Doenças de pele, Colônia Agrícola de Monte Cristo e (o mito da) pacificação social: breves anotações

13/03/2020

Ensina-se, nas faculdades de Direito Brasil a fora, que a função do Processo Penal é a  pacificação da sociedade[1]. Afirma-se, também, que a pena possui a função ressocializadora, atuando num viés de prevenção especial, “reeducando” o preso[2].

O ideário pacificador da jurisdição, seja a penal ou a não penal, formou o imaginário dos juristas brasileiros, a partir das construções teóricas da chamada Escola Paulista de Processo, responsável pela edição da obra “Teoria Geral do Processo”. Assim, a pena, isto é, o atuar do poder de punir, reestabeleceria a paz na comunidade, abalada pela prática de um delito. Resumindo: as prisões seriam instituições a serviço da pacificação.

Por outro lado, uma perspectiva agnóstica do processo e da pena não entende a persecução penal como um instrumento de pacificação social: ao revés, o processo penal seria, ou deveria ser, um dique de contenção em face do poder, e não do direito, de punir[3].

Esse poder, que tende a ser realizado de forma arbitrária[4], e não pacificadora, seria exercido, dentre outras maneiras, através da execução penal, cuja falência ressocializadora já foi apontada há muito tempo[5].

Nilo Batista, ao prefaciar o livro “Em Busca das Penas Perdidas” (ZAFFARONI, 2017), afirmou que, no Brasil, “ (...) o jurista era um fingidor, de fazer inveja ao poeta de Fernando Pessoa”.

Para além de uma frase de efeito, o que as palavras acima podem esclarecer, no sentido de “tornar claro” aquilo que é escamoteado pelo “senso comum teórico[6]”?

Notícias recentes informam um surto de doenças de pele na Colônia Agrícola de Monte Cristo, em Roraima. Não seria nenhuma novidade apontar o descumprimento das condições mínimas de higiene nos presídios do Brasil, o que fez, dentre outros argumentos, com que o STF declarasse um “estado de coisas inconstitucional” sobre o tema.

Porém, indaga-se sobre a possibilidade do “discurso jurídico penal[7]” majoritário permanecer reproduzindo, nas faculdades, um ideário de pacificação pensado em uma Teoria Geral do Processo de matriz civilista, erigida ao largo do mundo do ser, da realidade da justiça criminal brasileira.

Na realidade, a justiça penal não seria a resposta pacificadora ao conflito criado pelo crime: ao revés, a persecução criminal representa(ria)  a própria agudização do conflito. Isto porque, o poder de seleção da clientela do Direito Penal, a mesma que está na Colônia Agrícola de Roraima, pertence às agências policiais. E, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, Infopen, (2019, p.30), dentre os presos, pretos e pardos totalizam 63,6% da população carcerária nacional, ao passo que 54% desta população tem até 29 anos.

Do total de presos do Estado de Roraima, 70,58% são pretos e pardos, de acordo com o Infopen (2019, p.31).

Segundo Juliana Borges, o genocídio da juventude negra não se dá somente com as balas: a prisão, como mecanismo de mortificação moral, atua como um dos cernes da necropolítica, retirando de circulação os indesejáveis[8]. Para Eduardo Ribeiro (2017), “(...) a justiça brasileira é uma parte central do empreendimento de criminalização do povo negro no Brasil e opera na mesma lógica que distribui a morte como exercício de poder”.

Ou seja, a partir de perspectivas de raça e classe, não estaríamos diante de uma sistema de justiça pacificador, e sim  de mais  um mecanismo de exclusão e segregação.

Michel Foucalt, na obra, “Em Defesa da Sociedade” (2005), explana o que seria a biopolítica, ou o poder do soberano decidir quem vive e quem morre, aquilo que  Achille Mbembe denominou como  “necropolítica[9]”.

Nina Rodrigues (2011) defendia que a responsabilidade penal dos negros e “mestiços” deveria ser atenuada, pois esses  jamais seriam dotados de razão como o ser humano mais evoluído: o europeu.

Apesar de o controle penal na América Latina ser mais tributário a Lombroso que a Bentham (ZAFFARONI, 2017, p.77), o senso comum teórico e o discurso jurídico penal brasileiros tratou de escamotear o caráter de controle social/racial da justiça criminal (BORGES,2018, p.16), assumindo um discurso racionalista erigido no final do século XIX e apoiado no ideário da pacificação social.

O Ministério Público de Roraima requereu a interdição da Colônia Agrícola. Defensoria Pública e OAB denunciam a ausência de condições de higiene da unidade prisional[10]. E, provavelmente, quando começarem as aulas, nas faculdades de Direito ao redor do Brasil, o mito da pacificação, através do processo penal, será repetido pelos professores.

Por trás do surto de doenças de pele na colônia agrícola Monte Cristo, em Roraima, há uma racionalidade (colonial), um rearranjo das estruturas do passado, onde a tortura, como as bactérias, se abatem sobre os mesmos corpos de sempre.

  

Notas e Referências

BORGES, Juliana. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018

BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Atualização junho 2017. Org: Marcos Vinícuis Moura. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, Brasília, 2019. Disponível em file:///C:/Users/nasci/OneDrive/Documentos/2020/ARTIGOS/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf. Consulta em 23/01/2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. PROGRESSÃO DE REGIME. INDEFERIMENTO. REQUISITO SUBJETIVO. HC 544.565/SP, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada. Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013

FOUCALT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Tradução: Maria Ermanita Galvão. Martins Fontes, São Paulo, 2005.

________. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 35 edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169. Consulta em 25/01/2020

 

RAMALHO JÚNIOR, Elmir Duclerc. Introdução aos Fundamentos do Direito Processual Penal. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2016.

RIBEIRO, Eduardo. Os novos episódios do genocídio e o massacre nas prisões (Ou a ginga de branco é tirar o corpo fora). Disponível em: < https://revistaforum.com.br/noticias/os-novos-episodios-do-genocidio-e-o-massacre-nas-prisoes-ou-a-ginga-de-branco-e-tirar-o-corpo-fora/>. Consulta em 23.01.2020.

RODRIGUES, RN. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011, 95p. ISBN 978-85-7982-075-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, v. 03, n. 05. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121>. Acesso em: Acesso em: 21 jan. 2019.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa. 5. ed. Rio de janeiro: Revan, 2017

[1] De acordo com Grinover et al (2013, p. 32)   “(...) a pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por consequência, de todo o sistema processual.

[2] Os tribunais se referem ao apenado como “reeducando”. A título de exemplo: HABEAS CORPUS 544.565/SP.

[3] Ramalho Júnior (2016)

[4] Um indício da arbitrariedade do poder de punir é a necessidade de realização das audiências de custódia, cujo objetivo, dentre outros, é aferir se o Estado, através de seus agentes, cometeu tortura e maus tratos.

[5] Ver Foucalt (2012), “Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão”.

[6] Segundo Warat (1985, p. 07) “(...) Metaforicamente, caracterizamos o senso comum teórico como a voz “off” do direito, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais, podemos dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam.”

[7] O “discurso-jurídico penal” seria, para Zaffaroni (2017) um saber-poder reproduzido nas universidades de Direito, saber este descolado da operacionalidade real do sistema penal.

 

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[8] “(...) Tanto o cárcere quanto pós-encarceramento significam a morte social destes indivíduos negros e negras que, dificilmente, terão reconstituído o seu status. Esta é uma das instituições mais fundamentais no processo de genocídio contra a população negra no  país.” (BORGES, 2018, p.16-17)

[9] Para Mbembe (2016, p.128), a decisão soberana de  matar ou expor à morte determinadas populações perpassa pelo racismo, advindo da experiência colonial de dominação.

[10] https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/01/22/saude-diz-que-identificou-doenca-de-pele-em-presos-de-roraima-e-descarta-bacteria-desconhecida.ghtml

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