Dolo eventual: vaidade ou coerência e integridade? – Por Jader Marques

06/03/2017

Os repórteres dos veículos de comunicação são alertados para a ocorrência de dois atropelamentos.

Num bairro pobre da periferia de uma capital qualquer, por estar em velocidade inadequada, desatento e falando ao celular, o motorista de um veículo invade a calçada, atropela e mata um trabalhador da construção civil que estava em um ponto de ônibus, aguardando a condução para o trabalho.

No mesmo momento, numa rua importante de um bairro central da mesma capital, por estar em velocidade inadequada, desatento e falando ao celular, o motorista de outro veículo invade a calçada, atropela e mata a jovem filha de um empresário conhecido da cidade, quando ela aguardava a chegada do motorista que a levaria a escola.

As televisões, sites de notícias, rádios, jornais passarão a noticiar apenas a prematura e lamentável perda da jovem filha do ilustre homem de negócios. Um vídeo com as imagens do momento do impacto retirado de câmeras de vigilância será imediatamente disponibilizado pela polícia para os repórteres. A mídia fará a exposição da dor e do sofrimento da família pela absurda perda da frágil menina. Haverá a reconstrução da dinâmica do ocorrido em infográficos e montagens digitais, com a demonstração clara de que o motorista violou várias regras de trânsito. Finalmente, será trazido a público um levantamento completo da vida pregressa do motorista, com todas as multas de trânsito da sua vida, além de outros fatos como brigas de casal, ameaças a vizinhos e outros registros de ocorrências que possam delinear seu perfil de pessoa portadora de traços de uma personalidade antissocial.

A intensidade da movimentação da imprensa e o tipo de cobertura em relação a fatos dessa natureza provocam a incidência da incriminação do acusado pelo tipo de injusto mais gravoso possível. Haverá, portanto, a acusação de homicídio (qualificado) com dolo eventual, o que é indispensável para que o motorista tenha sua prisão preventiva imediatamente decretada para “garantia da ordem pública”, com base no “clamor” gerado pelo crime.

A imprensa faz a opção pela cobertura do caso da menina, porque define a sua pauta a partir de interesses de ordem comercial, editorial, jornalística, enfim, o editor separa a notícia que vende daquela que não tem valor como produto.[1]

Mas e os órgãos responsáveis pela acusação: o que lhes move? Quais interesses fazem com que um delegado de polícia e um promotor de justiça queira a prisão preventiva apenas no caso do atropelamento da menina? Por qual motivo, o motorista do atropelamento do pedreiro aguardará em liberdade o processamento de uma ação penal por crime culposo de trânsito? E o juiz, por qual motivo receberá as duas denúncias por fatos semelhantes, quando contêm acusações incompatíveis?

A partir da diferença ontológica (Heidegger e Gadamer) entre regra e princípio e da noção de integridade (Dworkin), é inadiável a tarefa da criação de uma Teoria da Decisão[2] que afaste essa discricionariedade, admitindo a abertura interpretativa das regras diante de uma correta articulação destas com os princípios (constitucionais), a proporcionar uma situação hermenêutica na qual o ônus pela fundamentação tenha como verdadeiro correlato o direito de cada um a uma resposta constitucionalmente correta/adequada.

Esta perspectiva ainda não foi assimilada pelos penalistas, os quais, em sua grande maioria, continuam pensando que o problema da tipicidade é apenas de ordem sintática/semântica.

Vale recordar que, de acordo com o positivismo exegético ou legalista (da Escola da Exegese Francesa ou da Jurisprudência dos Conceitos na Alemanha, ainda no século XIX), o problema da interpretação era, por assim dizer, de ordem sintática (semântica), isto é, neste primeiro momento, o problema da interpretação seria resolvido pela simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõe o texto sagrado (código). Diante dos problemas enfrentados pela indeterminação do sentido do direito (desgaste do modelo sintático-semântico), surge o positivismo chamado normativo, a partir da TPD de Hans Kelsen, quando, então, o problema da interpretação passa ser mais semântico do que sintático, dentro do claro objetivo de reforçar o método analítico dos conceitualistas frente ao crescimento da Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre. Em síntese, no exegetismo, acreditava-se que incumbia ao juiz, simplesmente, aplicar a lei ao caso; no positivismo normativista, admitindo-se que as regras não cobrem todas as hipóteses de aplicação e que sempre há espaço para o subjetivismo, o problema da interpretação passa a ser resolvido pela discricionariedade.

Os juristas continuam acreditando que a discricionariedade é inevitável. O juiz/intérprete fecha a interpretação (a porosidade da regra) com sua subjetividade.

Esta noção de que em alguns tipos o juiz resolve o acoplamento com facilidade e noutras com dificuldade ou que faz isso sem “juízo de valor” ou com “juízo de valor”, está calcada na pretensão de que seria possível, nos casos de tipicidade fechada, não haver interpretação.[3]

Partindo desse ponto da discussão, tem-se que o homicídio simples (matar alguém) é considerado um tipo penal fechado e dispensaria “juízo de valor”; o crime culposo de homicídio seria considerado um tipo aberto, necessitando do “fechamento” a ser feito pelo juiz.

Este raciocínio merece reflexão e o dolo eventual expõe a crise do direito como crise de interpretação, expondo a falta de uma teoria da decisão que aponte o caminho para a superação da discricionariedade.

No plano doutrinário, há um consenso em torno da enorme dificuldade de delimitação das hipóteses nas quais o crime é doloso (na modalidade do dolo eventual) ou culposo (na modalidade da culpa consciente).[4] O debate gira, basicamente, em torno da questão da aceitação do resultado (teoria da anuência) e da questão da probabilidade de ocorrência do resultado (teoria da probabilidade), destacando-se, porém, a existência de inúmeros critérios para a determinação da ocorrência ou não do dolo eventual.[5]

No plano jurisprudencial, quando se trata de casos ocorridos no trânsito, a questão procura ser resolvida na verificação (objetiva) do binômio: álcool-velocidade.[6]

É mais do que urgente superar a velha noção a respeito de tipos fechados ou abertos (assim como não há casos fáceis ou difíceis para a hermenêutica – Lenio Streck, por todos).

O que se pode constatar, a partir deste rápido olhar sobre a celeuma do dolo eventual, é que mesmo o tipo de homicídio simples, tido como fechado, claro, preciso, passa a ser objeto de uma grande discussão, revelando que não há como evitar a abertura interpretativa das regras.

Como tive a oportunidade de dizer nas linhas finais da minha tese, uma leitura hermenêutica da tipicidade penal compromissada com as premissas do respeito à integridade e coerência do direito (Dworkin), deve provocar uma necessária mudança no modo de ser jurista.

Em outras palavras, no plano da interpretação, importante entender que fere a coerência e a integridade do direito fazer, de forma discricionária, qualquer tipo de diferenciação da responsabilidade das pessoas, pelo cargo ocupado, pela posição diante do caso, pela condição da vítima ou pelos interesses político-institucionais da agência acusadora.

É fundamental repensar o modo como são atualmente formulados o indiciamento policial e a denúncia, diante da absoluta falta de respeito à imperiosa demonstração das razões que levaram a autoridade a fazer tal ou qual interpretação.

Acusar alguém de praticar um crime é um fazer que não pode estar cercado de dúvida ou má-fé e muito menos de vaidade. O acusador deve ter certeza e responsabilidade em relação ao que afirma (para não ser intencionalmente temerário ou dolosamente irresponsável). Pedir a absolvição ao final, não terá o efeito de apagar o dano causado.

E o pedreiro atropelado? Como diz a música de Chico Buarque: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.

Mais não digo.


Notas e Referências:

[1] MEDINA, Cremilda de Araújo. NOTÍCIA – UM PRODUTO A VENDA. São Paulo : Ed. Sumus, 1988.

[2] Naquilo que pode ser caracterizado como uma “resistência filosófica” à crise do direito,  Lenio Streck funda sua Crítica Hermenêutica do Direito ou Nova Crítica do Direito, fazendo uma imbricação entre a filosofia hermenêutica, de Heidegger, e a hermenêutica filosófica, de Gadamer (e, posteriormente, agregando a teoria integrativa de Dworkin), numa proposta bastante erudita de fomentar um pensamento crítico, aberto às transformações filosóficas, para repensar o fenômeno jurídico como um todo.

[3] Para grande parte dos penalistas brasileiros, ainda vigora o pensamento segundo o qual a interpretação se di­vide em gramatical e lógica (ou teleológica, porque se propõe, principalmente, a pesquisa da razão finalística da lei). Na primeira, o intérprete vale-se da letra e sintaxe da norma legal pa­ra deduzir o seu sentido, sendo a considerada a mais simples e a menos subje­tiva das formas de interpretação e, por isto mesmo, deve preceder a qualquer outra, pois parte da presunção que o legislador te­nha sabido traduzir devidamente seu pensamento, até porque, segundo defendem esses autores, trata-se de princípio elementar de hermenêutica que, no texto das leis, nenhuma palavra se deve considerar supérflua, a não ser quando sua desneces­sidade seja evidente. Já a interpretação lógica ou teleológica consiste na indagação da vontade ou intenção realmente objetivada na lei e para cuja revelação é muitas vezes insuficiente a interpretação gramatical, cumprindo ter em mira, antes de tudo, o escopo prático, a razão finalística da lei (ratio legis), que é alcançada ou reconhe­cível pela consideração do interesse ou bem jurídico que a lei visa a tutelar (vida, patrimônio, liberdade, fé pública, etc.), perquirindo-se toda a respectiva disciplina jurídica, a fim de que se possa descobrir e entender com exatidão a voluntas legis. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume I. Tomo I. Rio de Janeiro Forense, 1977. pp. 68-72.

[4] No artigo O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa frustrada, publicado originalmente na Revista dos Tribunais nº 754, volume 461, Alexandre Wunderlich analisa profundamente o tema, mergulhando nesta difícil tarefa de estabelecer a diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente. O artigo também pode ser encontrado em: WUNDERLICH, Alexandre Lima. Crime e Sociedade. Org. Cezar Roberto Bitencourt. Curitiba: Juruá Editora, 1998. pp. 15-42. Sobre a controvérsia na dogmática nacional, ver também: HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume I. Tomo I. Rio de Janeiro Forense, 1977. p. 116; FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense Editora, 1994. p. 173; MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Bookseller, 1997. p. 260; BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 112; COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 75; DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p. 30; FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. p. 205; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro. V. 1 - Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 434; PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 35.

[5] Estudo interessante das correntes pode ser encontrado em: BRASIL, RS. Tribunal de Justiça. Apelação Crime nº 70042122309, Terceira Câmara Criminal. Relator Nereu Giacomolli. Julgamento: 10/11/2011. DJ: 05/12/2011.

[6] Nem assim, a questão deixa de ser controvertida, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos do Habeas Corpus nº 107801,  de relatoria da Min. Cármen Lúcia, relator para acórdão o Min. Luiz Fux, da Primeira Turma, julgamento ocorrido em 06/09/2011, foi afastada a questão da ingestão de bebida alcoólica e do excesso de velocidade, tomados isoladamente, como suficientes para configurar o dolo eventual.


 

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