bancadas religiosas (salvacionistas), da mídia religiosa; da mentalidade religiosa, enfim.
Claro, qualquer prova, na escolha de suas questões, está doutrinando, ao fazer refletir sobre certos assuntos e não outros. Mas isso é ótimo. Só um alienado poderia acreditar na escolha neutra de um tema neutro.
Esse Enem doutrinou sobre violência contra mulheres. Espero que outros doutrinem sobre distribuição de renda, sobre violência social, sobre corrupção, sobre política, sobre tantos temas silenciados, mas que são essenciais.
Imagem Ilustrativa do Post: Woman // Foto de: Blondinrikard Fröberg // Sem alterações
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