Do limen à liminar: nem tudo é o que parece ser

07/07/2024

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

"Vim aqui porque preciso de uma liminar", disse o Senhor ao estagiário do Juizado Especial. Não estava acompanhado por advogado, nem conhecia o objeto do seu desejo, mas ouviu dizer que a liminar resolveria rapidamente o seu caso.

Toda liminar é uma tutela provisória, ou seja, uma tutela não definitiva (para alguns, a tutela cautelar é temporária, e não provisória) fundada em cognição sumária, vale dizer, num conhecimento menos aprofundado do juiz, que pode antecipar efeitos práticos de uma sentença ou assegurar a utilidade de um processo.

Por exemplo, a liminar para assegurar de imediato a cirurgia negada ao paciente pela operadora de saúde; a liminar para adiantar o recebimento de um benefício previdenciário, caso o autor tenha prova pré-constituída e apresente tese fundada em precedente judicial vinculante ou em súmula vinculante: ou a liminar para impedir o cônjuge de dilapidar o patrimônio, viabilizando uma futura partilha. Tecnicamente, a palavra liminar deve ser usada apenas para as decisões provisórias proferidas no início da demanda (in limine litis), sem a oitiva do réu (inaudita altera parte).

Na prática, porém, é comum, embora errado, se falar em liminar também no decorrer do processo.

Sua origem é curiosa. Os romanos politeístas acreditavam na existência dos Deuses Limentino e Limentina, responsáveis por guardar o limen, ou seja, a soleira da porta de entrada das casas.

O limen representava o limiar entre o ambiente interno e o ambiente externo, o limite entre o sagrado e o profano, a fronteira da defesa do ambiente sagrado do lar.

De limen vem a palavra liminar, porque é concedida no limiar, no limite, na fronteira, vale dizer, no início do processo, antes do contraditório.

Os romanos cristãos também chamavam o túmulo de limen, representando o limiar entre a vida terrena e a vida eterna. Por isso, na Igreja católica se tem a prática da visita ad limina apostolorum ou apenas ad limina: os Bispos visitam o Papa, sucessor de São Pedro, e os túmulos dos Apóstolos São Pedro e São Paulo.

Outra palavra que deriva de limen é preliminar, significando aquilo que vem antes do limiar - no processo, os pressupostos ou requisitos de admissibilidade, que o juiz analisa antes do mérito.

A liminar pode ser uma tutela de urgência, cautelar ou antecipada, ou uma tutela de evidência. 

Por exemplo, se uma empresa é excluída de uma licitação e impetra um mandado de segurança com pedido de liminar para suspender a licitação, sua natureza será de tutela cautelar (conservativa). Mas, se a liminar objetivar o retorno da empresa ao procedimento licitatório, sua natureza será de tutela antecipada (satisfativa). Por outro lado, a liminar concedida nas ações possessórias de força nova tem natureza de tutela de evidência, porque não exige periculum in mora, bastando que a turbação ou esbulho tenha sido praticado a menos de ano e dia, conforme estabelece o art. 558 do CPC.

É importante dizer que a previsão da liminar em lei especial, como a do mandado de segurança, não retira dela o caráter de tutela provisória, até porque, nem toda tutela provisória recebe tal rótulo. Por exemplo, os alimentos provisórios e efeito suspensivo em embargos à execução são tutelas provisórias, embora a lei nada diga a respeito.

A relevância dessa afirmação nem sempre é percebida.

Pense que a parte agrave contra a decisão que indeferiu alimentos provisórios. Nesse caso, a sustentação oral deve ser admitida, em razão do disposto no inciso VIII do art. 937 do CPC, que viabiliza a sustentação oral "no agravo de instrumento interposto contra decisões interlocutórias que versem sobre tutelas provisórias de urgência ou da evidência."

Por outro lado, imagine que o juiz tenha indeferido o pedido de efeito suspensivo nos embargos à execução. Nesse caso, caberá agravo de instrumento, com fundamento no inciso I do art. 1.015 do CPC, ainda que o inciso X do mesmo artigo se refira apenas à concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo, para o cabimento do agravo de instrumento.

Vale destacar que nada impede a aplicação supletiva da disciplina geral da tutela provisória prevista no CPC às leis extravagantes que preveem liminares. Por exemplo, é perfeitamente admissível requerer a tutela de evidência do art. 311 do CPC em mandado de segurança.

Também importante dizer que a tutela de urgência sempre pode ser concedida liminarmente. Posterga-se o contraditório para que se tenha o direito fundamental à jurisdição efetiva, protegendo a parte do risco iminente do dano ou do processo se tornar eficaz.

Já a tutela de evidência pode ser concedida liminarmente – sem a oitiva da outra parte - nas hipóteses dos incisos II e III do art. 311 do CPC (pedido lastreado em prova pré-constituída e súmula ou precedente vinculante e pedido de devolução do bem na ação de depósito fundado em prova documental do contrato), mas não pode ser concedida liminarmente – sem a oitiva da outra parte - nas hipóteses dos incisos I e IV do art. 311 do CPC (pedido fundado em abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório, ou pedido lastrado em prova pré-constituída, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável).

Penso, no entanto, que a concessão liminar de tutela de evidência não parece adequada ao modelo constitucional de contraditório substancial abraçado pelo CPC, que pode ser resumido pelo binômio influência e não surpresa. Aqui não se exige a urgência para a concessão, diferentemente da tutela cautelar e da tutela antecipada, portanto o contraditório prévio não é impeditivo à jurisdição efetiva.

Em conclusão, nem tudo é o que parece ser: importa o conteúdo, não o rótulo.

 

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