DO FATO JURÍDICO DO DIREITO AO RECURSO – 8ª PARTE

01/10/2019

Dando sequência, depois de apresentada a questão referente ao locus normativo da recorribilidade, é momento de analisar os vários problemas que o compõem. O primeiro deles tem a ver com a seguinte pergunta: por que outros tipos de textos normativos (além da lei), como o precedente, o costume e o negócio jurídico, não podem prever recursos ou, noutras palavras, qual o porquê dessa reserva legal? Neste texto, analisarei o problema em torno dos negócios jurídicos. Para facilitar a compreensão, a numeração seguirá a partir da última, sendo a (3.2.1.1) o marco deste reinício.

3.2.1.1. Locus normativo da recorribilidade e os negócios jurídicos

Sabe-se que o negócio jurídico se baseia num ato de disposição, isto é, por meio dele alguém cede algo seu. Este – em termos jurídicos – traduz-se numa situação jurídica, como direitos e poderes. Por óbvio, esse ceder nem sempre é sem algo em troca; muitas vezes o ganho é muito maior do que a perda, de modo a fazê-la não aparente, caso da aceitação para doação, mas esse ganho é apenas a causa final do negócio, não sua essência. Logo, não se pode reduzir a disponibilidade aos casos de renúncia, que dela é apenas seu nível máximo. 

Portanto, é verdadeiro limite do negócio jurídico o atingimento à esfera jurídica apenas do negociante; a outrem tal força só poderá ocorrer se em benefício dele, e com sua devida aceitação ou anuência[1]. É ineficaz (mais especificamente, inoponível) o negócio jurídico para quem é alheio à disposição, ineficácia derivada do fato de se estar a praticar um ato sem se ter poder para tanto.

Essa é a diferença essencial entre o negócio jurídico e o ato decisório (em todos os níveis, não apenas o jurisdicional): enquanto o primeiro baseia-se numa disposição, o segundo tem por base uma imposição, logo lhe é próprio poder repercutir contra alguém.  

Assim, se por via negocial há produção de algum dever, este só pode ser em relação ao negociante. O gerar um dever é uma das possíveis perdas[2] que um negócio jurídico pode produzir. Claro que pode haver produção negocial de um direito ou situação análoga, mas esse benefício somente é em relação a outrem. Por exemplo, o vendedor, ao dispor do seu direito sobre a coisa, acaba por gerar um direito subjetivo, mas não para si, e sim para o comprador, exatamente o direito subjetivo à aquisição da titularidade da coisa comprada; não confundir com o direito subjetivo ao valor da coisa que exsurge para o vendedor, pois, neste caso, a formação é devida a outra disposição, feita pelo comprador.     

Diante disso, tendo em vista que o direito ao recurso tem um sujeito passivo, para se poder analisar a pergunta feita acima, é necessário saber de quem é a situação jurídica passiva correlata a tal direito, ou seja, a identificação do titular do dever. Isso, por óbvio, sem se estabelecer qualquer indício de resposta; está-se tão-somente a tratar de uma condição de possibilidade da própria pergunta.

Adiantando algo a ser pormenorizado noutro momento, o direito ao recurso é direito a um remédio jurídico processual, nos moldes como este foi estabelecido anteriormente. Desse modo, relaciona-se a um procedimento, tendo o Estado-juiz como seu sujeito passivo, ou seja, aquele que tem o dever de analisar, a princípio ao menos, a viabilidade do procedimento iniciado pelo ato de exercício do direito. É o Estado-juiz devedor dessa prestação: mais, encontra-se obrigado, visto que tal direito é dotado de pretensão.

Portanto, estabelecer por negócio jurídico recorribilidade é criar para o Estado-juiz uma obrigação, colocando-o numa posição de perda. Isso já é o bastante para, como hipótese, dizer: tal negócio jurídico[3] somente pode ser viável se o Estado-juiz dele participar.     

Todavia, ainda há um detalhe que deve ser observado. Embora relativo ao recorrente e ao Estado-juiz, esse negócio jurídico repercute para outrem, ao sujeito beneficiado pela decisão. A razão é simples: o recurso – cujo direito para tanto é gerável negocialmente – funciona como mecanismo ensejador (causa eficiente) da reversão ou, no mínimo, modificação do resultado que é favorável ao outro sujeito processual. Logo, não pode ele ser atingido por algo gerado sem sua participação ou, no mínimo, anuência. Repercutir na esfera alheia de modo compulsório é propriedade da lei, do costume, no máximo da decisão, jamais do negócio jurídico.    

Sendo assim, o negócio jurídico para formação de recorribilidade deveria ter viés plurilateral[4], dele participando, de algum modo, o sujeito prejudicado pela decisão, que, com isso, passa a titularizar do direito ao recurso, o Estado-juiz, porquanto seja devedor de tal direito, e o beneficiado pela decisão, pois que não pode ser atingido pelo agir alheio.

Como dito, porém, está-se a analisar apenas a condição de possibilidade desse tipo de negociação. Sua viabilidade dogmática vai muito além. E nisto, especificamente, dois problemas precisam ser analisados: legitimidade negocial e isonomia. Já que, na hipótese, o Estado-juiz há de ser agente negociante, é necessário saber quem, em sua estrutura, teria legitimidade para tanto e se, por conta do dever de isonomia, ele poderia fazer negociações atomizadas. 

Eis a temática do próximo texto.         

 

Notas e Referências

[1][1] Não à toa o parágrafo único do art. 436, CPC, condiciona a eficácia ao terceiro da estipulação em favor de terceiro à anuência dele.

[2] Nos moldes acima expostos, perda é o avesso de ganho, logo aquilo que se dá em prejuízo. Sendo assim, perda não se restringe à desconstituição de algo, como na renúncia, extintiva que é do objeto renunciado. A perda pode ser na forma de geração de dever ao negociante, caso da compra e venda, que atribui ao vendedor o dever de transmitir a titularidade da coisa, e ao comprador, o de pagar o preço. De outro modo, exatamente por haver perdas ditas não aquisitivas, não se deve dizer que a eficácia do negócio jurídico é a de sempre gerar deveres e direitos, eficácia de tipo aquisitivo.   

[3] Negócio jurídico com diferença específica processual, uma vez que, consonante o já estabelecido, tem por base algo – a recorribilidade – componente de uma relação jurídica processual.

[4] Em rigor, tal como, de algum modo, defende Pontes de Miranda, não se deve fazer a contraposição entre os negócios jurídicos bilaterais e plurilaterais. A razão é simples: eles têm a ver com critérios distintos. No caso dos bilaterais, o que se leva em conta é a questão dos lados. É bilateral o negócio jurídico cujas manifestações de vontade que o compõem partem de mais de um lado. Os lados se opõem. Um está diante do outro. Daí se dizer que, se há reciprocidade de prestações: um presta e o outro contrapresta. Não é o que ocorre com os plurilaterais. Neles, a quantidade de lados é irrelevante, podendo ser limitada ou infinda. O que se tem é um centro para o qual as manifestações de vontade convergem. Daí se falar em fim comum como o traço distintivo dos negócios jurídicos plurilaterais. O fato de eles poderem ser formados apenas por dois figurantes, como no contrato de sociedade entre dois sócios, é irrelevante para tirar delas a plurilateridade. Aqui, quando todos têm de prestar, não há contraprestação para com o outro, mas sim prestações que convergem para o fim comum. É preciso deixar claro que, para plurilateralidade negocial, não é necessária a criação de um sujeito de direito, como ocorre no contrato de sociedade. Em exemplo utilizado por Pontes de Miranda, se dois ou mais comerciantes acordam por dividir os lucros obtidos com determinada freguesia, há negócios plurilateral, embora não tenha havido constituição de sociedade. Em termos processuais, é exemplo de negócio plurilateral o calendário, previsto no art. 191, CPC.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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