Dolo eventual e o caráter retórico da legalidade penal – Por Jader Marques

27/03/2017

Rosa Maria Cardoso da Cunha inicia seu pioneiro estudo sobre o caráter retórico do princípio da legalidade, afirmando que o ele não constitui uma garantia efetiva do cidadão em face do poder punitivo do Estado, não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e, diversamente do que afirma a doutrina, não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direitos do acusado. Além disso, o tipo penal não estabelece que a lei escrita é a única fonte de incriminações e penas, não impede o emprego da analogia em relação às normas incriminadoras e não evita a criação de normas penais postas em linguagem vaga e indeterminada.[1]

Neste sentido, a autora enfrenta a questão do descumprimento - ou do não cumprimento - das funções atribuídas ao tipo penal pela dogmática tradicional, num contexto no qual esta mesma dogmática transmite a ilusão de integridade e coerência do sistema, de segurança jurídica, de funcionalidade. Para tanto, Cunha ataca a questão a partir do que chama de caráter retórico do princípio da legalidade, apontando para os sinais demonstrativos da pouca ou nenhuma efetividade do dogma da legalidade penal na sua função de garantia.

O dolo eventual, como tenho destacado, serve de fio condutor para a discussão sobre a crise da tipicidade penal.

É que o caráter mitificador do direito pode ser tomado com algo que incide sobre a realidade, determinando modos de estabelecimento da verdade, formas específicas de reconstituí-la e de ocultá-la, fazendo com que alguns conceitos como os de tipicidade, causas de justificação, exculpantes ou princípios como os da legalidade e da culpabilidade, neutralizem ou evitem a discussão sobre as determinações sociais do delito, sobre a quantificação política da transgressão ou sobre as razões estruturais e de conjuntura que condicionam a pena.

Neste caminho, os dogmáticos (o juiz e as partes), quando argumentam com este arsenal analítico, deslocam o eixo de uma discussão efetivamente plantada em condições de existência de uma sociedade particular e a situam no plano imaginário das teorias dogmáticas, de tal forma a se manter em pleno vigor a noção de que o direito positivo só pode ser cientificamente analisado mediante a descrição acrítica das normas positivas, quer dizer, através de uma estrutura teórica formal e invariável, expressa em conceitos universais, neutro e estritamente jurídicos.

Ainda que discutida a questão apenas no plano da ideologia ou da política, sem dúvida, a análise dos modos pelos quais se constituem os sentidos da lei penal coloca em xeque os princípios e as teorias estruturantes do pensamento dogmático, assim como revela ser a doutrina uma imensa fábrica de argumentos retóricos e, na particular perspectiva do princípio da legalidade, demonstra que o mesmo não possui a eficácia política, hermenêutica e sistemática apresentada pela dogmática.[2]

Uma importante distinção, ordinariamente omitida pelos textos dogmáticos, reside na leitura do princípio da legalidade a partir da sua identificação como norma, princípio doutrinário e enunciado meta-jurídico.

No primeiro aspecto, a dogmática penal não avança na discussão sobre a natureza deôntica da norma da legalidade, não a reconstrói no plano lógico formal, para dizer se corresponde a uma norma de obrigação, proibição ou permissão. No segundo ponto, em que a regra da legalidade é tomada como princípio doutrinário, há duas funções fundamentais a serem desveladas: uma função hermenêutica, relacionada com o modo de interpretação da lei penal e, outra, metodológica (ou sistemática), referida à produção de conceitos jurídico-penais.

Quanto à função hermenêutica, é questão que ainda está bastante imprecisa na doutrina, aparecendo, quase sempre, associada à explicitação de seu valor de garantia jurídica e política e fundamentada mais extensamente no capítulo da interpretação da lei penal. Sem grandes discrepâncias, figuram incólumes na doutrina, pelo menos quatro princípios dogmáticos relativos à interpretação da lei penal: 1) proibição da retroatividade da lei penal que prejudique os direitos do acusado; 2) proibição de recorrer ao direito costumeiro para a identificação de práticas criminosas (só a lei escrita pode ser fonte de normas incriminadoras); 3) proibição do uso de analogia em relação às normas incriminadoras; 4) proibição da existência de normas penais que se expressem por linguagem vaga ou indeterminada.

No plano da função metodológica do princípio da legalidade, destaca-se a sua relação com a teoria do tipo, pois a doutrina penal é unânime em afirmar que a tipicidade é a categoria jurídico-penal racionalizadora do princípio da legalidade, de tal forma que o nullum crimen nulla poena sine lege corresponderia à formula de que não há delito sem tipificação, ou seja, a regra da legalidade passa a ser um princípio reitor de toda a produção teórica relativa à conceituação do delito, fundamentando os conceitos da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade e sintetizando o suposto funcionamento destas categorias analíticas.

Como visto acima, o princípio da legalidade reproduz a exigência fundamental que o conceito de tipicidade encerra no contexto atual da dogmática penal (com a raiz fincada no positivismo jurídico), no sentido de ser uma correspondência perfeita entre o fato antijurídico e a descrição legal, reiterando o conteúdo da antijuridicidade, vinculando a existência do crime à violação do direito contido na lei e assegurando o conceito tradicional de culpabilidade, relacionando a culpa com a prática de um ato previamente estabelecido em um tipo.

O princípio da legalidade, como postulado meta-jurídico, por outro lado, está ligado à afirmação dogmática de seu valor de garantia política de caráter liberal, numa relação de sobreposição em relação às outras funções exercidas pela regra, numa espécie de consenso de que a regra da legalidade, antes de ser um princípio jurídico seria, isto sim, um anteparo da liberdade individual, no sentido de limitação do jus puniendi do Estado. Em iguais palavras, seria uma garantia do cidadão em face dos poderes do Estado, impedindo o arbítrio na aplicação da lei penal e assegurando o exercício regular e democrático da justiça. No geral, a dogmática tradicional faz a especial ligação entre tipo e legalidade como uma garantia dos cidadãos em face do poder de punir do Estado, limitado a só castigar aqueles comportamentos previstos em um tipo penal (incriminador) certo e determinado. Com poucas variações, os manuais de direito penal enfrentam da mesma maneira a questão do papel garantidor do princípio da legalidade, a partir da ideia de adequação perfeita do fato à norma, enquadramento legal do fato ou subsunção do fato ao tipo.

Neste contexto, cumpre demonstrar que, desde o surgimento da noção de legalidade como tipificação, passando por todas as transformações até hoje, a dogmática tradicional tem mal cumprido com sua função normativa, diante da ilusão de atribuição prévia de significado aos textos legais, com o que revela, isto sim, uma clara função ideológica de homogeneização dos valores sociais e jurídicos, assim como uma função retórica, já que carrega uma gama de argumentos voltados à sustentação (abstrata) do raciocínio jurídico. Tudo isto acarreta, finalmente, a manutenção das relações de poder a partir da consagração da função política da dogmática, entendida como senso comum teórico.[3]

Diante disso, o tipo acaba cumprindo uma função retórica de legitimação do uso do poder repressivo estatal, ou seja, num espaço marcado pela arbitrariedade, discricionariedade, voluntarismo, o tipo penal é instrumento de ampliação do estado penal, sendo manipulado, geralmente, para servir aos interesses da acusação.

No dolo eventual essa situação fica muito evidente.

Centenas de pessoas são acusadas da prática de crimes culposos no trânsito ou em outra circunstância cotidiana até que o caso envolva um resultado mais trágico e tenha maior repercussão midiática. A partir desse cenário, toda a suposta cientificidade do pensamento dogmático deixa de ter força e a imputação de crime doloso será uma espécie de justificativa do Estado Acusador, que apresentará uma denúncia por crime mais grave no objetivo de dar uma resposta para a sociedade dos homens de bem.

Em suma, é urgente enfrentar a crise da tipicidade, diante da necessidade de superar o estado da arte da teoria do delito, aceitando o desafio de buscar a construção de uma nova teoria jurídica, que não seja articulada apenas a partir do (superado) modelo subsuntivo, calcado na arbitrariedade e/ou no ativismo das partes atuantes na cena jurídica.

Imputar um crime a alguém é um ato de responsabilidade.

Por isso, a crise da tipicidade não está ligada apenas à questão da decisão judicial. Há uma tendência de pensarmos os problemas que a ausência de uma leitura hermenêutica da tipicidade causa apenas na atuação de juízes e tribunais, quando, na verdade, a crítica deve ser pensada quanto à atuação de todos os jogadores envolvidos no processo criminal.

É de pensar sobre quem nos salvará da bondade dos bons.

Mais não digo.


Notas e Referências:

[1] CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979. p. 17.

[2] Não é possível reduzir a discussão do crime ao ambíguo “quebra-cabeças” da atual teoria do delito, na medida em que, sob o neutro instrumental teórico da dogmática, são contrabandeadas teses ideológicas que, apesar de não ficarem explicitas, acarretam obscurantistas consequências.

[3] Luiz Alberto Warat cunhou a expressão senso comum teórico dos juristas para designar as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do direito. O neologismo é apresentado com a função de mencionar exatamente a dimensão ideológica das verdades jurídicas, na medida em que os juristas, nas suas atividades cotidianas, encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáfora, estereótipos e normas éticas que presidem (anonimamente) seus atos de decisão e enunciação. WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Porto Alegres: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1994. p. 13. Ver também: STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 66.


 

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