1- Da Legítima Defesa:
Ao lado do estado de necessidade, do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito, a legítima defesa se faz presente no Código Penal brasileiro como excludente de ilicitude (art. 23, II do CP).
Segundo o art. 25 do CP:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
No que pese as diversas teorias (subjetivas e objetivas) a respeito da natureza jurídica da excludente da legítima defesa[1], é certo dizer que se trata de uma causa de justificação, excludente de antijuridicidade ou excludente de ilicitude. Para Bettiol a legitima defesa “constitui uma circunstância de justificação, por não atuar contra ius que reage para tutelar direito próprio ou alheio, ao qual o Estado não pode de nenhuma maneira, dadas as circunstâncias do caso concreto, oferecer a mínima proteção”.[2]
Hodiernamente, o reconhecimento da faculdade de autodefesa contra agressões injustas não mais constitui uma delegação ou outorga estatal, como já foi sustentado no passado. Trata-se, no dizer de Toledo da “legitimação pela ordem jurídica de uma situação de fato na qual o direito se impôs diante do ilícito”. [3]
Do artigo 25 do Código Penal extrai-se os requisitos objetivos da excludente de ilicitude da legítima defesa: agressão injusta, atual ou iminente; defesa de direito próprio ou de terceiros; utilização de meios necessários e seu emprego moderado. Do ponto de vista subjetivo, é a consciência ou conhecimento da agressão e a vontade de defesa (animus defendi).
2- Do Excesso:
O Código Penal brasileiro estabelece no parágrafo único do art. 23 que:
“O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”
Para que haja excesso, é necessário, em primeiro plano, averiguar a presença de uma das excludentes, no caso específico da legítima defesa, a ocorrência de uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiros. No dizer de Magalhães Noronha, “há, em tese, excesso nos casos de exclusão de ilicitude quando o agente, ao início sob abrigo da excludente, em sequência vai além do necessário”.[4]
O Código Penal se refere, tão somente, de maneira expressa. ao excesso doloso e ao excesso culposo.
Embora não haja nenhuma referência expressa ao excesso exculpante (excludente da culpabilidade), é inegável que em alguns casos o agente não responderá pelo crime e, portanto, não estará sujeito a sanção penal, independentemente da previsão legal, em razão do princípio nullum crimen, nulla poena sine culpa.[5]
Jair Leonardo Lopes observa que:
Na legítima defesa, o excesso configura-se quando o agente continua a sua reação mesmo depois de cessada a agressão ou quando reage ao ataque de modo evidentemente imoderado. Cessada a agressão, cessa o perigo e não se justifica mais a prática de atos de defesa.
Segundo o professor, o excesso pode ser doloso ou culposo:
Se a vítima foi prostrada por terra, encontrando-se inteiramente vencida, e sem condições de continuar agredindo, e o agredido, mesmo consciente disso, prossegue nos atos de reação, p. ex., dando pontapés no corpo do agressor, a conduta será punível a título de dolo. Mas pode ser que o agente se exceda nos atos de defesa, por imprudência, negligência ou imperícia, no emprego dos meios ou na moderação da repulsa, o excesso será culposo. O excesso pode ocorrer por perturbação do momento, inclusive medo do agressor, sabidamente perigoso, vindo o agredido a reagir desmedidamente, ao disparar toda a carga de sua arma, quando talvez bastasse o primeiro disparo para fazer cessar a agressão. Em tal caso, tem-se admitido a isenção de pena por inexigibilidade de outra conduta e, consequentemente, ausência de culpabilidade.[6]
A admissão do excesso como excludente da culpa, em sentido amplo, embora não admitida expressamente pelo Código Penal de 1890, já encontrava respaldo na doutrina. Lemos Sobrinho observava:
Embora não consagre o nosso Código vigente disposição expressa sobre o execesso ou irregularidade da defesa, todavia, por se tratar de applicação de regra fundamental de direito, que só admite a imputabilidade mediante a ocorrência de dolo ou culpa lata ou leve, nada impede que seja reconhecida ao agente a justificativa, uma vez verificado que o seu estado emocional não lhe permitia manter-se nos limites legaes da repulsa.[7]
Hermes Vilchez Guerrero, em obra dedicada ao estudo do excesso em legítima defesa, assevera que:
Melhor teria sido que o legislador houvesse previsto expressamente tal causa de inculpabilidade, o que aliás, não constituiria novidade alguma em nosso direito, pois, como já visto, assim o fizera o Código Penal de 1969, bem como outros textos. Desse modo, quando isso ocorria, o Projeto João Vieira mandava aplicar a pena da cumplicidade; o de Sá Pereira isentava de responsabilidade penal quem ultrapassasse os limites da legítima defesa, por falta de ponderação, atribuível à própria agressão ou ao modo como ela se realizou.[8]
Para Álvaro Mayrink,[9] apesar de o nosso código não incluir expressamente o excesso exculpante entre os casos de exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de outra conduta, como faz, por exemplo, com a coação irresistível e a obediência hierárquica, não quer dizer que esteja vedado o seu reconhecimento.
Juarez Cirino[10] também inclui o excesso intensivo – pela utilização de meio de defesa desnecessário - na legítima defesa: excessos (consciente ou inconsciente) produzidos por afetos astênicos de medo, susto ou perturbação, entre as situações de exculpação fundamentadas pela inexigibilidade de conduta diversa.
Entende-se, portanto, que o excesso exculpante se fundamenta na inexigibilidade de conduta diversa. Embora o agente tenha praticado uma conduta típica e ilícita, ela não é culpável, uma vez que na situação em que agiu o agente (medo, pavor, susto, etc.) não lhe era exigível um comportamento conforme ao Direito.
Assim, independente da previsão legal, o excesso escusável que tem como fundamento a inexigibilidade de conduta diversa, que exclui a culpabilidade.
3- Do excesso no “Projeto Anticrime”:
O denominado “Projeto Anticrime” apresentado pelo Ministro da Justiça no que se refere as “medidas relacionadas à legítima defesa”, notadamente, em relação ao excesso inclui o seguinte parágrafo, in verbis:
“Art.23..............................................................................................................................................................................................................................................................................
§1º ......................................................................................................................................
§2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. (NR)
No que pese, eventuais, segundas e obscuras intenções, ao prever que “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa...” o “Projeto Anticrime”, ainda que involuntariamente, acabou por reconhecer o que boa parte da doutrina já reivindicava[11], ou seja, a inclusão em lei do excesso escusável, como fazia o natimorto Código Penal de 1969[12] e fazem outras legislações.[13]
Conforme já foi salientado alhures[14], o fato de o atual Código Penal brasileiro não ter previsto expressamente o excesso escusável proveniente de medo, surpresa ou perturbação de ânimo não impede que seja reconhecida a excludente de culpabilidade fundamentada pela inexigibilidade de conduta diversa.
Contudo, entende-se que ao se referir a “violenta emoção”, já prevista como causa especial de diminuição da pena no caso do homicídio (art. 121, § 1º do CP) ou como atenuante (art. 65, III “c”), o projeto o fez de maneira equivocada. Melhor seria, se ao invés de se referir a “violenta emoção” aludir a “perturbação de ânimo”, como fez o Código Penal de 1969.
Por fim, é necessário separar o joio do trigo, pois, diferentemente do que vem sendo dito, não é esse dispositivo (art. 23, § 2º) que, necessariamente, resultará no incremento da violência policial ou que, como vem sendo propagado, outorga ao policial uma abominável “licença para matar”. Na verdade, o “Projeto Anticrime” trata, em outro dispositivo legal, da legítima defesa do “agente policial ou de segurança pública” (art. 25, incisos I e II do “Projeto Anticrime”), que merece severas crítica, mas que será analisado posteriormente.
Notas Referências
[1] Ver ZILIO, Jacson. Legítima defensa: las restricciones ético-sociales a partir de los fines preventivos y garantísticos del derecho penal. Buenos Aires: Ediciones Didod, 2012.
[2] BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Tradução: Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, p.371.
[3] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 192.
[4] NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. V. 1. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.204.
[5] Nesse sentido TOLEDO.
[6] LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 139-140.
[7] LEMOS SOBRINHO, Antônio. Da legítima defesa. São Paulo: Saraiva, 1931, p. 156.
[8] VILCHEZ GUERRERO, Hermes. Do excesso em legítima defesa. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 165.
[9] COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro, 1995, v. 1, t. 1, p. 905.
[10] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6ª ed. Curitiba-PR: ICPC, 2014, p.329.
[11] Veja VILCHEZ GUERRERO, Hermes. Op. cit.
[12] “Não é punível o excesso quando resulta de escusável medo, surpresa, ou perturbação de ânimo em face da situação” (art. 30, § 1º do CP de 1969).
[13] De igual modo o Código Penal Militar prevê o excesso escusável, “Não é punível o excesso quando resulta de escusável surprêsa ou perturbação de ânimo, em face da situação” (Parágrafo único do art. 44 do Dec-Lei nº 1.001, de 21/10/1969).
[14] YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Da inexigibilidade de conduta diversa. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
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