Dolo eventual e culpa. Três breves textos sobre casos atuais - Por Afrânio Silva Jardim

11/04/2017

1 – É UM TOTAL ABSURDO JURÍDICO CONVERTER CRIME CULPOSO EM DOLOSO PARA DAR SATISFAÇÃO ÀS FAMÍLIAS DAS VÍTIMAS E À OPINIÃO PÚBLICA MAL INFORMADA.

Quem perdeu uma filha prematuramente, como eu, sabe muito bem o que sofremos com saudade, que vai nos "machucar" pelo resto de nossas vidas. Por outro lado, é um total "absurdo" ceifar qualquer vida humana, mormente de pessoas jovens.

Entretanto, como professor de Direito e zeloso pelo Estado de Direito, não consigo aceitar que pessoas que podem ter cometido crimes de homicídio culposo venham a ser julgadas por homicídios dolosos, subvertendo-se toda a teoria do delito para dar satisfação aos sofridos familiares das vítimas e à opinião pública, mal informada por esta grande imprensa perversa e despreparada.

Injustiças futuras, que venham a desgraçar a vida de outras pessoas, não trazem de volta o nosso ente querido e não podem ser motivo para amenizar a dor de sua ausência...

Não advogo e não conheço ninguém que tenha algum interesse, direto ou indireto, no chamado "caso da Boate Kiss". Estou me manifestando em razão do meu inseparável sentimento de justiça.

O fato de ser pequena a pena do homicídio culposo não pode justificar estes graves equívocos jurídicos. No crime de homicídio culposo, o “desvalor” da conduta é bem menor, embora o resultado morte seja igual ao do homicídio doloso.

A toda evidência, os sócios da mencionada boate sequer imaginaram que nela morreriam seus frequentadores, em razão de um incêndio causado por conduta culposa de alguns músicos. Se não imaginaram, evidentemente não podem ter desejado este resultado fatídico e nem aceitado o risco de produzi-lo. Isto é simplesmente lógico. Se fossem previsíveis tais mortes, teríamos o crime culposo. Previsibilidade tem a ver com o crime culposo e, não, com o doloso.

O dolo eventual pressupõe que o agente tenha efetiva previsão de um resultado penalmente típico e que aceite causá-lo. Será que os sócios da boate, naquela noite, previram o que iria acontecer e pensaram: "se morrerem estes jovens, paciência, danem-se" ????

Por outro lado, as condutas dos músicos que, com uma tocha de fogo, acabaram colocando fogo na boate, em um show musical, também não são dolosas e, sim, culposas. Evidentemente estes músicos não previram o resultado morte das pessoas. Lógico que, se tivessem previsto, não teriam praticado a reprovável conduta culposa. Eles não podem ter aceitado um resultado que não previram ... Vale a pena repetir: era previsível, não foi previsto. Previsibilidade está ligada ao crime culposo.

Absurdo maior ainda é se falar em concurso material de infrações. Evidentemente que as penas não podem ser somadas se o agente dá causa a vários resultados típicos através de apenas uma conduta, comissiva ou omissiva. Cuida-se de concurso formal de crimes. O Código Penal, neste caso, é expresso e claro: aplica-se a pena do delito mais grave, aumentada de um percentual explicitado pelo legislador.

Entendo, ainda, que o concurso formal deve estar descrito na denúncia, (art. 41 do Cod.Proc.Penal) e admitido na decisão de pronúncia. Aos jurados do Tribunal do Júri, não devem ser formulados tantos quesitos quantas tenham sido as mortes, mas apenas um quesito, descrevendo a única conduta do réu, que deve ser dolosa, indagando se ela efetivamente deu causa a tais mortes.

Por outro lado, nos meus 31 anos de Ministério Público do E.R.J. (estou aposentado), sendo 16 anos só no Tribunal do Júri da Capital, sempre requeri ao Juiz-Presidente que fosse elaborado um quesito específico, indagando aos Jurados se a conduta do réu foi dolosa.

Isto é importante para afirmar a competência do Tribunal Popular e possibilitar o julgamento dos quesitos subsequentes. A reforma do Tribunal do Júri, inserida no Cod.Proc.Penal, não é incompatível com este entendimento. O Tribunal do Júri é apenas competente para julgar os crime dolosos contra a vida e os conexos. Isto está expresso na Constituição Federal e tem de ser objeto de decisão dos jurados. Todo órgão jurisdicional é "competente para decidir sobre a sua competência”.

Dias tenebrosos estes do nosso sistema de justiça penal. Quando o Poder Judiciário atua com os “olhos” voltados para a opinião pública raivosa, ninguém mais tem garantia de nada.

2 - ATENÇÃO, PROFESSORES DE DIREITO PENAL!!! VOCÊS FRACASSARAM INTEIRAMENTE.

DEVEM SE APOSENTAR OU MUDAR DE DISCIPLINA JURÍDICA...

No Brasil atual, não existe mais a teoria do delito!!! Dolo e culpa passaram a ser a mesma coisa???

Sendo previsível um resultado danoso genérico, fica caracterizado o dolo? Parece que acabaram com a distinção entre dolo e culpa, repito !!!

Não ter previsto o que era previsível não caracteriza a culpa inconsciente?

Dolo eventual não é uma espécie de dolo?

Nos crime comissivos, eventual omissão em determinados cuidados torna o omitente em autor do crime doloso praticado por outrem???

Fato relativamente independente que, por si só, teria o condão de causar o resultado danoso não rompe o nexo de causalidade?

É juridicamente possível participação por omissão em crime comissivo?

Pessoas denunciadas pelo Ministério Público Federal, na tragédia de Mariana (rompimento de barragem), Estado de Minas Gerais, previram que aquelas vítimas iriam morrer soterradas e aceitaram que tais óbitos ocorressem???

Para elas, eram indiferentes estas mortes? Se não previram o que, talvez, fosse previsível, como dizer que houve dolo, ainda que eventual?

A acusação deve ter feito o seguinte raciocínio, bizarro e absurdo: como os acusados previram que as pessoas não iriam se salvar e como não gostavam das vítimas que morreram, ficaram indiferentes a estes óbitos e se omitiram em tomar medidas de cautela para evitar o rompimento da barragem!!!

Por mais tristes e lamentáveis que sejam os resultados de uma conduta culposa, não devemos subverter toda a teoria do delito (ou a realidade dos fatos) para dar satisfação a uma sociedade desinformada e composta de pessoas que não conhecem a técnica jurídica.

A desgraça das vítimas não pode justificar que desgracemos também os acusados (e suas famílias). Vale dizer, ao arrepio dos princípios mais comezinhos do Direito Penal, não devemos acabar com as suas trajetórias de vida, em um verdadeiro “Lawfare”.

A relevante função constitucional do Ministério Público democrático não pode ser a de um acusador sistemático e “midiático”, preocupado mais em “jogar para a plateia” no que promover justiça.

Consigno que, a cada dia, fico mais perplexo. Não sei se estamos diante de uma “sanha acusatória” passageira ou mesmo diante do desconhecimento das regras básicas do Direito Penal ...

Por que estou dizendo tudo isso? O Ministério Público Federal denunciou 21 (vinte e uma) pessoas por homicídios qualificados (dolosos), em razão das mortes decorrentes da ruptura da barragem em Mariana, Estado de Minas Gerais!!!

3 - SOBRE A MORTE DO CINEGRAFISTA DA BANDEIRANTES, OCORRIDA NA MANIFESTAÇÃO POPULAR. DECISÃO DO STJ. DOLO EVENTUAL? AO COLOCAR O "ROJÃO" NO CHÃO, QUE VITIMOU O JORNALISTA, O MANIFESTANTE PREVIU O EVENTO MORTE, SE NEM SABIA DA PRESENÇA DA VÍTIMA NO LOCAL ???

Em texto escrito anteriormente, fiz resumida crítica à estranha supra mencionada decisão. Naquela oportunidade, embora não seja um especialista em Direito Penal, procurei ser mais técnico. Agora me dirijo mais especificamente ao público leigo em direito.

Como disse naquele referido estudo, o Direito Penal tem como diretriz não só o desvalor do resultado do crime, como também o desvalor da conduta do seu autor.

Desta forma, há crimes com resultados muito graves com penas menores do que outros delitos com igual resultado naturalístico. Nestes casos, a censura penal leva mais em consideração a ação do autor de delito, que se apresenta mais ou menos reprovável socialmente.

Por exemplo: um crime culposo, que acarrete morte, tem uma pena menor do que um crime doloso de lesão corporal muito grave. Aqui, a pena maior leva em consideração não só o resultado, mas também a distinção entre uma conduta culposa e dolosa.

Isto nem sempre é bem entendido pelo "grande público", que se fixa mais na gravidade do resultado do delito. Por vezes, influenciadas pela "mídia punitivista", as pessoas pugnam pela "adulteração" da teoria do delito, forçando a transformação arbitrária de um crime culposo em doloso. Isto se faz com a distorção da "figura jurídica" do chamado dolo eventual. Não esqueçamos: dolo eventual é dolo, dolo eventual é uma espécie de dolo...

Desta forma, não podemos pegar a expressão "assumir o risco" de produzir determinado resultado e confundir dolo com culpa. Não podemos esquecer que, no dolo, o resultado, efetivamente ocorrido, é previsto pelo agente.

O pior é que alguns membros do Ministério Público e do Poder Judiciário acabam referendando este grande equívoco jurídico. Isto se dá em razão do reprovável desejo de satisfazer a “sanha punitivista" de uma sociedade deformada pela grande imprensa e, principalmente, por falta de maior preparo jurídico.

No caso concreto, conforme pode ser visto nos vídeos do Youtube, um dos acusados encontrou e passou um “rojão” para o outro acusado que, correndo, acendeu o seu pavio, colocando-o no chão e voltado para trás. Por fatalidade, o rojão atingiu um repórter cinematográfico, que estava trabalhando no local, causando-lhe a morte.

Desta forma, os acusados sequer sabiam que a vítima ali se encontrava, não a conheciam e jamais poderiam imaginar que ela viesse a morrer pelo rojão deixado a esmo no chão. Quantos rojões são jogados nessas manifestações sem que causem sequer lesões corporais nas pessoas?... Como falar, então, em crime doloso qualificado???

Vejam os vídeos:

https://www.youtube.com/watch?v=AjZM411kebs

https://www.youtube.com/watch?v=CObyTWRgMXA


Imagem Ilustrativa do Post: Nude and Shadow // Foto de: Thad Zajdowicz // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/thadz/31900911073

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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